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sábado, 23 de maio de 2020

COVID - 19 - TRIGÉSIMA SEGUNDA REFLEXÃO O PECADO SOCIAL EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


por Frei Aloísio Fragoso

     Depois da minha última REFLEXÃO, a trigésima primeira, pensei comigo mesmo: supondo que milhares de leitores tivessem a paciência de ler estas reflexões, quantos aceitariam, sem contestação, o tom otimista que perpassa por todas elas?

     Trata-se de um otimismo que brota da Fé. Esta, por sua vez, é filha do Mistério. E o Mistério não consiste em algo escondido, impenetrável, inacessível, uma espécie de monopólio divino, proibido ao comum dos mortais. Chamamos de Mistério o que a razão pura não alcança com suas faculdades lógicas, no entanto está aberto ao entendimento do coração, da intuição ou da mente tocada pela Graça. Uma criança, com sua percepção intuitiva pura e simples, pode chegar mais perto do seu entendimento do que um filósofo armado com sua lógica irrevogável. É desta Fé que nasce a confiança no futuro. 

     Contudo, a Fé se depara com a realidade e as duas nem sempre estão de acordo, ao contrário, se conflitam frequentemente. Aos olhos da maior parte das pessoas que vivem da realidade, as obras do Mal são mais visíveis e poderosas do que as obras do Bem.

      Nestas condições, não seria ingenuidade apostar num final feliz para a História da Humanidade? Ou mesmo  afirmar que foi um belo presente divino ter vindo habitar esta terra?

     Quando o assunto é este, não vale a pena teorizar, temos de entrar logo no campo da realidade prática. Citemos um fato público e recente, divulgado amplamente pela mídia:

     A autoridade máxima da nação promove uma reunião com seus mais altos assessores para tratar dos mais urgentes problemas que afetam a vida do povo. E aí faz uma declaração brilhante  pela elegância do estilo e o perfume do vocabulário (peço licença aos ouvidos dos leitores para transcrevê-la):

     "O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse Governador de S.Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitam o vírus. Tá agora o bosta de um prefeito  de Manaus abrindo covas coletivas. Um bosta."

     Como definir tamanha insensibilidade, em tempos de coronavírus?

 Por trás de discursos como este rasteja o que chamaremos de Pecado Social. 

     Talvez ajudem o nosso entendimento algumas idéias do famosíssimo pensador político Maquiavel (1459-1527). Em sua obra "O Principe", ele escreve, dirigindo-se aos governantes: "Há uma dúvida se é melhor sermos amados do que temidos, ou vice-versa. Gostaríamos de ter ambas as coisas, mas como é difícil juntar as duas, se tivermos de renunciar a uma delas, é mais seguro sermos temidos do que amados....uma vez que os homens tem menos escrúpulos de ofender a quem se faz amar do que  a quem se faz temer. O amor depende de uma vinculação moral que os homens, por serem maus, rompem, mas o temor é mantido por medo do castigo, que não nos abandona nunca. Por conseguinte,deveis estabelecer o terror; o poder do Estado funda-se no terror".

     Com estas idéias, abraçadas jubilosamente por grande parte dos que galgam o poder político, Maquiavel desvincula o Estado de quaisquer compromissos éticos ou morais. A sua moral é ditada pelas exigências do poder, nada mais.

     Postos em prática estes princípios, desaparece por inteiro qualquer noção de pecado, qualquer sentimento de temor a Deus, Religião transforma-se em ideologia, Igrejas convertem-se em espaços de barganha e negociatas.

     Estamos diante do Pecado Social, cujas sequelas podem ser vistas também em dimensão planetária: um enorme contingente de seres humanos ocupa o planeta terra. Ali onde moram, eles estão destituídos das condições mínimas de sobrevivência. Mas não lhes é dada a chance de qualquer outro lugar para onde possam fugir nem de qualquer futuro em que possam pensar. Jamais serão incorporados ao sistema produtivo. Na verdade, eles são apenas isso: refugo da sociedade de consumo, massa sobrante, lixo humano. Que fazer com eles? Cresce sempre mais o número dos que advogam (sobretudo entre as elites sociais e aquela parte da classe média que aspira ascender a elas), os que advogam o método mais eficaz: a morte. Não tendo cabimento assassiná-los, por razões óbvias, resta a estratégia de deixá-los morrer, sem que haja sentimento de culpa. Para tanto, nada melhor do que uma pandemia. Porém não se pode contar sempre com pandemias. Então, há um outro recurso não menos eficaz: o descaso com a Saúde Pública. A extinção do SUS. Assim morrerão aos poucos, morrerão esperando sua vez na fila dos hospitais, mas morrerão, pois é preciso desocupar espaço, a fim de construir um mundo de "pessoas felizes". 

     Esta semana, tivemos oportunidade de ouvir o desabafo de um cidadão idoso, com a voz embargada pela comoção: "eu não entendo, não posso entender como isso é possível: depois de trabalhar 40 anos pelo progresso do meu país, agora, estando eu em situação de miséria, o meu país não tem 600 reais, para que eu possa sobreviver".

     A tudo isso damos o nome de Pecado Mortal, ainda mais mortal em sua dimensão Social. 
    Para seus autores e para os que fecham os olhos, incomodados, vale a resposta de Jesus aos doutores da lei, no momento em que eles o interpelaram: "tu estás dizendo que nós somos cegos?" Ao que Jesus respondeu: "se fosseis cegos de verdade, não teríeis culpa, mas porque dizeis que podeis ver, grande é o vosso pecado" Jo.9,40-41.

     Faltam poucos dias para a festa da Espírito Santo, e vamos encontrar na sua Luz as razões de permanecermos otimistas, apesar de tudo.
     Amém. FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

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