FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(21/09/2021)
Hoje em dia faz boa figura quem passeia
com seu cãozinho de estimação, em público, e lhe faz afagos, os mesmos que
faria a uma pessoa querida. A ideia de fraternidade planetária ultrapassa a
fronteira do exclusivamente humano, deixa de ser utopia de poucos,
universaliza-se.
Também faz sentido por em questão os
fundamentos desta nova visão ecológica. Ela se funda no puro pragmatismo, no
mero instinto de sobrevivência, ou num
sentimento místico, numa eco-espiritualidade?
Frei Leonardo Boff afirma "chegamos a um ponto da história em que percebemos
a possibilidade de auto-destruição." Que diferença faz uma ou outra destas
concepções?
No ano de 1987 o Papa João Paulo II
proclamou S. Francisco de Assis Patrono da Ecologia. Ele o fez atendendo a um
apelo de ecologistas de todas as partes da terra. S. Francisco é visto como um
arquétipo da humanidade, alguém no qual homens e mulheres se projetam e refazem
sua crença na possibilidade da perfeição humana.
É indispensável, no entanto, uma visão crítica
sobre o Francisco ecológico, a fim de superar uma tendência reducionista, que
se limita ao formato romântico-holístico e exclui sua natureza revolucionária.
É o que se evidencia no singelo poema de Vinicius de Morais: "lá vai S.
Francisco pelo caminho, de pé descalço, tão pobrezinho, bebendo água no
ribeirinho, cantando à noite pros passarinhos. Lá vai S. Francisco, de pé no
chão, levando nada no seu surrão, dizendo ao fogo "bom dia, amigo",
dizendo ao vento "saúde, irmão....".
Historicamente, S. Francisco rebelou-se
contra a estrutura social do seu tempo (séc.XIII) em que todo acesso à festa da
vida tinha um preço e era o preço do Mercado. Ele se pôs a esboçar uma nova
mundivisão onde a felicidade tinha que ser universal e gratuita. E decidiu
começar, ele mesmo jovem, rico e pródigo, começar do nada, nada cobiçar e nada
possuir. Todas as coisas são dons gratuitos de Deus. Seu olhar sobre o mundo é
de absoluta gratuidade.
A consequência prática foi o que tinha que
ser: ruptura com o pai, rico comerciante e, consequentemente, com a sociedade
que este representava. Só lhe restou trocar de lugar social, mudando seu
endereço do meio dos mais ricos para o meio dos paupérrimos.
O resto da sua vida foi a saga de um louco:
"O Senhor me chamou pra ser um novo louco no mundo", escreve em seu
testamento. O que resultou dessa
loucura? Sigismundo Freud responde ao
reconhecer nele o ser humano que mais longe levou a expressão do amor, capaz de
criar laços entre os seres mais estranhos.
Hoje muitos tentam reencontrar a natureza
com intenções variadas, seja com finalidade terapêutica ou um sentimento
holístico ou uma condição tardia de sobrevivência. S. Francisco procura as
criaturas respeitando desde o início, sua identidade original. Não as procura
com o intuito de possui-las, de usá-las, mas sim de irmanar-se com elas. Para
ele uma flor é sempre uma flor e não um objeto de decoração de nossa sala. Um
cachorro é um cachorro e não um guarda fiel da nossa casa. Ao contrário da
maioria, que só consegue amar as coisas, prendendo-as a si, só consegue
apreciá-las adquirindo-as e, logo que as possui, confinando-as.
A cupidez da posse impede a contemplação
da beleza, impede o desfrute do prazer que os seres vivos só partilham com quem
não os faz sentir-se ameaçados. É desta maneira que S. Francisco resgata o dom
natural, que perdemos há milhões de anos, de comunicar-nos harmoniosamente com
as demais criaturas.
A pandemia do coronavirus obrigou os
entendidos e os que querem entender, a avançar mais em suas pesquisas e
descobertas. Cedamos a palavra a um epidemiologista de renome internacional, o
africano Bernard Bentt: "A crescente aproximação entre animais selvagens e
humanos, a invasão de seus habitats naturais, as mudanças climáticas, o tipo de
desenvolvimento econômico e de urbanização facilitam a disseminação de
patologias entre seres humanos e animais. Quando degradamos seus ambientes
selvagens ou estabelecemos nossos assentamentos em suas áreas, tornamo-nos
parte do eco-sistema e do ciclo selvático de transmissão viral que ocorre entre
animais das florestas".
Em suma, a natureza sabe cuidar de si
mesma. O nosso papel é conservá-la e proteger sua biodiversidade. S. Francisco
nos ajudaria a reaver cristãmente a antiga crença mitológica no amor cósmico;
segundo esta, nada do que possui vida sobrevive sem o impulso de uma energia
amorosa. E assim todas as criaturas seriam vistas como uma universal teofania.
Frei
Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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