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quinta-feira, 28 de maio de 2020

ÉTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA


Por Frei Betto

 

            A pandemia causada pelo coronavírus veio nivelar a humanidade. E suscitar sérias questões éticas. Não faz distinção de classe, como a anemia e o raquitismo, que resultam da fome; ou de gênero, como as doenças da próstata.

            Trata-se, agora, de enfrentar um inimigo invisível que exige urgente mobilização global para deter o seu avanço. E é em momentos de crise como este que as pessoas se revelam.

            A questão ética fundamental que a pandemia levanta é quanto ao valor da vida humana. Para o capitalismo, em si tem valor zero, a menos que revestida de adereços com valor de mercado e robustecida por bens patrimoniais e financeiros. Prova disso é o descaso humano em nossas cidades, cujas calçadas se enchem de pessoas maltrapilhas que sobrevivem da caridade alheia. Não têm valor nenhum e, ao cruzar com elas, muitos evitam se aproximar, receiam o mau cheiro e o assédio. 

            Suponhamos que um deles ganhe uma fortuna na loteria e, pouco depois, apareça a bordo de um reluzente Mercedes Benz. Imediatamente passará a ter valor social e ser reverenciado pelo respeito e pela inveja de quem o observa. Portanto, eis o patamar antiético ao qual o sistema capitalista nos conduz: valemos pelo que portamos e não pelo simples fato de sermos humanos.

            Agora, o espectro da morte nos nivela. A devastação letal provocada ocupa praticamente todo o noticiário. Somos todos obrigados a redimensionar nossos critérios, valores e hábitos. Até as nações mais ricas descobrem que o dinheiro não é suficiente para evitar a pandemia. Só a ciência é capaz de detê-la, mas andava muito ocupada em descobrir, nos laboratórios, como aumentar os lucros das empresas farmacêuticas, enquanto faltavam recursos para combater a fome e o aquecimento global.

            A Itália nos mostrou como a pandemia coloca sérios dilemas éticos. Médicos e enfermeiros tiveram que optar entre um e outro paciente, devido à falta de recursos suficientes. E nossos parentes e amigos infectados devem padecer sozinhos nos hospitais, sem que possamos consolá-los, exceto pelo celular quando ainda não entraram no respiradouro. 

           Os falecidos, não temos direito de pranteá-los no velório e nem mesmo cumprir seus últimos desejos, como ser enterrados ou cremados com tal roupa ou símbolo religioso. Como se fossem anônimos, são descartados tal como ocorria na Idade Média com os infectados pela peste. Estão proibidos de rituais fúnebres. Assim, o Covid-19 rouba-lhes a dignidade. E nos apunhala ao nos obrigar a ficar afastados de quem somos mais próximos. É uma tríplice morte: a individual, do paciente; a familiar, dos ausentes; a social, causada pela interdição de velório, enterro e culto religioso.

            Outra dimensão ética suscitada pela pandemia é o conflito entre solidariedade e competitividade. Todos conhecemos gestos meritórios de solidariedade visando a aplacar o nosso isolamento e favorecer o socorro às vítimas, como o da jovem do apartamento 404 que, todos os dias, prepara a refeição da idosa do 302, obrigada a dispensar a cozinheira; o empresário que distribui quentinhas aos moradores das ruas de sua vizinhança; o universitário que se apresentou como voluntário em um hospital disposto a carregar macas e limpar enfermos. Ou como o do bombeiro carioca Elielson dos Santos que, do topo da escada Magirus, oferece músicas com seu trompete a moradores do Rio. 

            Há que ressaltar também a solidariedade entre países que enviaram recursos a outros povos, especialmente Cuba, que deslocou centenas de médicos para reforçar o socorro na Itália, na Espanha, na França e em muitos outros países.

            No entanto, falou mais alto a competitividade, valor supremo do capitalismo. O chinês Jack Ma, fundador da plataforma de vendas online Alibaba e um dos homens mais ricos do mundo, ofereceu gratuitamente kits de testes para diagnosticar Covid-19 e respiradores a 50 países, inclusive Cuba. Porém, a transportadora aérea era de bandeira usamericana, e a Casa Branca, desprovida do mínimo senso humanitário, valeu-se do genocida bloqueio imposto à ilha do Caribe para impedir que a carga chegasse a seu destino. 

            Em nome de caprichos políticos, sacrifica-se a vida de nações. Algo semelhante ocorreu com o governo da Bahia, que comprou equipamentos da China no valor de R$ 42 milhões. Ao passar de navio pelos EUA, a encomenda foi apropriada pelo governo da nação imperial.

            As implicações éticas suscitadas pela pandemia se assemelham às de situações de guerra. O governo Bolsonaro, monitorado pelo FMI, havia aplicado ao Brasil rigoroso ajuste fiscal coroado pelo teto de gastos e os juros elevados. Desde a posse alegava não ter dinheiro e precisar promover reformas, como a da Previdência, para poupar recursos. 

            Dinheiro nunca falta quando se trata de pagar os juros da dívida pública e saciar o voraz apetite dos bancos. Desde que assumiu o Ministério da Economia, Guedes transferiu para os bancos R$ 433 bilhões, dinheiro do povo sonegado da educação, da saúde, do saneamento etc. O que vale mais, o lucro dos bancos ou a vida de milhões de brasileiros? 

            O combate à pandemia exigiu medidas urgentes e, como por milagre, apareceu R$ 1,3 trilhão! Recursos há, mas não vontade política de quem qualificou a pandemia de “gripezinha” e demonstrou não se importar com a morte em proporções geométricas.

            Deixo à nossa reflexão o poema “Esperanza”, do cubano Alexis Valdés:

 

Cuando la tormenta pase

Y se amansen los caminos

y seamos sobrevivientes

de un naufragio colectivo.

 

Con el corazón lloroso

y el destino bendecido

nos sentiremos dichosos

tan sólo por estar vivos.

 

Y le daremos un abrazo

al primer desconocido

y alabaremos la suerte

de conservar un amigo.

 

Y entonces recordaremos

todo aquello que perdimos

y de una vez aprenderemos

todo lo que no aprendimos.

 

Ya no tendremos envidia

pues todos habrán sufrido.

Ya no tendremos desidia

Seremos más compasivos.

 

Valdrá más lo que es de todos

Que lo jamás conseguido

Seremos más generosos

Y mucho más comprometidos

 

Entenderemos lo frágil

que significa estar vivos

Sudaremos empatía

por quien está y quien se ha ido.

 

Extrañaremos al viejo

que pedía un peso en el mercado,

que no supimos su nombre

y siempre estuvo a tu lado.

 

Y quizás el viejo pobre

era tu Dios disfrazado.

Nunca preguntaste el nombre

porque estabas apurado.

 

Y todo será un milagro

y todo será un legado

y se respetará la vida,

la vida que hemos ganado.

 

Cuando la tormenta pase

te pido Dios, apenado,

que nos devuelvas mejores,

como nos habías soñado.

 

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.

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