É com muita alegria que
temos um novo e querido colaborador no Blog O PORTA VOZ.
Colocaremos aqui a série
de MEDITAÇÕES E REFLEXÕES QUARESMAIS, escritas por Frei Aloísio nesses tempos
de Covid 19 e isolamento ou quarentena.
Vamos aproveitar, também
nós, o nosso tempo em casa, para lermos e refletirmos nesses tempos difíceis,
mas que, com muita fé e esperança, logo passarão.
Postaremos hoje as meditações
anteriores e, em seguida, nos manteremos atualizados.
Por Frei Aloísio
Estou iniciando um tempo de isolamento como
medida preventiva para escapar à pandemia do coronavirus. Sei que estou fazendo
uma boa ação em defesa da vida, da minha e de outras pessoas. A despeito disso,
certos pruridos vem alfinetando a minha consciência.
Enquanto eu me dou ao direito de isolar-me
voluntariamente, outros companheiros, profissionais da saúde, assumem o dever
de encarar de frente o terrível "inimigo". Neste momento sinto cada
um deles maior do que eu. Daqui da minha disfarçada pequenez saúdo a grandeza
de vocês. Consola-me o recado que mandaram, aconselhando-nos a "ficar em
casa, POR VOCÊS, que estão aí, POR NÓS." Obrigado!
Outra alfinetada mais aguda recebi de um
taxista, que me levou de BOA VIAGEM para o COQUE. "O que é que pobre vai fazer? Vai lavar as mãos dez vezes
ao dia, quando a água da Compesa chega à sua casa uma vez por semana? Vai a pé
para o trabalho, a fim de evitar a superlotação dos coletivos? Vai cair em
depressão, ao saber que pode estar levando, da rua para a família o maldito
vírus coroado? Não! Só lhe resta clamar aos céus: "seja o que Deus
quiser!"
Está transferência da culpa humana para as
costas de Deus pode parecer pura alienação, mas, na verdade, é o antivírus
contra o desespero.
E eu, nisso tudo, franciscano, amigo dos
pobres, bem recolhido numa casa grande e confortável?
Aí está a pergunta penitencial: por que os
pobres pagam o preço mais alto por tudo de ruim que acontece neste mundo?
Esta primeira noite dormi mal porque a
imaginação mergulhou no caos.
Então me veio à mente um pedaço de um
poema de Fernando Pessoa, onde ele
maldiz o fato de ser lúcido e perceber para além do seu tempo e dos seus
conterrâneos:
"Não tenho defesa nenhuma, sou lúcido!
Não me queiram converter a convicção, sou lúcido! Já disse: sou lúcido! Merda!
Sou uva lúcido!"
(Perdoa-me, Senhor, é que, em certos
momentos de indignação, um palavrão inofensivo ajuda.) Agradeço pela lucidez do
Espírito
Convido os amigos leitores a prosseguir nestas
meditações.
COVID 19 - SEGUNDA
REFLEXÃO QUARESMAL.
Durante o período da Quaresma ouve-se
muitas vezes a palavra PENITÊNCIA. Não se trata de uma idéia-monopólio da
espiritualidade cristã. Não há nenhum tipo de realização humana, visando um
objetivo superior, que não suponha e exija penitência, no sentido etimológico,
no sentido original da palavra (do grego "metanoia", ultrapassagem do
modo atual de ser e agir.)
Uma das mais árduas penitências hoje em dia é o ato de
contemplar a realidade. Contemplar não significa ver, olhar, enxergar, e sim
desvendar, decifrar, mergulhar no mistério das coisas. Daí o grande número de
pessoas tentando fugir para o irreal. E a esperteza do Sistema em criar espaços
e instrumentos que favoreçam este relax.
A pandemia do coronavirus está nos
obrigando a um relax compulsório.
A fim de contemplar esta realidade
necessitamos de algum ponto de vista que nos dê clareza e segurança. A fé nos
aponta o Calvário, a Cruz. No entanto, esta não se reduz à visão da dor, da
morte; é antes a visão da dor e da morte transfiguradas pelo mistério. O maior deles: a possibilidade
da dor ser purificadora, da morte ser redentora, da paz emergir das ruínas da
guerra, da vida nova ser gerada de dentro do túmulo.
Ao contrário do que pode parecer, com a
suspensão de todos os rituais religiosos tradicionais, podemos vivenciar a
Quaresma com maior intensidade, inserindo-nos dentro deste mistério.
Aprendamos as lições da História. A peste
negra, que irrompeu na Europa, no ano de 1348, e durou 5 anos e matou 25
milhões de pessoas, foi infinitamente mais devastadora do que a atual. Em
muitos casos ela obrigou a mudar o sentimento humano de amor em ódio como arma
de sobrevivência. Uma mãe não podia socorrer um filho infectado, pois não tinha
como escapar do contágio e com isso destruiria o resto da família. Como
enfrentar esta situação sem desesperar ? Com uma única saída: convertendo para
o ódio o sentimento do amor (o ódio não é a negação do amor, mas o mesmo amor
em estado de frustração, motivo de maiores sofrimentos).
A
peste negra produziu profundas e radicais mudanças de ordem
teológico-religiosas e filosófico-existenciais. Pareceram inúteis os recursos
da Fé. E, sendo a vida tão frágil e indefesa, que outra finalidade a vida
pode ter, senão a de
aproveitar ao máximo o momento presente? Nunca mais o mundo foi o mesmo.
Sugestão para as meditações quaresmais: que
mudanças podemos esperar da coronavirus na alma do mundo e dos indivíduos?
COVID 19 - TERCEIRA
REFLEXÃO QUARESMAL
Surgem situações-limite na vida individual
e global do planeta Terra que produzem espontaneamente a seguinte pergunta:
"somos todos reféns da fatalidade?"
Uma destas situações acontece quando seus
habitantes são atacados por um inimigo invisível, imprevisível e de efeitos
incomensuráveis. Estamos enfrentando um destes momentos e são muitas as pessoas
em estado de perplexidade. Daí nasce uma outra questão: a pandemia coronavirus
emergiu do nada ou resultou de algum erro fatal na administração do MEIO
AMBIENTE, sob nossa responsabilidade, por razões que escapam à nossa percepção
atual?
Faz alguns anos, os ideólogos do
Capitalismo Neoliberal, frente à queda do Socialismo real, cantaram vitória com
palavras grandiloquentes, numa linguagem mítico-religiosa, definindo-se como
"VIA ÚNICA, guiada por MÃO INVISÍVEL, para chegar a um ÊXITO
IRREVERSÍVEL.". Uma verdadeira autodeificação.
Pouco tempo durou a sua arrogância. Os
fatos foram revelando que outros fatores, além do econômico, determinam a
História. Na verdade, o Capitalismo criou ilhotas de riquezas, cercadas por um
vasto continente de penúrias e incertezas;
provocou sucessivas crises sociais e políticas e não conseguiu evitar a
espiral devastadora de violências. Em suma, a conjugação dos dois polos, que
constituem a grande utopia da humanidade, o PROGRESSO e a PAZ, fracassou.
Contudo, ninguém ousa chamar de pandemia esta tragédia que continua ceifando
milhões de vidas, nos países subdesenvolvidos.
E então? Somos ou não somos prisioneiros
impotentes da fatalidade? A nossa FÉ
cristã não admite este impasse. Ela
culminou com uma catástrofe: o
Calvário, a morte de Jesus. Em termos micro, isso foi tão fulminante como o
coronavirus, pois liquidou de vez todas as esperanças de seus apóstolos. É aí
que entra o poder da fé. A morte de Jesus possui um componente simbólico que
transcende seu limite físico. Jesus morreu e não morreu. Pois em curto lapso de
tempo, a vida prevaleceu, com sua
RESSURREIÇÃO. Porque a Deus nada é impossível.
Daí em diante foi ficando claro que a
História é conduzida por um PODER SUPERIOR, que não dispensa a nossa parte, mas
se sobrepõe. Por conseguinte, ela, a
História, não se guia apenas pela ciência ou pela lógica dos possíveis e
impossíveis. Ela se guia sobretudo pela loucura da FÉ, pela loucura da
ESPERANÇA, pela loucura do AMOR. A pandemia do coronavirus nos convida a
acionar o poder destas três loucuras, chamadas também paixões.
Tudo isso encerra o Mistério da Páscoa, que
se aproxima. Caminhemos na sua direção, lembrados das palavras de São Paulo:
"DEUS TOMA AS DORES DA HUMANIDADE E TRANSFORMA-AS EM DORES DE PARTO PARA
UMA VIDA NOVA"
COVID 19, QUARTA REFLEXÃO
QUARESMAL
Ao longo de toda a Quaresma a Igreja nos
convida a contemplar o Madeiro da Cruz, na sua representação real e simbólica.
A Cruz é parte integrante da vida ordinária, ninguém está dispensado de
carregá-la; mas ela também constitui um dos grandes mistérios humanos, pois vem
sempre acompanhada de muitos porquês. Em tempos de pandemia, milhões de vozes
se interrogam: por que? Por que? Pergunta tão inevitável quanto inútil. Os que
ousam dar-lhe respostas produzem uma floresta de novas perguntas.
Nossa chamada Sociedade de Consumo, sob o
domínio da Economia de Mercado, espertamente capturou a simbologia da Cruz, em
prol de seus interesses. Tirou-lhe os cravos, as manchas de sangue, os gritos
de dor e cobriu-a com uma áurea de luminosidade multicolorida,
transformando-a em uma belíssima
jóia. Cruz da glória sem ter passado
pelo Calvário. Pura ilusão.
Nossa Fé cristã, em lugar de buscar explicações
racionais, ou passar ao largo dela, a insere no âmago da sua doutrina. Ouvimos
Jesus declarando: "Quem quiser ser meu discípulo, tome sua cruz cada dia,
e siga-me". Ele não seria humano, à nossa semelhança, se estivesse
proclamando um Deus que se compraz em mandar cruzes para nossos ombros e se
sente honrado com nosso sofrimento e nossa resignação. Não! Um deus sádico não
é o Deus de Jesus Cristo, não é o nosso
Deus.
São Paulo é o grande teólogo da Cruz. Ele
escreve: "Os judeus exigem milagres, os gregos querem sabedoria; mas nós
anunciamos a Cruz de Nosso Sr. Jesus Cristo, escândalo para os judeus, loucura
para os gregos, para nós, no entanto, Redenção" 2Cor. 1, 23-24.
De fato, frente à cruz da pandemia, muitos
se sentem "enlouquecidos", outros "escandalizados"; a
maioria, porém, permanece em estado de perplexidade.
É aí que entramos com a nossa fé. O que
significa crer, orar, clamar a Deus, neste momento?Decerto não é esperar a
intervenção da sua Onipotência para fazer algum passe de mágica e extirpar o
mal de uma vez por todas. É, antes, deixar-se penetrar da Força Divina, com a
mais profunda convicção. Pela via da Oração a Graça penetra em nós e nos enche
de uma energia sobre-humana, capaz de enfrentar e superar todas as calamidades.
É Deus que vem a nós, em nós permanece e, através de nós, opera maravilhas.
Com este espírito, caminhemos, pela estrada
da Quaresma, até a Páscoa. Ainda que tenhamos de adiá-la para junho ou para
julho, nós vamos celebrá-la e ela será muito parecida com aquela que aconteceu,
há mais de vinte séculos, entre a Sexta-feira da Paixão e o Domingo da
Ressurreição.
QUINTA REFLEXÃO
QUARESMAL- FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Três atitudes da parte das pessoas, em confronto
com a pandemia COVID 19, com seus riscos, pavores e alertas, três atitudes se
destacam: perplexidade, indignação, resignação. A primeira é uma reação
espontânea da natureza, enquanto as duas outras dela procedem. Gostaria de
apreciar uma delas, a resignação, uma vez que, das três, é a única que se
constitui em uma ameaça à vida humana. Um sem número de mal-entendidos
acabou por atribuir-lhe o o direito de
chamar-se virtude cristã. Se a
entendermos como um ponto de partida na dinâmica de quem se prepara para a
luta, tudo bem, que seja uma virtude. Na maior parte dos casos, contudo, ela não passa de conformismo.
Muitos fiéis procuram legitimar-se
invocando o testemunho exemplar de Jesus, daquele doce Nazareno que se declara
"manso de humilde de coração"; daquele Messias sereno que o profeta
Isaías chama de "Cordeiro que é levado ao matadouro e não abre a boca
diante dos seus algozes". De fato, Jesus aponta a ternura e a mansidão
como armas eficazes no combate à violência, geradoras de uma sensibilidade
básica, capaz de resgatar a bondade original do ser humano e produzir nele o
respeito pela integridade da vida e da Criação.
Por outra parte, sua doutrina suscita outras
formas de violência, na medida em que exige conversão, mudanças radicais de comportamento.
Isso Ele mesmo assume com clareza ao declarar: "não vim trazer a paz e sim
a espada" "Vim ao mundo trazer fogo e outra coisa não quero senão que
ele acenda". Em confronto com a ordem estabelecida, Ele protesta à maneira
dos antigos profetas. Expulsa os vendilhões do templo com o chicote na mão.
Viola as tradições religiosas e sociais sempre que está em jogo a dignidade e a
vida das pessoas. E desmascara os guardiães da lei: "hipócritas, a lei foi
feita para o homem e não o homem para a lei".
Ao
definir o engajamento de seus seguidores neste mundo, usa metáforas carregadas
de dinamismo transformador ( eles devem ser "semente na terra",
"sal na comida", "fermento no pão", "chama
acesa").
Na última semana da Quaresma voltaremos a
ouvir, vindas do Calvário, palavras de aparente total resignação: "Pai,
perdoai, eles não sabem o que fazem". Mas logo a estas palavras segue-se
um grito de protesto: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
Estes dois momentos devem ser entendidos em sua mútua relação. No instante
final Jesus cobra do Pai uma resposta (que o Pai lhe dará em poucos dias).
Por conseguinte Jesus elimina o equívoco da
chamada resignação cristã.
Um dia talvez tenhamos que responder a
perguntas que hoje sobrepujam a nossa compreensão. Talvez venhamos a descobrir
no coronavirus um "mensageiro" incumbido de avisar, depois de milhões
de anos de agressões, que a natureza é paciente, mas não é resignada.
( A propósito, frente aos discursos
alucinógenos do chefe da nação e seus asseclas, elevemos ao nível máximo nossa
capacidade de indignação e deixemos a resignação para aqueles que não querem
aprender as lições da História).
CODIV 19 - SEXTA REFLEXÃO QUARESMAL
Nesta última semana da Quaresma, eu gostaria
de fazer uma confissão pessoal. Trata-se de um "pecado" que escrevo
entre aspas porque estou em dúvida quanto à sua procedência. É obra de satanás
ou é reação espontânea da natureza? Neste último caso, seria até salutar.
Meu pecado é o seguinte: tenho tido
sentimentos de SATISFAÇÃO com a pandemia do coronavirus. Nem mesmo a visão do
mundo em pavor, da angústia das famílias, dos milhares de mortos consegue impedir estes sentimentos, ao
contrário, a perplexidade só os agrava ainda mais. Eles estão ligados à
imaginação do que virá depois, das suas sequelas nas estruturas políticas,
econômicas e sociais dos países. E também são estimulados por uma outra visão,
meio patética, de numerosas faces deixando cair suas máscaras.
A máscara dos "senhores do mundo"
a gritar: "O Brasil não pode parar!" enquanto seus gritos chegam aos
nossos ouvidos em sua versão verdadeira: "os nossos lucros não podem parar (não importa o número de mortos)".
A máscara dos que condenam qualquer
intromissão do Estado em seus interesses empresariais, e agora exigem do Poder
público por fim às medidas de "isolamento social" (danem-se as
consequências).
A máscara de falsos líderes religiosos,
associando o vírus mortal a uma intervenção punitiva de Deus. Daí o medo dos
penitentes e, em troca de exorcismos, mais poder e mais dinheiro para suas
igrejas.
A máscara das elites perfumadas, tentando
disfarçar seu pavor frente ao nivelamento das classes sociais, que o vírus está
produzindo.
A máscara dos que já não conseguem esconder
a verdadeira filosofia que dirige suas vidas, o darwinismo social. Este advoga
a eliminação dos mais fracos e vulneráveis, a fim de dar lugar aos fortes, aos
poderosos, que governarão e dominarão os povos. Para tanto nada mais útil do
que uma pandemia, encarregada de cumprir está maldita tarefa, sem parecer que
eles são os assassinos.
Em suma, as máscaras do Capitalismo
Neoliberal.
Por fim chegam-me outros pensamentos que talvez
favoreçam a absolvição do meu pecado:
Estamos assistindo a cenas vivas de uma
realidade histórica: diante de uma grande crise, tende a aflorar o lado bom dos
seres humanos. Além disso, as nossas histórias pessoais comprovam que somente
uma grande dor ou uma grande alegria é capaz de revelar a verdade das pessoas.
Não é isso o que estamos vendo acontecer?
E Jesus não disse "A VERDADE VOS LIBERTARÁ?"
Não tenho vocação profética, mas ando
apostando no seguinte vaticínio: DEPOIS DO CORONAVIRUS O MUNDO NUNCA MAIS SERÁ
O MESMO.
PRA MELHOR! AMÉM!
CODIV 19 SÉTIMA REFLEXÃO QUARESMAL
Há quem se compraza em permanecer, horas a
fio, em frente do aparelho de TV, vendo e ouvindo más notícias sobre o CODIV
19. Talvez haja quem experimente um certo deleite com a sensação generalizada
de tsunami e pânico. A imensa maioria, contudo, se ressente, se deprime e,
paulatinamente, vai se curvando ao peso dos acontecimentos.
Por isso é preciso, sem fugir da realidade,
refugiar-se no ideal. A este mundo ideal pertence o dom inefável da poesia. A
poesia é também a linguagem de Deus. Um dos livros mais belos e apreciados da
Bíblia está escrito numa linguagem poética, do começo até o fim. É o livro de
Jó. A saga do sofrimento humano.
Abalado por uma sucessão de tragédias que
desaba sobre sua família, Jó reage com resignação: "O Senhor me deu, o
Senhor me tirou. Bendito seja o nome do Senhor". Mas, logo que o veneno se
infiltra em sua carne, ele muda de tom e de conduta. Em lugar de conformidade,
revolta e blasfêmias: "Por que não morri no ventre de minha mãe? Por que
não pereci ao sair de suas entranhas? Por que dois joelhos para me acolherem?
Por que dois peitos para me amamentarem?"
Incompreendido pelos amigos que procuram
encontrar culpados ("talvez pecaste! Talvez pecaram teus filhos!")
ele os expulsa da sua presença e interpela a Deus, diretamente: "Mostra-me
por que razão me tratas assim! Encontras prazer em renegar a obra de tuas mãos?"
O livro de Jó é um poema gerado pelo
absurdo, frente a um sofrimento injustificado. A dor não dói menos por isso,
mas dói humanamente, dói na direção não da morte e sim da transcendência.
Ao final, quando um raio de luz penetra em
seu espírito, ele se recompõe e se arrepende: "0' Deus, até agora meus
ouvidos tinham ouvido falar de Ti. Mas agora os meus olhos te viram no reflexo
da minha dor. Tem piedade de mim." E Jó recuperou todas as suas energias.
Os grandes revolucionários da História nunca
dispensaram o poder da poesia. Certamente não foi para amaciar os companheiros
de luta, mas para fortalecê-los, que Che Guevara escreveu a sua famosa legenda:
"hay que endurecer-se, pero sim perder la ternura, jamás'
Faz alguns anos, enfrentando uma situação
dolorosa, escrevi um soneto-desabafo que agora partilho com vocês:
VIDA
Estou só e preciso de um
barco
Para remar e remar até
chegar
Ali onde alguém me espera
Estou só e preciso de um
barco.
Estou triste e preciso
cantar
E cantar e cantar até
morrer
Feito um rouxinol
apaixonado
Sendo isto lenda ou
realidade.
Estou perdido e preciso
de um mapa
Para ter certeza do
caminho
Mas é inútil um mapa, não
há caminhos.
Estou cansado e preciso
morrer
Morrer de fato,
absolutamente
Estou cansado e preciso
VIVER!
Entre estes "morrer" e
"VIVER" situa-se o mistério da Páscoa que, breve, vamos celebrar,
animados pela certeza que a Vida prevalecerá. Sempre!
COVID 19 -OITAVA REFLEXÃO
QUARESMAL
Entre as sequelas causadas pela pandemia do
coronavirus, há uma que eu rezo para que seja irreversível, a saber, o colapso
de uma concepção de felicidade. Ser feliz
é uma aspiração congênita de todos os seres humanos, a única que goza de
aprovação universal. Como escreve Teilhard de Chardin: "todos os seres
vivos se movem e se orientam, necessariamente, na direção do que lhes dá
felicidade".
Em nossa chamada "sociedade da
gratificação imediata', a felicidade foi atrelada ao prazer sensorial.
"Quer ser feliz? Faça o que lhe dá prazer, agora! Conviva com quem lhe
proporciona maior prazer, agora! Se
tiver que fazer algum sacrifício, que seja por algo que torne seu prazer mais
intenso e duradouro. Fora do prazer não há felicidade."
Quem é que paga o preço destas sensações prazerosas? E lhes garante segurança e duração? - É o
dinheiro, somente o dinheiro, pois elas são movidas a objetos de consumo e
nutridas por conforto, luxo, abundância de sabores e benesses.
A fim de legitimar-se perante a "consciência"
do mundo, o Poder Econômico lhes confere uma aparência de felicidade e, aos
seus comensais, uma auréola de pessoas muito felizes. Desta forma, a multidão
dos excluídos vão ver nestas pessoas a imagem dos seus sonhos. Todos devíamos
ser assim. Vamos batalhar para chegar lá também.
Daí o ser feliz transforma-se numa
obrigação. É proibido não ser feliz. Se você não o for, minta, fingindo ser. Só
não quebre a corrente das pessoas felizes.
Aos poucos a procura da felicidade toma a
forma de uma antinomia, um confronto de dois polos. Uns defendem que ninguém
tem o direito de ser feliz dentro de um mundo infeliz. Outros, ao contrário,
garantem que é possível ser feliz, sem levar em conta a situação do mundo em
volta. Os primeiros rebatem: o que nos faz infelizes logo percebemos (por ex. a
morte de uma pessoa querida), enquanto o que nos torna felizes não dá nenhuma
segurança ou certeza (o dinheiro, o poder, o sucesso). Tudo bem, retrucam os
demais, compensaremos sua brevidade com a intensidade de nossas experiências.
Em meio a esta discussão, infiltra-se um
monstrinho invisível chamado coronavirus. De repente calam-se aquelas vozes;
rompe-se a segurança do Poder Econômico; desnuda-se o "discreto charme da
burguesia" e todos acabam nivelados pelo mesmo medo.
Em contra-partida, descobre-se uma
infinidade de outras maneiras de ser feliz, gratuitamente.
A Quaresma nos convida a contemplar o
Calvário e ouvir a voz Do Crucificado: "ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a vida pelos seus".
Ser feliz, dando a vida, não significa
sacrificar a própria felicidade, mas sim
dar-lhe um sentido superior, fazê-la transcender os seus limites e
perpetuar-se.
Neste mundo não há felicidade perpétua, mas
sim alegrias mais ou menos duráveis. É preciso identificar aquilo que nos faz
felizes, no limite da lucidez e não da ilusão. E, a seguir procurar o prazer
das alegrias simples, no vastíssimo espaço da convivência humana. São estas
alegrias que a quarentena compulsória destes dias oferece a quem está atento e
confiante. Aí se abre um caminho luminoso para a próxima Páscoa.
DCOVID 19 - DOMINGO DE
RAMOS - NONA REFLEXÃO QUARESMAL
Tem início a Semana Santa na Liturgia da
nossa Igreja. Estávamos acostumados a carregar a Cruz do Calvário
simbolicamente, seguindo os passos de Jesus em sua Via-Sacra. Esta semana, no
entanto, vamos carregá-la de verdade, na dura realidade de uma pandemia.
Contudo, o poder que a tornou suportável
para Jesus é o mesmo que a torna suportável para nós. É o poder da Fé.
Na luz desta Fé, observamos como as cenas e
os personagens de ontem se repetem hoje. As autoridades judaicas condenaram
Jesus à morte com o seguinte veredito: "é preciso que ele morra para que
não pereça toda a nação" Jo.11,50. Como
não escutar o eco destas palavras na boca dos que proclamam: "é
preciso que morram milhares de brasileiros para que não pereça a Economia do
país" !
Em meio a este cenário, surgem os
mercadores da fé, negociando curas milagrosas. Eles lembram a figura do rei
Herodes a reclamar de Pilatos a presença de Jesus porque ele queria divertir-se
assistindo a um de seus milagres. Diante de Herodes, Jesus se cala, impassível.
O verdadeiro milagre está acontecendo
diariamente, o milagre do Amor, dos que arriscam suas vidas, a fim de salvar a
dos infectados. O milagre da bondade humana que, infelizmente, parece precisar
de grandes sofrimentos para aflorar e realizar prodígios.
Repetem-se até mesmo os gritos de desespero
do Horto e do Calvário: "Pai, afasta de mim este cálice"! "Meu
Deus, por que me abandonaste?"
Pouco tempo durou a solidão dos primeiros
cristãos. Logo eles começam a fazer outra leitura dos fatos, começam a
compreender que, naquela morte, já
estavam plantadas as sementes da ressurreição. Pois o Filho de Deus não morrera
por morrer, não se rendera a um destino cego. Ele dera a vida por amor. Com o
seu Sacrifício amoroso, estávamos redimidos para sempre.
Não devemos passar ao largo das provas da
culpa humana. A destruição da consciência ética, gerando sistemas opressores, é
imensamente mais mortífera do que a COVID
19. E a repetição interminável de crimes ecológicos, no trato com a Mãe
Terra, leva-nos a terríveis impasses,
como este de nem sabermos de onde vem o "inimigo".
Apesar de tudo, a tragédia do COVID 19
carrega no seu interior a possibilidade de superação. Há algo de sacramental no
drama de suas vítimas, pois elas contribuem para salvar outras vidas, na medida
em que, proporcionalmente ao seu crescimento, decresce o avanço numérico da
pandemia.
A cruz da pandemia nos revela que onde há
dor há urgência de amor. E a Cruz do Calvário nos assegura que Deus nunca
abandona seus filhos e filhas. Ele os liberta do desespero, convertendo nossas
dores em "dores de parto para uma Vida Nova"(S. Paulo). Com três
palavras mágicas o mesmo Paulo expressa este Mistério da Páscoa permanente:
"o mundo está grávido de Deus". O mundo somos nós, estamos grávidos
de Deus, em outras palavras, estamos gestando, pela Graça, um Mundo Novo. Daí,
toda cruz é portadora da ressurreição, desde que enxerguemos em sua obscuridade,
a luz do Cristo ressuscitado. Amém.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
Grata, Frei, pela sua enorme generosidade para conosco!
ResponderExcluirDeus cuide do senhor, sempre!