Por Leonardo Boff
Neste tempo de coronavírus que está produzindo medo e trazendo a morte a
muita gente no mundo inteiro, a celebração da Sexta-feira Santa ganha um
significado especial. Há Alguém que também sofreu e, em meio a dores terríveis,
foi crucificado, Jesus de Nazaré. Sabemos que entre todos os sofredores se
estabelece um misterioso laço de solidariedade. O Crucificado, embora pela
ressurreição tenha sido feito o homem novo e o Cristo cósmico, continua, por
isso mesmo, padecendo e sendo crucificado em solidariedade com todos os
crucificados da história. E assim será hoje até o final dos tempos.
Jesus não morreu porque todos morrem. Ele foi assassinado em
consequência de um duplo processo judicial, um pela autoridade política romana
e outro pela autoridade religiosa judaica. Seu assassinato judicial se deveu à
sua mensagem do Reino de Deus que implicava uma revolução absoluta de todas as
relações, à imagem nova de Deus como “Paizinho”(Abba) cheio de misericórdia, à
liberdade que pregou e viveu face às doutrinas e tradições que pesavam sobre as
costas do povo, ao seu amor incondicional, especialmente aos pobres e doentes
aos quais se compadecia e sanava e, finalmente, por se apresentar como o Filho
de Deus. Essas atitudes rompiam com o status quo político-religioso
da época. Decidiram eliminá-lo.
Ele morreu não simplesmente porque Deus assim quis, o que seria
contraditório à sua imagem amorosa que anunciou. O que Deus quis, isto sim, foi
sua fidelidade à mensagem do Reino e a Ele, mesmo que implicasse a morte. A
morte resultou desta fidelidade de Jesus diante de seu Pai e de sua causa, o
Reino, fidelidade que é um dos maiores valores de uma pessoa.
Aqueles que o crucificaram não podiam definir o sentido desta
condenação. O Crucificado mesmo definiu o seu sentido: uma expressão de extremo
amor e de entrega sem resto para alcançar a reconciliação e o perdão de
todos aqueles que o crucificaram e como solidariedade para com todos os
crucificados da história, em especial pelos que são inocentemente crucificados.
É o caminho da libertação e da salvação humana e divina.
Para que essa morte fosse realmente morte, como última solidão humana,
ele passou pela tentação mais terrível que alguém pode passar: a tentação do
desespero. Isso se deriva de seu grito na cruz. O embate agora não é com as
autoridades que o condenaram. É com seu Pai.
O Pai que ele experimentou com profunda intimidade filial, o Pai que ele
havia anunciado como misericordioso e cheio da bondade de uma Mãe, o Pai, cujo
projeto, o Reino, que ele proclamara e antecipara em sua práxis libertadora,
este Pai agora, no momento supremo da cruz, parece tê-lo abandonado. Jesus
passa pelo inferno da ausência de Deus.
É por volta das três horas da tarde, momentos antes do desenlace final.
Jesus grita com voz forte: “Eloí, Eloí, lemá sabachtani: Meu Deus, Meu Deus,
por que me abandonaste”? Jesus está às raias da desesperança. Do vazio mais
abissal de seu espírito, irrompem interrogações assustadoras que configuram a
mais terrível tentação, pior do que aquelas três feitas por Satanás no deserto.
Foi absurda a minha fidelidade ao Pai? Sem sentido a luta sustentada
pelo Reino, a grande causa de Deus? Foram vãos os riscos que corri, as
perseguições que suportei, o aviltante processo capital que sofri e a
crucificação que estou padecendo?
Jesus encontra-se nu, impotente, totalmente vazio diante do Pai que se
cala. Esse silêncio revela todo o seu Mistério. Jesus não tem nada a que se
agarrar.
Pelos critérios humanos, ele fracassou completamente. A própria certeza
interior se lhe esvaiu. Apesar de o chão desaparecer debaixo de seus pés, ele
continua a confiar no Pai. Por isso grita com voz forte: “Meu Deus, meu
Deus!” No auge do desespero, Jesus se entrega ao Mistério
verdadeiramente sem nome. Ele lhe será a única esperança e segurança. Não possui
mais nenhum apoio em si mesmo, somente em Deus. A absoluta esperança de Jesus
só é compreensível no pressuposto de sua absoluta desesperança.
A grandeza de Jesus consistiu em suportar e vencer esta
terrível tentação. Mas esta tentação lhe propiciou um despojamento total de si
mesmo, um estar nu e um absoluto vazio. Só assim a morte é real completa, no
dizer do Credo um “descer aos infernos” da existência, sem que ninguém que
possa acompanhar. A partir de agora ninguém mais estará só na morte. Ele estará
conosco porque experimentou a solidão deste “inferno” do Credo.
As últimas palavras de Jesus mostram a sua entrega, não resignada mas
livre: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). “Tudo está
consumado” (Jo 19,30)! “E dando um forte brado, Jesus expirou (Mc
15,37).
Este total vazio é pré-condição para uma total plenitude. Ela veio por
sua ressurreição. Esta não é a reanimação de um cadáver,como a
de Lázaro, mas a irrupção do homem novo (novissimus Adam:2Cor
15,45), cujas virtualidades latentes implodiram e explodiram em plena
realização e floração.
Agora o Crucificado é o Ressuscitado, presente em todas as coisas, o
Cristo cósmico das epístolas de São Paulo e de Teilhard de Chardin. Mas sua
ressurreição ainda não se completou. Enquanto seus irmãos e irmãs continuam
crucificados, a plenitude da ressurreição está em processo e ainda tem futuro.
Como ensina São Paulo, “ele é o primeiro entre muitos irmãos e irmãs” (Rm 8,29;
2Cor15,20).Por isso mesmo, com sua presença de Ressuscitado, ele acompanha a
via-sacra de dores de seus irmãos e irmãos, humilhados e ofendidos.
Ele está sendo crucificado nos milhões que passam fome a cada dia nas
favelas, naqueles submetidos a condições inumanas de vida e de trabalho.
Crucificado naqueles que nas UTIs estão lutando, sem ar, contra o coronavírus.
Crucificado nos marginalizados dos campos e das cidades, nos discriminados por
serem negros, indígenas, qulombolas, pobres e por serem de outra opção sexual.
Continua crucificado nos perseguidos por causa da sede de justiça nos
fundos de nosso país, nos que jogam suas vidas na defesa da dignidade humana,
especialmente dos feitos invisíveis. Crucificado em todos os que lutam, sem
sucesso imediato, contra sistemas que arrancam o sangue dos trabalhadores,
delapidam a natureza e produzem profundas chagas no corpo da Mãe Terra. Não há
estações suficientes nesta via dolorosa que possam retratar todas as formas
pelas quais o Crucificado/Ressuscitado continua sendo perseguido, aprisionado,
torturado e condenado.
Mas nenhum destes está só. Ele caminha, sofre e ressuscita em todos
estes seus companheiros de tribulação e de esperança. Cada vitória da justiça,
da solidariedade e do amor são bens do Reino que já está se realizando na
história, Reino, do qual eles serão os primeiros herdeiros.
Leonardo Boff é teólogo e escreveu: Paixão de Cristo- paixão do
mundo, Vozes 2007.
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