(continuação)
Os traumas causados pela Peste Negra
fizeram rachar algumas colunas mestras que sustentavam o edifício da
Cristandade.
O golpe mais profundo feriu de morte as
"certezas" sobre a ação de Deus no meio do mundo, sobre a Divina
Providência. Pode-se imaginar a crise de Fé gerada pela lembrança daquelas
cenas dantescas, uma multidão de fiéis se auto-flagelando, guiados por líderes
religiosos fanatizados, que garantiam, em troca, a cura milagrosa. Que cura?
Onde esteve Deus, nestes 4 anos, que não escutou os gritos de socorro de 20
milhões de filhos seus?
A sequência dos fatos revelou que o
descrédito não atingiu a fé em Deus. Vivia-se uma época em que crer em Deus era
a única defesa contra os absurdos da existência.
Contudo, os seus representantes não
escaparam. A Peste, com seu cortejo fúnebre, não fez diferença entre plebe,
nobreza e alto clero. Estes viram desabar seu domínio absoluto sobre as classes
"inferiores", domínio este garantido e sacramentado pela doutrina de
que, por conta do seu papel de comando na sociedade, eles gozavam de uma
proteção divina especial. As massas perceberam o engodo e reagiram com desprezo
e revolta a séculos de submissão.
Outra das mais graves sequelas afetou a
conduta moral das pessoas. Não entrava mais na consciência da maioria a visão
ascética de que esta vida temporal só
tem uma finalidade: preparar-se para a eternidade, por meio de boas obras
e paciência.
Não! Os bens prometidos
para o céu deviam ser desfrutados já agora, na entrega aos amores e prazeres terrenos.
No entanto, o abalo maior deu-se na
segurança do Poder Econômico. Reduzida a mão de obra a menos de 50%, os
trabalhadores se deram conta de um novo poder em suas mãos. Graças a esta
escassez, o preço do seu trabalho alugado cresceu na mesma proporção. E, por
este caminho, encontraram força de enfrentar a opressão dos senhores feudais e
conquistar direitos que nunca seriam
alcançados por outros meios.Abriam-se Grandes brechas na muralha do Sistema
Feudal. O mundo nunca mais seria o mesmo.
E os teólogos, como reagiram a estes
desafios que ameaçavam a segurança do
Império e da Fé?
Eles repensaram sua teologia e espalharam
novas interpretações. Tentaram, entre outras teorias, reduzir o mal a uma mera
aparência. Quando enxergamos o mal em algum fenômeno ou acontecimento, estamos
fazendo uma leitura equivocada da realidade. Se algo que hoje vemos como mal,
pode redundar em um bem no futuro, então o mal que vemos é só aparente. Isso
acontece porque a nossa visão se prende ao individual e ao provisório. Quando
pensamos além destes limites, chegamos a outras conclusões.
Por este prisma se chega a um novo
mistério: às vezes se fazem necessários sacrifícios individuais para o bem da
Criação como um todo. Jamais houve mudanças transformadoras da História Humana
sem derramamento de sangue (desde Jesus no Calvário, passando pelos primeiros
mártires, seguidos de numerosos outros ao longo dos séculos, até chegar a Dom
Oscar Romero, Margarida Alves, etc.)
Talvez mais de 90% dos que leram a nossa 24º
Reflexão terão pensado: eu não sabia (ou não me lembrava) desse terremoto que
destruiu Lisboa. Q. d. aqueles terríveis sofrimentos dissolveram-se na memória
do passado. Mas ficou Lisboa. Antes,
mal-afamada pelas suas ruelas estreitas, sinuosas e sujas. Hoje os turistas
admiram como elas são largas e lineares. Esta transformação teve início logo
após o terremoto, graças ao enérgico Ministro Marquês de Pombal.
Uns dirão: "há males que vem por
bem". Outros retrucarão: "a preço de 50.000 cadáveres?".
Se me
fizerem esta pergunta ou quiserem associá-la ao COVID 19, confesso meu
arrependimento de ter levantado estas questões. Pois só tenho uma resposta
imediata: não sei! De uma coisa estou convicto: a nossa vida está enraizada
muito mais em mistérios do que em ciências. A mente humana não possui a
capacidade de apreender a totalidade destes mistérios. Por isso, muitas coisas
há que não compreendemos e jamais
compreenderemos. Por outra parte, nossa Fé existe não para dar respostas e sim
para dar forças. Respostas vem sempre acompanhadas de novas e mais complexas
perguntas, enquanto forças espirituais nos levam a combater e superar os males.
E, no final das contas, permanece uma última verdade da qual somos todos
testemunhas: qualquer vida humana só se constrói com 3 matérias-prima
insubstituíveis: trabalho, sofrimento e amor. E isso nenhuma pandemia pode
destruir.
Resta-nos orar: ESPÍRITO CRIADOR, VINDE A
NÓS. VOSSA LUZ ACENDEI NA NOSSA MENTE. VOSSO AMOR NOS CONDUZA AO GRANDE FIM.
Amém.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor.
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