Maria Clara Lucchetti
Bingemer
O momento em que vivemos é marcado profundamente
pela experiência de perda. Vamos perdendo pelo caminho a cada dia: saúde,
energia, confiança, vida, pessoas, afetos, companhia. Perdemos o jeito de viver
que conhecíamos, perdemos os gestos que expressavam nossos sentimentos mais
profundos. Perdemos a orientação segura, o norte claro. E perdemos as
referências.
Quando se perde as referências, há um sentimento de
total vazio e perplexidade em nós. Necessitamos referir-nos a algo para
nos situarmos no mundo e na existência. Nossas referências nos dizem quem
somos, o que amamos, o que sabemos, o que pretendemos. Essas referências
podem ser símbolos textos, músicas, livros. E podem ser pessoas. As
referências que hoje me doem são pessoas que perdemos, cuja perda ao mesmo
tempo em que nos desola nos ilumina.
Primeiro foi Moraes Moreira. Seu talento e o jeito
bom de ser nos encantavam há décadas. Este baiano que se fez carioca
tinha uma simpatia, um jogo de palavras, um ritmo, que escancaravam a cara do
Brasil onde quer que fossem tocadas suas músicas e canções deliciosas. “Festa
do Interior” na voz aguda e bela de Gal Costa nos remetia ao interior do nosso
imenso país, às festas de São João, cheias de luzes e balões. “Preta Pretinha”
nos transporta para a África mãe e mítica, com seu batuque e gingado únicos e
inconfundíveis. E a canção profética de lá vem o Brasil descendo a
ladeira nos presenteou com um emblemático diálogo entre o poeta, o sambista e o
povo: cadência, morro, asfalto, mulata, sola, salto. Tudo estava lá na
música desse novo baiano, amado por todos e cheio de gênio e poesia.
Depois foram, no mesmo dia, Flávio Migliaccio e
Aldir Blanc. O primeiro, grande ator, decidiu interromper a vida por
cansaço de viver no país que era o seu. Na carta que deixou e foi tornada
pública pela mídia, Flávio dizia que a velhice no Brasil era como tudo aqui.
Triste e amargurado, despedia-se com a impressão de haver vivido 85 anos
jogados fora nesse país que sua arte ajudou a construir. Porém, ao mesmo tempo
em que escrevia uma frase que transpirava desesperança – “A humanidade não deu
certo...”, pedia como que se desmentindo a si próprio, teimando na
esperança: “ Cuidem das crianças de hoje”. Quem morre pensando no futuro
que são as crianças mostra que a esperança e a inabalável grandeza de ser
humano não o desertou. Flávio Migliaccio é referência. E assim o reforça
seu amigo e colega Lima Duarte, em comovente depoimento, onde afirma não ter
tido a coragem que teve Migliaccio.
No mesmo dia em que nos deixava o grande ator
Migliaccio o Brasil perdia igualmente seu mestre sala dos mares, seu bardo da
liberdade e da anistia: Aldir Blanc. Aldir cantou como poucos a amizade, forma
e expressão privilegiada do amor. Cantou o desejo de justiça e igualdade com “O
Mestre Sala dos mares”, canção que enaltece o líder negro da revolta da
chibata, João Cândido Felisberto. Poeta e profeta da liberdade,
devemos igualmente a Aldir Blanc a belíssima canção imortalizada na igualmente
imortal voz de Elis Regina “Querelas do Brasil”. Definitivamente Aldir
sabia que o Brazil não conhece o Brasil, o Brazil nunca
foi ao Brasil. Talvez nunca como hoje seus versos se mostram tristemente
verdadeiros.
Porém, é a bela “O bêbado e a equilibrista” que
ressoará em nossos ouvidos cada vez que desejarmos respirar liberdade nesses
ares contaminados do Brasil de hoje. Considerada o hino da anistia,
celebrando os últimos estertores da ditadura militar que nos oprimiu por
décadas e ceifou tantas vidas, a canção falava de mortes e exílios, de luto e
arte, de sonhos e de esperança equilibrista, reafirmando o papel do artista
como cantor comprometido com a liberdade e a justiça.
Referências que se foram, cuja partida nos
empobrece assustadoramente e cria vácuo à nossa volta. Fica, porém, seu
legado: a música de Moraes Moreira, a escrita refinada de Aldir Blanc, a arte
teatral incomparável de Flávio Migliaccio continuarão sendo referências para
nós se não nos deixarmos tomar pela desesperança.
Incompleta, minha lista de referências perdidas
pelo caminho pode ser transformada em nuvem de testemunhas. Assim diziam
os primeiros cristãos com respeito a seus mártires, executados em meio a
horríveis torturas. Eram como uma nuvem de testemunhas que os ajudavam a
não desanimar e a continuar lutando pelo Reino de Deus, de justiça,
fraternidade e amor.
Que essas referências e outras tantas que perdemos
pelo caminho nos ajudem a continuar acreditando no que escreveu Moraes Moreira
em sua última postagem, pouco antes de ser traído por seu grande coração, detido
fatalmente por um infarto, já em tempos de coronavírus: O que vale é o ser
humano/E sua dignidade/ Vivemos num mundo insano/ Queremos mais liberdade/Pra
que tudo isso mude/Certeza, ninguém se ilude/Não tem tempo, nem idade.
A teóloga
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
autora de “Santidade, chamado à humanidade” (Editora Paulinas),
entre outros livros.
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