Por
Reginaldo Veloso
Quando
uns sinais se apagam, para que outros sinais despontem!
“A noite é bela,
porque somente durante a noite, é que podemos enxergar as estrelas” Card. Suenens
Uma Semana Santa
diferente. Uma oportunidade inédita de aprendizado. A graça do momento! Porque,
para quem tem a felicidade de ter “olhos de ver” (cf Lc 10,23), “tudo é graça!”.
De fato, o povo de
cultura cristã, especialmente, a Igreja Católica, ao longo de séculos, vem
desenvolvendo uma prática religiosa centrada nos Sinais Sacramentais, apostando
tudo nas celebrações dos Sacramentos, sobretudo da Eucaristia. Nessas
atividades celebrativas, esgota-se a
maior parte dos recursos e esforços humanos e pastorais, o tempo maior de ação
e dedicação dos presbíteros. É o que a crítica teológica denomina de
“sacramentalismo”.
Alertados e instados
pelas autoridades sanitárias de todos os níveis e em todos os recantos do
Planeta, as Igrejas, as autoridades eclesiásticas, com lamentáveis e temerárias
exceções, quase que consensualmente, orientam seus fiéis a ficarem em casa,
porque, no momento, a barreira mais eficaz à disseminação do vírus é o
distanciamento ou isolamento social. Todos os grandiosos eventos religiosos da
Semana Santa, estão sendo cancelados, ou reduzidos a celebrações com a presença
de um número mínimo de pessoas, transmitidos pela mídia convencional ou pelas
redes sociais. Do Vaticano à mais pequenina capela, nos rincões mais remotos, é
assim que se vem procedendo, desde o Domingo de Ramos. É um verdadeiro “apagão
litúrgico”.
Essa percepção me ocorre,
justamente, quando me ponho a refletir sobre a mensagem desta Quinta-Feira
Santa. É no mínimo curioso que o quarto Evangelho, escrito por João, ao narrar
a Última Ceia, no clássico cap. 13, descreva, com detalhes a cena do Lava-Pés,
e omita o que é destaque nos três Evangelhos sinóticos, repetindo o que
escrevera Paulo no cap. 11 da sua primeira Carta à Comunidade de Corinto: a
partilha do pão e do vinho, em sua memória. Ambas as leituras são
proclamadas na celebração desta noite.
Segundo João, depois de
ter lavado os pés dos discípulos, Jesus, conclui: “Pois bem, se eu lavei os
pés de vocês, eu que sou o Senhor e o Mestre, vocês também devem lavar os pés
uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam do modo como eu fiz
(...). Se vocês entenderem isso, serão felizes se o praticarem” (Jo
13,14-15.17).
De olho nas palavras de
Jesus reportadas por João, vamos ler, como que, em paralelo, quanto relata
Paulo: “De fato, eu mesmo recebi do Senhor aquilo lhes transmiti. A saber:
Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus pegou o pão, e dando graças o
partiu e disse: ‘Isto é meu corpo, que é para vocês. Façam isto em memória de
mim’. Do mesmo modo, depois de cear, pegou também o cálice e disse: ‘Este
cálice é a nova aliança no meu sangue,
façam isto em memória de mim’” (1Co 11,23-25).
O mesmo Jesus que, na
Ceia narrada por João, lava os pés dos discípulos, aparece em Paulo e nos três
primeiros Evangelhos, tomando o pão e o vinho, entregando-lhes, como alimento,
seu corpo e seu sangue... O mesmo Jesus que em Paulo e nos sinóticos sentencia “façam
isto em memória de mim”, é Aquele que, no Evangelho de João, ordena “vocês
também devem lavar os pés uns dos outros”; e acrescenta como
“bem-aventurança”: “Se vocês entenderem isso, serão felizes se o praticarem”.
Não é difícil imaginar
que João, tendo escrito seu Evangelho depois de todos os demais, tenha querido
alertar as Comunidades cristãs para o essencial, talvez já não tão claramente
percebido, como se dissesse: “Queridos e queridas, não adianta comer o pão e
beber o cálice da Ceia do Senhor, se vocês não lavam os pés uns dos outros...
Se vocês não cuidam uns dos outros... Se vocês não fazem o que sugeri na
parábola do Samaritano... Se vocês não estão dando a vida uns pelos outros como
eu dei por vocês (cf Jo 15,12-14). Não adianta comer a Ceia em minha memória,
se vocês não praticam o lava-pés no dia a dia.
Será, então, que a
oportunidade, a graça que Deus nos está concedendo neste momento de “apagão
litúrgico”, é justamente essa: “Aproveitem esse momento de não poder celebrar
os Sacramentos, a Eucaristia, para perceber tudo quanto está acontecendo no
meio de vocês (queira Deus!) e ao redor de vocês!?... Tanta gente se
desdobrando para fazer sua parte, colocando-se a serviço de quem mais precisa,
nesta hora de calamidade pública: arrecadação de cestas básicas, preparo e
oferta de refeições ao povo da rua, confecção e distribuição de máscaras; Sindicatos
de Trabalhadores/as, Movimentos Populares, Parlamentares, Governadores,
Prefeitos e Juízes, e o próprio Ministro da Saúde, unidos na garantia de direitos
da Classe Trabalhadora e de medidas abrangentes e eficazes de proteção para
toda a população, especialmente os mais vulneráveis; e, sobretudo, Agentes de Saúde,
dedicando-se no limite de suas forças, alguns, algumas literalmente dando suas
vidas pela salvação do seu povo. Que beleza ver os agentes de saúde,
médicos/as, enfermeiros/as e demais servidores/as homenageados/as em todo o
Brasil e pelo mundo afora. Que emocionante vê-los reverenciados na China, como
“Mártires do Povo”. Eis aí o Lava-Pés: o mandamento de Jesus sendo posto em
prática! Eis aí a “presença real de Jesus” na vida, no dia a dia do povo! E
somente essa “presença real” de Jesus na vida do povo, é que consubstancia e
autentica a “presença real” Jesus na celebração eucarística.
Parece que o aprendizado
da hora é este: Deus nos está convidando a fazer uma pausa altamente
pedagógica. Aos que durante tanto tempo fomos tão assíduos na celebração da
Santa Missa... aos que estivemos durante tanto tempo encantados, adorando a Jesus
na hóstia consagrada... aos que até agora só o enxergamos nos “Sinais
Sacramentais”, ele nos convida a abrir os olhos para os “Sinais dos Tempos”,
todos esses gestos de solidariedade que se multiplicam e ampliam, perto de nós
e pelo mundo todo, “pois tive fome e vocês me deram de comer, tive sede e me
deram de beber, era estrangeiro e me acolheram, estava nu e me vestiram, estava
doente e me visitaram, estava na cadeia e vieram me ver” (Mt 25,35-36).
Oxalá a Humanidade,
países e mundo globalizado, indivíduos e sociedade, saiamos todos/as mais
humanizados/as, capazes de construir um novo Sistema, que mantenha o Planeta saudável e sustentável; as Economias,
solidárias; as Políticas, clara e decididamente, a serviço do Bem Comum, do Bem Viver!
E as Igrejas e Religiões
santifiquem e honrem o nome de Deus,
Pai-e-Mãe de todos e todas nós, colocando-se a serviço da “Vinda do Reino do
seu Reino”, na medida em que se consagram à realização a sua santa vontade “assim
na terra como no céu”, isto é, servir à
causa da Vida em plenitude! (cf Jo 10,10). Neste sentido, nós católicos,
nesta Quinta-Feira Santa, poderíamos edificar-nos com as palavras de uma santa
muito querida, que no final de sua breve existência, escrevia: “Sem dúvida, é
uma grande graça receber os sacramentos; mas, quando o Bom Deus não o permite,
está bem do mesmo jeito. Tudo é graça”.
Reginaldo Veloso, presbítero leigo das
CEBs,
assistente do Movimento de
Trabalhadores Cristãos - MTC
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