A despeito do título acima, não é minha
intenção falar sobre a morte e sim sobre alguns segredos que ela esconde, no
seu duelo com a vida, e, eventualmente, revela. Nestes tempos de pandemia, as
duas andam se encontrando com muita frequência e forçando-nos a proximidade com
seus insondáveis mistérios.
Esta semana ela me tomou um grande amigo e
vizinho, na rua onde moro, na Comunidade do Coque. Ela agiu com muita surpresa
e rapidez, não devia ter feito isso conosco. Não digo que levasse outro no
lugar dele, mas que poupasse o Osvaldo, poupasse o irmão indispensável àquela
Comunidade, tão carente de pessoas generosas, sonhadoras e combatentes. Pobre,
ele tinha clara compreensão sobre as verdadeiras razões de haver tantos
condenados à pobreza, e não recusava transformar em luta sua lucidez.
Fiz a encomendação do seu corpo (na Fé
católica, encomendar um corpo é depositá-lo nas mãos do Pai Celeste). Foi uma
cerimônia de cenas inusitadas e comoventes, envolvendo quatro presenças: as
duas filhas, o coveiro e o padre. E, naturalmente, a alma dele, não o corpo,
pois somente a alma podia explicar a transfiguração daquele momento. Realizei o
rito sagrado, pronunciei palavras de Fé e consolação, por meio de dois
aparelhos celulares, um em minhas mãos, outra nas de Ceça e Karla, suas filhas,
estando eu a uma distância de mais de mil metros. Foi impossível não misturar
as preces com as lágrimas.
Daí vieram as indagações: como chamar
estas mortes numerosas, violentas, indiscriminadas causadas pelo coronavirus?
Dar aos que se foram os rótulos tradicionais de defuntos, finados, mortos?
Seria empobrecer sua memória com palavras inadequadas. Chamá-los simplesmente
de "vítimas da pandemia? Não. Eles não são números a ser registrados em
relatório funcional ou ata de ofício.
É de estranhar que não se ouçam gritos de
revolta pelas perdas irreparáveis. A revolta parece tranferir-se para outras
áreas, como, por ex., a insensibilidade de um Presidente incapacitado e
patético.
Em meio a sensações de impotência, é
preciso escutar algumas vozes proféticas, intuindo o futuro. Uma destas
intuições vislumbra um mundo que "nunca mais será o mesmo", após a
pandemia. Haverá mudanças revolucionárias nos hábitos, com o aprimoramento da
qualidade de vida. Reaprenderemos o valor insubstituível das coisas simples, da
convivência fraterna, da partilha solidária de sofrimentos e emoções. Teremos
chances de construir uma Economia Solidária, do suficiente para todos, em lugar
do esbanjamento das minorias.
Se for esta a nossa convicção (ou nossa
firme esperança), então não há mais dúvidas, temos já um nome para designar as
vítimas fatais do COVID 19. São MÁRTIRES. No confronto com um Modelo de
Desenvolvimento, do qual pode resultar um cataclismo universal, foram
sacrificadas, deixando como legado, este grito de alerta: morremos em defesa da
Vida, ameaçada por formas enganosas de vivê-la, em um mundo desumanizado.
Talvez nossos netos contarão para seus filhos a história de um tempo em que
seus avós deram a vida a fim de que eles desfrutassem de uma existência
saudável e feliz.
Neste caso, o clamor destes mártires se
assemelha ao de Jesus, no Calvário: "Meu Deus, por que me
abandonaste?" E logo a seguir: "Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito". Este segundo grito de conformação carregava em si a semente da
ressurreição. Poucos dias depois, seus discípulos saíram espalhando por toda
parte a boa nova que chegou até nossos dias: "O SENHOR ESTÁ VIVO MO MEIO
DE NÓS".
Temos razões de sobra para repetir este
mesmo anúncio, ao lembrar os entes queridos que partiram: "ELES ESTÃO
VIVOS NO MEIO DE NÓS". Amém. Frei
Aloísio Fragoso.
Segue um poema que este assunto, algum dia,
me inspirou:
RENASCIMENTO
As
coisas pelas quais em vão cansei
E
as outras que alcancei, porém passaram,
Eternas
não seriam e floresceram
Pelo
tempo em que me ensinaram
A
ver a vida muito além da minha vida
E
as doces ilusões que inda sobraram
Entregues
para outras fantasias
Mais
claras do que quando a mim chegaram.
Quando
penso neste fim dos meus instantes,
Se
rompem as barreiras do presente
E
a morte me parece uma terra santa
De outras utopias delirantes,
Onde
a seiva do passado ressurgente
Faz
cada planta nascer de outra planta.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor.
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