Marcelo Barros
Neste último domingo de setembro, as comunidades
católicas festejam o Dia da Bíblia. No entanto, já há 50 anos, todo setembro é
considerado mês da Bíblia. Nele, cada ano, grupos e comunidades aprofundam algum
tema, ligado a um livro bíblico. Em 2021, o livro escolhido foi a Carta aos
Gálatas e o lema tirado do hino batismal que ocupa o centro da carta: “Pois, todos vós sois UM só em Cristo Jesus”
(Gl 3, 28).
Este lema pode ajudar as comunidades a descobrirem na
Bíblia resposta para os conflitos que opõem cristãos entre si quando se
defrontam com a realidade social e política do país.
Desde o começo do Cristianismo, as comunidades
eclesiais sempre tiveram em seu seio pessoas
e grupos com diferentes posições sociais e políticas. E as Igrejas cristãs veem
a catolicidade como sua vocação, porque devem ser capazes de conviver com as
diversidades.
Pelos anos 50 do primeiro século, na região que
atualmente compreende a Turquia, Paulo fundou algumas comunidades cristãs.
Nelas, havia crentes de diversas culturas. Alguns membros, de origem judaica,
defendiam que para ser cristãos, todos deveriam obedecer às leis do Judaísmo. Outros,
vindos das culturas locais e de religiões orientais se sentiam mais livres. Diante
do conflito entre os dois grupos, Paulo
não ficou neutro. Tomou posição por uma Igreja aberta e em saída, como propõe o
papa Francisco, mas respeitou a diversidade. Primeiramente, a sua carta insiste
que “judeus ou gregos, escravos ou
livres, homens ou mulheres, todos que somos batizados no Cristo somos iguais e
devemos ser unidos (UM só) em Cristo” (Gl 3, 27- 28). A partir da igualdade
de todos, Paulo defende a liberdade. Não proíbe cristãos de cultura judaica a obedecerem
às normas do Judaísmo, mas esses não têm direito de exigir isso dos outros. A
fé em Cristo é força libertadora “Foi para que sejamos livres que Cristo nos
libertou” (Gl 5).
Na nossa realidade, a proposta das comunidades
aprofundarem a leitura e interpretação da carta aos gálatas pode ajudar a impedir
que a Bíblia seja usada como pretexto para o racismo religioso. Podemos
interpretar a Bíblia de diversas formas. Cada leitura é sempre parcial e pode
ser completada. No entanto, ninguém tem direito de usar a Bíblia e a fé em
Jesus como pretexto para perseguir e atacar comunidades de cultos
afro-brasileiros ou de outras religiões. A Bíblia não justifica posturas moralistas
e discriminatórias contra a igualdade de gêneros e a diversidade sexual. Não é
honesto ler ao pé da letra um texto escrito há mais de dois mil anos e em outro
contexto cultural e geográfico para justificar posições antropocêntricas que
veem o ser humano como superior à natureza.
Lamentavelmente, parte da hierarquia católica, como
também de pastores evangélicos e grupos de diversas Igrejas ainda pregam o
evangelho de forma dogmática e arrogante. Ao fazerem isso, continuam o caminho
dos colonizadores que usaram a Bíblia para justificar a violência da conquista.
Dão razão a quem usa a Bíblia como arma que legitima opressões e dores à humanidade
e ao planeta. É preciso purificar a leitura bíblica e o modo como se fala de
Deus. É preciso revelá-lo como Amor e Compaixão e não como déspota que impõe a
sua vontade e castiga impiedosamente quem não o obedece.
No Brasil, há mais de 40 anos, esse esforço de
libertar a Bíblia de uma leitura fundamentalista levou um grupo de cristãos e
cristãs a fundarem o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). A inspiração e a
iniciativa vieram do querido irmão, frei Carlos Mesters, profeta da leitura
libertadora da Bíblia, que neste próximo outubro, completará 90 anos, dos quais
a maioria a serviço da Bíblia e das comunidades da caminhada.
O Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) parte do princípio
de que a Bíblia é a escritura da
palavra de Deus. É como uma partitura musical que só se torna música à medida
que é executada. Assim, a Bíblia só se revela palavra divina à medida que é
proclamada e vivida nas comunidades.
O CEBI sempre defendeu que o terreno melhor para se
ouvir e praticar a palavra de Deus é a comunhão com os mais pobres. É a partir
da vida dos oprimidos que, na leitura comunitária e orante da Bíblia, vamos
discernindo a revelação de um projeto
divino de justiça, amor e vida para a humanidade e todo o universo. Se
continuamos a amar a Bíblia e acolhemos sempre sua mensagem é porque, como
lembrava o papa Paulo VI: “para se
encontrar a Deus, é fundamental se encontrar o ser humano”.
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