por Frei Aloísio Fragoso
De fato, o Coronavírus
nivelou as diferenças religiosas, étnicas e culturais. Nivelou-as pela base,
onde repousa a realidade essencial das coisas.
Ao observar uma
multidão de pessoas usando máscaras protetoras, o que vemos? Vemos apenas
aspirantes a novas vítimas da pandemia, se não se cuidarem. As máscaras
visíveis escondem as outras máscaras aparentes e já não se distingue quem é
mais bonito ou menos atraente. Desaparecem as diferenças discriminatórias e de
nada valem as maquiagens. Só ficam a descoberto os olhos e, como estes são a
janela da alma, não enganam.
Dominados por
sentimentos de medo e impotência, numerosas pessoas recorrem à proteção divina,
e aí repete-se o mesmo fenômeno: não se pergunta por nome de religião, mas
somente pelo que importa: Fé, Oração, Solidariedade, Esperança.
Aí está uma bela
imagem antecipada do Julgamento final, quando Deus perguntará apenas quem somos
e o que fazemos e não mencionará outros rótulos que acrescentamos ao nosso ser
e ao nosso agir (católicos, protestantes, islâmicos, carismáticos, pastores,
monsenhores, cardeais....todos estarão submetidos a uma única sentença: "o
que fizestes ao teu irmão, fizestes a mim" Mt.25,40).
Na vastidão desta
comunidade ecumênica, um grupo de crentes se reune pela Fé, a fim de suplicar
ardentemente a cura da pandemia. Outro grupo de profissionais da saúde planeja
seus trabalhos do dia seguinte, junto às
vítimas hospitalizadas. Um terceiro grupo de cientistas debate e partilha suas
pesquisas, na busca da vacina salvadora. Todos estes, não importa nação ou
religião, estão vivendo a mais autêntica espiritualidade, estão lidando com o
dom primeiro e maior de Deus, a vida.
Lembro-me, neste
momento, de uma das cenas mais emblemáticas do filme "Matrix". Um dos
líderes da resistência, Morpheu, pergunta a Neo, ainda assustado com as
novidades: você quer provar a pílula azul que o fará voltar à vida normal, ou a
pílula vermelha, que fará você ver o mundo como jamais o imaginou. Neo não
hesita. Pega a pílula vermelha na mão de Morpheu e a engole. E aí, quando a
consciência de Neo se expande e ele passa a ver o mundo como ele é, Morpheu o
saúda: - bem-vindo ao deserto da realidade.
No caso do COVID
19, não fomos nós os convidados a escolher entre a pílula azul ou a vermelha.
Esta última invadiu nosso mundo e nos pegou de surpresa. Será que, daqui a
alguns meses, ouviremos a mesma saudação "bem-vindos ao deserto da
realidade?" E o que será este deserto da realidade?
Assistiremos à
ruína dos ídolos em que depositamos nossos anseios de felicidade? Veremos
perder graça e valor os nossos mais
glamourosos objetos do desejo? Daremos adeus aos bens supérfluos, sentindo
gosto de veneno em qualquer coisa, além das que precisamos?
Não somos como os
animais que, desde o nascimento, carregam do corpo da mãe tudo que estão
destinados a ter e ser. Deus nos concedeu, desde que viemos a este mundo, as
sementes de todas as possibilidades. Podemos, pois, reinventar-nos e reinventar
a vida.
Nós religiosos
podemos descobrir que a verdadeira piedade não consiste em prostrar-se diante
de símbolos religiosos, venerar relíquias seculares ou deixar-se borrifar de
água benta, mas sim em ser capaz de nos abrir amorosamente ao outro, a Deus, ao
universo.
No terreno das
relações humanas, podemos nos livrar da grande solidão de viver entre pessoas
amáveis que só nos querem ver fingindo.
Enfim, voltaremos
às ruas mais humanos, tendo descoberto que, se Deus é Amor, fomos lançados
neste mundo para agir em nome do amor.
Tudo isso está
inerente à visão profética de que este mundo nunca mais será o mesmo (nem
teremos de deixar o destino político dos povos entregue nas mãos de psicopatas)
Desta forma,
teimamos em expor nossas utopias por que cremos firmemente que nossa vida é
determinada menos pelos nossos cálculos
e planos e mais pelas surpresas de Deus. "Ele há de enxugar toda lágrima
de seus olhos, e não haverá mais morte nem luto nem grito nem dor. As coisas
antigas desapareceram. Eis que faço novas todas as coisas" Apoc. 21, 4ss.
Amém.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano,
coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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