Leonardo Boff
Nas
religiões, os seres humanos buscam a Deus.Na Tradição de Jesus é Deus que busca
os seres humanos. Na primeira, o fazem pela oração oral, pela meditação
silenciosa, pela observância dos preceitos religiosos e éticos, pela
participação das festas e dos ritos e pela memória das tradições. Quanto mais
reta e fiel for a pessoa, mais meritoriamente chega a Deus.
Na
Tradição de Jesus ocorre o contrário: É Deus que busca o ser humano,
especialmente aquele que se sente perdido, que não leva uma vida
virtuosa e que julga ter sido abandonado por Deus. Logicamente, nesta Tradição
também se reza e se conservam as tradições religiosas, se vive eticamente e se
frequentam os cultos e as festas. Englobando tudo: observa-se a Lei. Mas não é
aqui que reside a novidade.E não é por esses meios que acolhemos a singularidade
trazida por Jesus.
A
experiência originária de Jesus: a proximidade de Deus
Num
obscuro vilarejo,Nazaré, tão insignificante que nunca ocorre nas Escrituras do
Antigo Testamento, vive um homem desconhecido cujo nome nunca
constou na crônica profana da época, seja de Jerusalém, seja de Roma. Ele
pertence ao grupo dos chamados “os pobres de Javè” que são os humildes e
invisíveis mas cuja característica consiste em viver uma profunda fé no Deus
dos pais, Abraão,Isaac e Jacó e uma inabalável confiança em Deus de que
vai realizar o que os profetas anunciaram:a justiça para os pobres, a proteção
das viúvas e a elevação dos humilhados e ofendidos. Esse homm é Jesus de
Nazaré.
De
profissão é um artesão-carpinteiro como seu pai José. Até a idade adulta viveu na
família a espiritualidade dos pobres de Javé.Era conhecido no vilarejo como “o
filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe”(Jo 6,42) ou simplesmente “o
carpinteiro, filho de Maria” (Mt 5,3) ou “o filho de José”(Lc 4,22).
Mas ele
mostrava uma singularidade que deixou perplexos os pais.Não chamava a Deus como
se costumava, mas de uma forma bem própria: de Abba o
diminutivo infantil de “meu querido paizinho”. Isso ficou claro quando aos 12
anos participou, com os pais, da romaria anual a Jerusalém e por lá ficou
perdido. Encontrado, sob a angústia dos pais,diz:”Não sabíeis que eu devia
ficar no casa do meu Pai (Lc 2,50)? Perplexos,
seus pais não entenderam esta linguagem inaudita (Lc 2,5). Maria, no entanto,
guardava-o em seu coração (Lc 2,51). E tudo morreu ai. Não se sabe nada de sua
vida oculta, profissional e familiar. Apenas o evangelista Lucas observa
tardiamente pelos anos 80 dC:”Jesus progredia em idade, em sabedoria e graça
diante de Deus e dos homens”(Lc 2,52).
Abstraindo
os evangelhos da infância de Mateus e de Lucas, carregados de significação
teológica posterior, todos os evangelistas começam suas narrativas pelo batismo
de Jesus por João Batista. Foi então, testemunham os relatos, que ocorreu
uma grande transformação na vida do ignoto Nazareno. Quando ele ouviu a
fama de João Batista, vindo do deserto, que batizava junto ao rio Jordão, não por
curiosidade mas por seu espírito profundamente piedoso, se uniu à multidão e
foi também ver João e o que estava acontecendo por lá. Multidões acorriam de
toda a Palestina, pois o Batista pregava a iminente vinda do Reino (a nova
ordem querida por Deus) e cobrava do povo penitências em vista desta
irrupção. Provavelmente Jesus tenha conversado com ele e com seus
discípulos.
Mas
chegou o momento em que junto com a multidão e não sozinho como mostram as
gravuras, Jesus entrou na água. A um sinal do Batista, ele mergulhou na água e
assim se deixou batizar, como faziam todos.Mas eis que ocorreu nele algo
especialíssimo. Depois de batizado, enquanto rezava, diz o texto de Lucas
(3,21), sentiu um tremendo frêmito interior. Foi invadido por uma onda de
ternura tão avassaladora que comoveu todo seu interior:”Tu es meu filho amado,
em ti pus meu agrado”(Mc 1,10-11). Lucas é mais explícito e diz o que Jesus
ouviu:“Tu és meu Filho amado, eu hoje te gerei”(Lc 3,21-22).
A
linguagem bíblica expressa a experiência interior usando expressões pictóricas
e simbólicas: o céu se abriu e se viu o Espírito descer sobre ele em forma
corpórea de pomba.
Trata-se
de uma encenação plástica para expressar uma radical e originalíssima
experiência espiritual, vivida por Jesus, impossível de ser expressa por
palavras. A partir daí ocorreu uma verdadeira revolução em sua vida: sente-se
filho amado pelo Deus-Paizinho querido. É invadido por
uma paixão de amor divino que transtornou sua vida. Experimentou uma absoluta e
direta proximidade de Deus. Não é mais ele que busca Deus. É Deus que o buscou
e o assumiu como seu filho querido.
A
espantosa revolução: a proximidade amorosa do Deus-Abba
Como em
todas as coisas tudo conhece um processo. Com Jesus não foi diferente.Foi
lentamente se dando conta da proximidade de Deus, consoante a idade, até
irromper em plena consciência ao se batizar no rio Jordão na idade de 30 anos.
Uma coisa é ser objetivamente o Filho bem
amado de Deus e outro é subjetivamente dar-se
conta desse fato. No batismo no rio Jordão, ocorreu esse salto da consciência
por ocasião dessa visitação concretíssima do Deus-Abba.
Aqui se
encontra a grande singularidade relatada pelos evangelistas: testemunhar
a proximidade de Deus, do Deus que busca intimidade com o
ser humano, com Jesus de Nazaré. Essa proximidade é com todos os seres
humanos, independentemente de sua condição moral e situação de vida. Trata-se
do transbordamento gratuito do amor de Deus para com todos os seus filhos e
filhas.
Com isso
se inaugura um novo caminho, diverso daquele da observância da Lei e das
distinçõe que se fazem entre bons e maus, justos e injustos. Estas coisas têm
lá sua razão de ser na convivência humana. Mas não é por ai que Deus vê e julga
os seres humanos. Seu olhar e sua lógica é totalmente outra como se revelou
em Jesus,membro grupo dos pobres de Javé.Nele irrompe um amor
divino ilimitado a começar por aquele que nunca falam,que não
frequentaram algum escola de teologia, no máximo, a escolinha bíblica
junto à sinagoga. O Nazareno veio deste meio. Não pertence ao mundo dos
letrados, dos juristas, da casta sacerdotal e de algum status social. É um
anônimo,mais afeito ao trabalho das mãos do que ao uso da paalavra.
De
repente tudo mundou: inundado pela proximidade amorosa de Deus põe-se a pregar
com tal entusiasmo e sabedoria a ponto de os ouvintes comentarem: “Donde lhe
vem tal sabedoria? Não é ele o filho do carpinteiro (Mc 6,23,Mt 13, 54-55)?
Seus privilegiados são os pobres, sempre covardemente desprezados, come com os
pecadores, aproxima-se dos cobradores de impostos,odiados pelo povo pois são
aliados das forças de ocupação romana(Mc 2,216). Chamam-no até de comilão e
beberão porque aceita o convite de comer na casa de pecadores (Mt 11,19). Rompe
os tabus religiosos da época ao conversar com um mulher samaritana, ao defender
outra mulher pega em adultério e deixar que seus pés sejam ungidos com raro
perfume, beijados e com os cabelos enxugando as lágrimas de Maria
Madalena,tida de má fama.
Frequentando
gente de má fama Jesus lhes mostra a proximidade de Deus
Por que
faz isso? Porque quer levar a todos, especialmente a estes socialmente
desqualificados, os hanseniano, os paralíticos, os cegos mas também os
pecadores públicos, os desesperados, a novidade de que Deus se aproximou de
todos eles. Jesus, transbordando de amor do Deus-Abba vai a
seus irmãos e irmãs e lhes anuncia essa novidade da proximidade incondicional
de Deus que se fez para todos o “paizinho amoroso”. O
decisivo não é a Lei e as tradições cuidadosamente observadas mas aceitar
aquilo que Deus-Abba disse
a Jesus e que agora o repete para eles, pouco importa o que fazem na vida, como
é sua condição religiosa e moral. Apenas lhes diz: “vós sois meus filhos e
filhas amados em vós encontro meu regozijo”. Isso soa primeiramente como um
espanto e depois como uma inaudita alegria e libertação. Dizem: eis a boa
nova,eis o evangelho. Esta surpreendente pro-posta precisava e precisa de uma
res-posta.Exige mudar a mente e o coração. E o foi? Eis a questão (segue).
Leonardo
Boff é teólogo e escreveu Jesus Cristo Libertador,
Vozes,(1972/2012); Paixão de Cristo-paixão do mundo ,Vozses (2012): A nossa
ressurreição na morte, Vozes (2010).
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