FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(24/09/2021)
Crendo antes que o amor humano é dom
divino e transcende tempos, espaços, raças, culturas e classes sociais, me
atrevo a levantar uma questão: o modelo de vida imposto pelo atual Sistema
dominante favorece ou boicota a prática do amor? Eu mesmo não ousaria dar uma
resposta que não fosse dialética: nem um "não" total nem um
"sim" absoluto.
De tanto produzir o virus do
individualismo, o nosso modelo de sociedade hedonista gera o seu antídoto: a
sede de autenticidade. O fracasso da tecnologia em cumprir suas promessas de
felicidade provocam o retorno a valores tradicionais, tidos em conta de
envelhecidos e inúteis. Por outra parte, a sociedade de consumo oferece o
produto pronto para uso imediato; você o adquire, utiliza, deleita-se, joga
fora a embalagem e recomeça a inútil maratona à procura do objeto que sacie sua
insaciável fome de ser feliz. Não se exige esforço prolongado, não há
necessidade de ser inteligente, criativo, original. Basta que se abram os olhos
e a bolsa. Num mundo de cidadãos e cidadãs continuamente apressados, uma oferta
assim seduz como um presente de deuses.
O que tem isso a ver com o amor? - Muito! Considere-se que este shopping-center
global em que virou o planeta terra exibe milhões de objetos do desejo
acessíveis às pessoas que se amam, tornam-se formas de dar materialidade aos
seus sentimentos e emoções. Prova disso é a superlotação das lojas nos dias
convencionados para se demonstrar amor: dia da criança, dia dos namorados, dia
das mães, etc.
Ora, o verdadeiro amor não se contenta com
coisas prontas, acabadas. Ele esconde em si um impulso criativo. Ele mesmo quer
gerar e criar, e se compraz em aventurar e correr riscos. Nunca se tem certeza
sobre o final de suas iniciativas. Os seus parceiros não são pré-moldados, seu
bom êxito não tem garantia antecipada, não
lhe adianta publicidade, somente
a eles, os parceiros, cabe construir a unidade que supõe diversidade. Em suma,
a mais perfeita tecnologia não casa com a utopia do amor que visa crescer e
perpetuar-se.
Todos os amantes do mundo sabem disso
teoricamente. Na prática, a frágil natureza humana, fustigada pela máquina de
consumo e produção, prefere ter em mãos o que é mais fácil, imediato e
prazeiroso. E facilmente se confunde o objeto do desejo com o sujeito do amor.
Reduz-se o amor ao simples desejo. Daí a catástrofe das relações provisórias e
descartáveis, com prazo de validade determinado pelo tempo em que durar a
satisfação.
A pandemia do coronavirus chegou
desmontando todos estes esquemas armados pelo Poder Econômico. Suas lojas
esvaziaram-se e redescobrimos os lugares onde amar é construir vidas e outros
onde amar é salvar vidas: o convívio familiar, os leitos dos hospitais, os
espaços de socorrer os amedrontados, de estar atento aos solitários, de
solidarizar-se com os parentes das vítimas, de revalorizar os pequenos gestos,
as palavras confortantes, as coisas simples, os protestos em prol da saúde
pública, a fé engajada.
Aprendemos que a essência mais íntima do
amor está na doação.
Esvaziaram-se também os templos, e
compreendemos que Deus não se deixa confinar, que Ele mora no mundo, usa nossos
trajes e estar a nos dizer o tempo todo: "o que fizerdes a estes, é a mim
que estais fazendo". Reaprendemos, enfim que o amor não termina na
experiência que dele fazemos, pois tudo que amamos pode ser tirado de nós, mas
o amor não; ele sempre volta, em outras
formas ou em outras pessoas.
Enquanto pressentimos o fim da pandemia,
escutemos a advertência de Jesus a Nicodemos, que o foi procurar nas trevas da
noite: "em verdade, em verdade te digo: quem não renascer não verá o Reino
de Deus" Jo.3,3.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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