Em nossa trigésima "REFLEXÃO",
tratamos de um imaginário duelo entre o coronavirus e o antropovirus, o
primeiro gerado por um movimento cego da natureza e o outro produzido por
iniciativa calculada da inteligência humana.
Terminada esta luta fictícia, baseada em
fatos reais, ficou evidenciada a diferença incomensurável dos estragos causados
pelo antropovirus, em comparação com o seu parceiro de malefícios.
Não possuimos um radar com a capacidade de
registrar quantas vidas foram destruídas desde quando "o primeiro homem
que cercou um terreno e atreveu-se a dizer: "isto me pertence somente a
mim" encontrou outros ingênuos que acreditaram nele (....) Quantos crimes,
guerras, assassinatos, quantos horrores e misérias não teria poupado ao gênero
humano aquele que, arrancando as estacas e entulhando os buracos, tivesse
gritado aos seus semelhantes: "não ouçam este impostor! Vós estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos e que a terra não é de
ninguém" (Jean-Jacques Rousseau)
O
pensamento de Rousseau não está longe do pensamento de São Paulo, quando este
escreve: "a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro" 1Tim.6,10.
Eis aí o vírus mais mortífero de todas as pandemias causadas por mãos humanas:
a cobiça.
No entanto, há uma questão que se sobrepõe
a toda esta polêmica e parece ter uma origem transcendental: como explicar que
nenhuma destas pandemias, nem outras mais havidas no passsado, nem outras
tantas que poderão advir no futuro, conseguem arrancar da consciência da
humanidade a vontade de perseverar na realização do seu destino, nem da maior
parte dos indivíduos, a confiança na bondade essencial da natureza humana?
Nunca esqueci uma certa cena de um famoso
filme de guerra a que assisti, faz algum tempo. Findas as batalhas, do meio dos
escombros que cobriam uma vasta extensão de terra, surgiu uma criança a correr
e a brincar sobre os destroços abandonados. Foi a última cena do filme.
Acenderam-se as luzes e ficou a cargo dos espectadores compreender a fantástica
simbologia da vida nova brotando das ruínas da morte.
Por que isso? Por que nenhuma tragédia é
capaz de destruir a confiança no futuro? - Não tenho dúvidas em responder: é
porque ainda existem santos e santas. Como escreve um dos maiores romancistas
do século passado, Aldous Huxley, autor de "O Admirável Mundo Novo",
"sem santos, o mundo seria inteiramente cego, completamente louco".
Estamos falando da ampla santidade, aquela
que está livre de limites demarcados por esta ou aquela religião, por esta ou
aquela cultura, por esta ou aquela mentalidade, a santidade que Jesus definiu
com perfeição, ao declarar: "ninguém tem maior amor do que aquele que dá a
vida pelos seus".
Teologias, filosofias, sociologias,
tecnologias, economias, etc. são imprescindíveis para assegurar o
desenvolvimento da sociedade humana na busca incessante de melhores qualidades
de vida. Contudo, o poder de manter viva a esperança no futuro só se encontra
ali onde florescem modelos de perfeição humana.
Já que, na última reflexão, atacamos
duramente o antropovirus gerador das guerras, destaquemos uma figura
impressionante de santidade contemporânea da Segunda Guerra Mundial, Edith
Stein. Judia alemã, filósofa, confidente dos mais famosos filósofos da época,
converteu-se ao catolicismo e ingressou na Ordem das Carmelitas Descalças.
Entre outras pérolas de pensamento, escreveu: "para mim é muito irreal
pensar que a misericórdia de Deus se restringe aos limites da Igreja visível.
Deus é Verdade. Quem busca a Verdade está em busca de Deus, ainda que não o
saiba". Mesmo gozando do privilégio de ser freira católica, jamais aceitou
ser tratada de maneira diferente de seus irmãos judeus. Quando a Gestapo bateu
à porta do Convento para levá-la ao Campo de Concentração, ela disse a sua irmã
de sangue, também presa: "vem, vamos com o nosso povo". Morreu na
câmara de gás. Foi canonizada pelo Papa João Paulo Segundo. E seu nome permanece como um raio de luz em meio às
trevas da guerra.
Destaquemos ainda outros exemplos
paradigmáticos. Cientistas e pesquisadores que se enfurnam em seus
laboratórios, dia e noite, incansáveis, indiferentes a fortunas, aplausos e
prazeres, a fim de descobrir a cura de doenças exterminadoras de vidas humanas,
certamente fazem uma experiência de santidade. Grandes e geniais artistas de
todas as formas de arte, tentando desvendar os segredos profundos da beleza e
da mística, com certeza foram inebriados por estas inefáveis riquezas. Grandes
e autênticos revolucionários sociais que se deram por inteiro, tempo, talento e
vida com a finalidade de libertar seu povo de opressões e tiranias, não fizeram
outra coisa senão colocar o Amor e a Justiça acima de suas existências
individuais.
Igual a esta, ou até maior, sabe Deus, é a
santidade dos pequenos, dos humildes, vivida no anonimato. A santidade de D.
Zefinha do Coque, cuja única missão de vida é sair de casa às 5h. da manhã, e
percorrer as ruas da cidade, até adquirir o alimento que lhe dá direito a
voltar para casa, garantindo a seus 4
netos, mais um dia de sobrevivência.
Este último exemplo, em suas mais variadas
formas, se reproduz aos milhões, nos quatro continentes de nossa terra.
Todas estas experiências recebem o toque
da santidade. Se a elas associarmos a áurea sagrada de preces e adoração que
milhões e milhões de crentes elevam ao Criador incessantemente, então podemos
imaginar o universo inteiro santificado.
São estes testemunhos que nos movem e nos
reavivam a confiança no futuro, porque eles dão voz ao que há de mais profundo
em nós mesmos. Falam por nós, agem por nós e, mesmo sem sermos santos, nos
transmitem a nostalgia da santidade, e o sentimento de que participamos desta
mesma santidade que salva o mundo. Além de tudo, temos o penhor da Palavra
divina: "Deus amou tanto o mundo que lhe enviou seu Filho Único" Jo.
3,16. Não podemos sequer imaginar que Deus envie seu Filho para nos salvar sem trazer consigo a garantia do
êxito final.
Amém. Frei Aloísio Fragoso.
Amém. FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade
franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário