Por Frei Betto
O
filósofo alemão Emmanuel Kant não anda muito em moda. Sobretudo por ter
adotado, em suas obras, uma linguagem hermética. Porém, em um de seus
brilhantes textos – O que é o Iluminismo? – sublinha um
fenômeno que, na cultura televisual que hoje impera, se torna cada vez mais
generalizado: as pessoas renunciam a pensar por si mesmas. Preferem se colocar
sob proteção dos “oráculos da verdade” multiplicados pelas redes digitais.
Esses
supostos guardiões da verdade velam, bondosamente, para não nos permitir
incorrer em equívocos. Graças a seus alertas sabemos que a COVID-19 não passa
de uma “gripezinha”; os médicos cubanos fazem trabalho escravo; o Estado, que
recolhe dinheiro da população, não pode gastar com a população...
São eles
que nos tornam palatáveis os bombardeios dos EUA no Iraque e no Afeganistão,
dizimando aldeias com crianças e mulheres, e nos fazem encarar com horror a
pretensão de o Irã fazer uso pacífico da energia nuclear, enquanto seu vizinho,
Israel, ostenta a bomba atômica.
São eles
que nos induzem a repudiar o MST em sua luta por reforma agrária, enquanto o
latifúndio, em nome do agronegócio, invade a Amazônia, desmata a floresta e
utiliza mão de obra escrava.
É isso
que, na opinião de Kant, faz do público Hausvieh, “animal
doméstico”, arrebanhamento, de modo que todos aceitem, resignadamente,
permanecer confinados no curral, cientes do risco de caminhar sozinhos.
Kant
aponta uma lista de oráculos da verdade: o mau governante, o militar, o
professor, o sacerdote etc. Todos clamam “Não pensem!” “Obedeçam!” “Paguem!”
“Creiam!” O filósofo francês Dany-Robert Dufour sugere incluir o publicitário
que, hoje, ordena ao rebanho de consumidores: “Não pensem! Gastem!”
Tocqueville,
em seu Da democracia na América (1840), opina que
o tipo de despotismo que as nações
democráticas deveriam temer é exatamente sua redução a “um rebanho de animais
tímidos e industriosos” livres da “preocupação de pensar”.
O velho
Marx, que anda em moda por ter previsto as crises cíclicas do capitalismo,
assinalou que elas decorreriam da superprodução, o que de fato ocorreu em 1929.
Mas não foi o que vimos em 2008, cujos reflexos perduram. A crise não derivou
da maximização da exploração do trabalhador, e sim da maximização da exploração
dos consumidores. “Consumo, logo existo”, eis o princípio da lógica
pós-moderna.
Para
transformar o mundo em um grande mercado as técnicas do marketing contaram com
a valiosa contribuição de Edward
Bernays, duplo sobrinho estadunidense de Freud. Anna, irmã do criador da
psicanálise e mãe de Bernays, era casada com o irmão de Martha, mulher de
Freud. Os livros deste foram publicados pelo sobrinho nos EUA. Já em 1923,
em Crystallizing Public Opinion, Bernays argumenta que governos e
anunciantes são capazes de “arregimentar a mente (do público) como os militares
o fazem com o corpo”.
Como
gado, o consumidor busca sua segurança na identificação com o rebanho, capaz de
homogeneizar seu comportamento, criando padrões universais de hábitos de
consumo através de uma propaganda libidinal que nele imprime a sensação de ter
o desejo correspondido pela mercadoria adquirida. E quanto mais cedo se inicia
esse adestramento ao consumismo, tanto maior a maximização do lucro. O ideal é
cada criança com um televisor no próprio quarto.
Para se
atingir esse objetivo, é preciso incrementar uma cultura do egoísmo como regra
de vida. Não é por acaso que quase todas as peças publicitárias se baseiam na
exacerbação de um dos sete pecados capitais. Todos eles, sem exceção, tidos
como virtudes nessa sociedade neoliberal corroída pelo afã consumista.
A inveja
é estimulada no anúncio da família que possui um carro melhor que o do vizinho.
A avareza é o mote das propagandas de bancos. A cobiça inspira todas as peças publicitárias,
do último modelo de telefone celular ao tênis de grife. O orgulho é sinal de
sucesso dos executivos assegurados por planos de saúde eterna. A preguiça fica
por conta da parafernália elétrico-eletrônica que prepara a sua refeição sem
que você tenha que sequer descascar uma batata. A luxúria é marca registrada
dos jovens esbeltos e das garotas esculturais que desfrutam vida saudável e
feliz ao consumirem bebidas, cigarros, roupas e cosméticos. Enfim, a gula
envenena a alimentação infantil na forma de chocolates, refrigerantes e
biscoitos, induzindo a crer que sabores são prenúncios de amores.
Na
sociedade neoliberal, a liberdade se restringe à variedade de escolhas
consumistas; a democracia, em votar em quem dispõe de recursos milionários para
bancar a campanha eleitoral; a virtude, em pensar primeiro em si mesmo e
encarar o semelhante como concorrente. Esta a pós-verdade proclamada pelos
oráculos do sistema.
Ocorre
que a evolução da natureza e da humanidade é feita também de fenômenos
imprevisíveis, como a COVID-19. Os robôs e os algoritmos podem disparar fake
news para tentar nos convencer de que a pandemia não é tão ameaçadora
como afirmam os cientistas. Mas o coronavírus ignora mentiras e verdades.
Anseia apenas penetrar uma célula humana e, em menos de vinte e quatro horas,
replicar-se em 100 mil cópias. Sua obsessão é perpetuar sua espécie, em
detrimento da nossa.
Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte –
leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
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