Leonardo Boff
A primeira palavra de
Jesus quando apareceu publicamente foi: “O Reino tão ansiado foi aproximado e
mudem de mente e de coração” (Cf.Mc 1,14). Reino, contrariamente à expectativa
dos judeus, não era o restabelecimento da antiga ordem, a libertação política
contra a dominação romana que tanto os envergonhava. Reino de Deus, para Jesus,
é outra coisa: consiste numa nova relação de amorosidade entre as
pessoas, incluindo a todos, até os ingratos e maus (Lc 6,35). O que prevalece
agora é essa proximidade de Deus (ele se fez o mais próximo dos próximos) feita
de amor e de misericórdia ilimitada.
Nâo há uma condenação
eterna, só temporal.
A condenação é invenção
das sociedades. Deus não conhece uma condenação eterna, pois sua misericórdia é
sem limites.Se houvesse uma condenação eterna, Deus teria perdido. Ele não pode
perder nunca nada “daquilo que ele criou com amor, pois, não odeia nenhum ser
que pôs na existência senão não o teria criado, porque é o
apaixonado amante da vida” (cf. Sab 11,24-26). Deixa as 99 ovelhas resguardadas
e vai em busca da tresmalhada até encontrá-la.
Atesta-o o salmo 103, dos
mais esperadores textos bíblicos:”Deus não está sempre acusando.Como um pai
sente compaixão pelos filhos, assim ele se compadece…porque conhece nossa
natureza e se lembra de que somos pó; sua misericórdia é de sempre para
sempre”(Sl 103- 6-17).
Esta mensagem inovadora
de Jesus – a proximidade incondicional e a misericórdia ilimitada do Deus-Abba –
foi e é tão inovadora que foi e é vivida por poucos e é rejeitada
pela grande maioria, como ocorreu no tempo em que ele perambulava pelas
pedregosas estradas da Palestina.Não se deve esquecer que foram os
políticos mas principalmente os religiosos que condenaram e levaram à
cruz. Nas palavras do Pe.Júlio Lancellotti somos desafiados a viver
o “amor à maneira de Deus”(título de seu livro, Planeta, 2021) começando
pela população de rua, pelos discriminados por causa da cor de sua pele ou de
sua origem os quilombolas, as mulheres lésbicas, os homoafetivos e os LGBTI, os
pobres covardemente odiados pela “elite do atraso”,(a maioria apenas
culturalmente cristã mas a séculos luz da Tradição de Jesus),ignorantes da
amorosidade e da proximidade do Deus-Abba para com eles também.
A grande tragédia vivida
por Jesus foi o fato de que essa proximidade de Deus amoroso, não foi
acolhida:“veio para o que era seu, e os seus não receberam”(Jo 1,11). Por isso
o crucificaram, porque não houve correspondência. Essa recusa se prolonga pelos
séculos até aos dias de hoje, talvez com mais ferocidade ainda, pois o ódio e a
discriminação campeiam pelo vasto mundo.
Não importa. Embora se
sentisse Filho do Deus-Abba identidcando-se com Ele “não fez caso
dessa situação de Filho bem amado; por solidariedade apresentou-se como simples
homem na condição de servo, aceitando o mais vergonhoso castigo,
morrer na cruz que significava morrer na maldição divina (cf. Flp 2,6-8).
A grande recusa da
proximidade de Deus
Por causa do amor que lhe
ardia dentro, Jesus assumiu sobre si, solidariamente, esse tipo de morte
amaldiçoada e todas as dores do mundo; todo tipo de maledicência contra
ele, suportou a traição dos apóstolos, Judas e Pedro, a sorte
daqueles que já não creem ou se sentem abandonados por Deus e até recebeu séria
ameaça de morte que depois se efetivou. Como tantos no mundo, ele também foi
tomado de angústia e de pavor, a ponto de “o suor tornou-se grossas gotas de sangue”(Lc
22,41) como no Jardim do Getsêmani. Na cruz quase no limite do desespero do
qual muitos são também tomados e ele o quis em comunhão com todos eles, sentir
também, gritou:”Meu Deus, por que me abandonaste”(Mc 15,34)? A proximidade de
Deus estava em Jesus mas recolhida, para que ele pudesse participar
do inferno humano da morte de Deus, sofrida por não poucas pessoas. Todos
estes, não estarão jamais sozinhos. O credo cristão reza que “ele desceu aos
infernos”, significa: sentiu estar absolutamente só, sem que ninguém o pudesse
acompanhar. Mas o Deus-Abba estava também lá como ausente. Desde este
momento ninguém estará sozinho no inferno da absoluta solidão humana.Jesus
esteve e estará com todos eles.
A ressurreição de Jesus
que representa uma verdadeira insurreição contra a religião da Lei e a justiça
do tempo, comparece como um clarão que vai mostrar, em total plenitude,
esta proximidade de Deus que nunca se ausentou. Ela estava totalmente lá,
sofrendo com os que sofrem. Os negadores e os ateus tem a liberdade de
serem o que são, de não acolherem ou sequer saberem desta proximidade de Deus,
mas isso não muda nada para Deus-Abba que nunca os abandona
porque não deixam de serem seus filhos e filhas, sobre os quais
repete:”Vocês são meus filhos e filhas bem amados com vocês me regozijo”.
Mas cabe ponderar: se não
puderem enxergar uma estrela no céu límpido, a culpa não é da estrela, mas de
seus olhos. Pelo fato do amor ilimitado e da misericórdia sem fronteiras
são também eles abraçados por Deus-Abba embora se neguem de
abraçá-lo. Mesmo não vista, a estrela estará brilhando.
O verdadeiro e real
cristianismo é viver esta Tradição de Jesus. A maioria das igrejas cristãs, não
excluída a romano-católica, se organizam redor do poder sagrado que
cria desigualdades, firmada sobre um grosso livro doutrinário chamado de
Catecismo, vinculadas a certa ordem moral, à uma vida piedosa, à recepção
dos sacramentos, à participação nas festas litúrgicas.Tudo isso não
é sem importância. Mas difícil e raramente se propõem a viver o amor incondicional
e ensaiar amar à moda de Deus e à moda de Jesus, privilegiando aqueles que ele
privilegiou, os últimos, os que não são, nem contam. Onde impera o poder, não
viceja o amor nem floresce a ternura e a proximidade do Deus-Abba e de sua
misericórdia, sempre presentes.
Não há como negar que,
historicamente, grande parte da Igreja romano-católica estava mais perto dos
palácios do que da gruta de Belém, mais considerando o madeiro da cruz do que
aquele que lá está crucificado por solidariedade com todos, com os perdidos e
caídos nas estradas.
A grande inversão: a
conversão do pai e não do filho pródigo
Como tudo seria diferente
neste mundo se esta inaudita revolução tivesse prosperado em nosso mundo. Não
haveria o que estamos assistindo em nosso país e, em geral, em tantas partes, a
prevalência do ódio, da discriminação, da violência contra os que não podem se
defender e especialmente hoje contra a natureza que nos garante as bases que
sustentam a vida e a Mãe Terra.
Por esta razão, Jesus,
mesmo ressuscitado, continua se deixando crucificar com todos os crucificados
da história sob as mais diversas modalidades.
A parábola do filho
pródigo revela como é a Tradição de Jesus. O fato novo e surpreendente não é
a conversão do filho que volta arrependido para a casa do pai.
Mas a conversão do pai que,cheio de misericórdia e amor, abraça,
beija e organiza uma festa para filho, esbanjador da herança. O único
criticado é o filho bom, seguidor da Lei. Tudo nele era perfeito, Para Jesus,
não bastava, porém, ser bom. Faltava-lhe o principal: a misericórdia e o
sentimento da proximidade do Deus-Abba até em seu irmão perdido pelo
mundo.
O futuro da revolução
espantosa de Jesus
Experimentamos tudo na já
longa história humana, mas ainda não experimentamos coletivamente amar
à moda de Jesus e do Deus-Abba. No entanto, muitos homens e mulheres o
entenderam e viveram: estes são os verdadeiros portadores do legado de Jesus,
os testemunhos da proximidade de Deus, especialmente àqueles referidos pelo
evangelho de São Mateus: ”eu era forasteiro e me hospedaste, estava nu e me
vestiste, estava com fome e me destes que comer, esta na cadeia e
me visitaste”(Mt 25,34-30). Nisso se revela a Tradição de Jesus que se
sentia tão unido ao Deus-Abba a ponto de dizer: “Quem me viu, viu o
Pai”(Jo 14,9). E diz a todos estes: ”Todas as vezes que fizestes a
um destes meus irmãozinhos e irmãzinhas menores, foi a mim que o fizestes (Mt
23,40).
Chegaremos um dia ver
acolhida a proximidade de Deus, indistintamente da situação moral, política e
ideológica das pessoas (pensemos nos torturadores das ditaduras militares)
mesmo que o recusem explicitamente e abusam de seu nome (como o
nosso chefe de Estado, inimigo da vida)? Ganhará centralidade esta
verdadeira revolução transformadora do mundo?
Francisco de Assis e Francisco
de Roma, junto com um exército de pessoas, muitas delas anônimas, ousaram esta
aventura, acreditaram e acreditam que por aí passa a libertação dos seres
humanos e a salvaguarda da vida e da Mãe Terra ameaçadas. A gravidade da
situação atual nos coloca esta disjuntiva: ”ou nos salvamos todos ou ninguém se
salva” como o Papa Francisco o diz enfaticamente na Fratelli tutti (n.32).
A Mãe Terra se encontra em permanente dores de parto até que nasça, naquele dia
que só Deus sabe quando, o ser novo, homem e mulher, juntos com
a natureza, habitarão a única Casa Comum. Então como profetizou um
filósofo alemão do princípio esperança, que “o verdadeiro Gênesis não se
encontra no começo mas no fim”. Só então “Deus viu tudo quanto havia feito e
achou que estava muito bom”(Gen 1,31).
Ou faremos esta conversão
ao sonho do Nazareno que nos trouxe a novidade da proximidade de Deus(o mais
próximo dos próximos) que sempre está em nossa busca, mesmo nas sombras do vale
da morte, ou então devemos temer por nosso futuro. Ao invés de sermos os
cuidadores do ser, fizemo-nos sua ameaça mortal. Mas aquele que está no meio de
nós e jamais retira sua proximidade, tem o poder de, das ruínas, forjar
um novo céu e uma nova Terra. Então tudo isso terá passado. As lágrimas
serão enxugadas e todos serão consolados por Deus-Abba. Começará a
verdadeira história de Deus-Abba com seus filhos e filhas bem
amados pela eternidade afora.
Leonardo Boff é teólogo e
escreveu Jesus Cristo Libertador (Vozes,1972/2012); Paixão de
Cristo-paixão do mundo (Vozes(2012): A nossa ressurreição na morte(Vozes 2010).
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