Maria Clara
Lucchetti Bingemer
Uma crise como a que vivemos não deixa de estar
carregada de ensinamentos. E ensinamentos sempre acrescentam, somam,
agregam conhecimento e sabedoria, fazendo-nos ser mais humanos. Nem todas
essas lições que a crise nos dá são positivas, ensinam como fazer, mostram o
caminho que temos à frente. Algumas são negativas, apontam para o que não
deve ser feito nem imitado sob hipótese alguma, mostrando-nos o que evitar para
seguir caminhando. Entre estas últimas certamente está a questão dos
idosos em meio à pandemia do novo coronavírus.
Chega a ser chocante, para não dizer repulsiva, a
atitude de governantes, empresários, médicos, ministros, quando se referem à
maior vulnerabilidade das pessoas de mais idade e, portanto, a sua maior chance
de letalidade. Esses idosos não entram em consideração quando se trata de levar
adiante o isolamento social ou são objeto de descarte quando se fala da
estrutura sanitária chegar ao limite para receber todos os pacientes. É
uma postura de desprezo revestido de fatalismo, mas que em verdade esconde uma
concepção lamentável do que seja o ser humano e a vida humana como dom precioso
que deve ser cuidada desveladamente em todos os seus estágios.
É curioso que alguns desses mesmos que vociferam em
favor de uma abertura irrestrita da quarentena já e imediatamente são os mesmos
que clamam aos céus contra a interrupção da gravidez. Quando se trata da
concepção e do início da vida essas pessoas ou grupos são enfáticos em
defendê-la e por ela lutar. Por que então não mantêm a mesma coerência e
ardor quando se trata da maturidade da vida, em sua etapa conclusiva?
A explicação não é tão complicada. O próprio
Papa Francisco já decifrou magistralmente a resposta em sua Exortação
Apostólica “ Gaudete et Exsultate”, de 2018, sobre a
santidade no mundo de hoje. No número 101 deste documento, o Papa reflete sobre
como o cristão deve buscar a santidade praticando as obras de misericórdia
corporais e espirituais. Observa, porém, que o evangelho de Mateus, que propõe
ao crente a contemplação do Juízo Final, só menciona as corporais: dar de comer
a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir o nu etc.
Não quer dizer
que o Papa não dê importância às obras de misericórdia espirituais. Pelo
contrário. Uma e outra vez ao longo do documento, o pontífice exorta à
paciência, ao cuidado espiritual com o próximo e tudo que constitui a atenção
misericordiosa subjetiva e caridosa. Quer deixar bem claro que sem a
atenção às necessidades básicas e, portanto, corporais dos pobres e desvalidos
da terra, não haverá santidade possível. Pelo menos o que se entende como
santidade dentro do Cristianismo. E toca neste ponto a delicada questão do
aborto.
“A defesa do inocente nascituro, por exemplo,
deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade
da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa,
independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos
pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no
tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de
cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte.
Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste
mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às
novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora
enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente”.
Com sua habitual lucidez, o Papa explica que todas
as vidas valem. E têm valor infinito. Não apenas a do nascituro indefeso,
que não pode sequer gritar para defender-se. Não só as
“produtivas”, que podem trabalhar em tempo integral e produzir dividendos para
o mercado. Nem apenas os fortes, as vigorosas e belas, no ápice da
existência ou mesmo em suas etapas iniciais. E valem muito. Portanto, a
luta contra a pandemia é por cada uma delas, uma a uma.
Todas as mortes ocorridas ou por
ocorrer nos diminuem como humanidade. E não à toa lembra o Papa que entre
essas vidas que valem infinitamente estão as dos “idosos privados de cuidados”
ou mesmo atirados ao contágio, sob pretexto de que suas vidas são descartáveis
e dispensáveis.
Em defesa das vidas dos idosos e
anciãos, podemos mencionar, além do Evangelho, do magistério de Francisco e de
toda a tradição da Igreja, fontes tradicionais não cristãs. Todas as
tradições dos povos originários, todas as religiões têm enorme respeito pelos
anciãos e por tudo que os mesmos representam em termos de sabedoria, capacidade
de conselho, densidade identitária do grupo humano. Os idosos são venerados por
toda parte. São a sede da memória de uma cultura, de uma tradição, de uma
religião.
Trata-se aqui das vidas de todos.
É fundamental se buscar salvá-las com todos os meios ao alcance. E entre
estas contam-se também e plenamente as dos idosos. Todas as vidas
valem. Igualmente as vidas que transcorrem há mais tempo, que formaram as
jovens vidas que hoje são o futuro da humanidade. Quem com essa ligeireza
considera a possibilidade de assassinar seu passado, mostra-se indigno do
presente e também do futuro. Esperemos que a pandemia, além de todos os
sofrimentos que já trouxe, não deixe esse amargo legado.
A teóloga Maria
Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora
de “Santidade, chamado à humanidade” (Editora Paulinas), entre
outros livros.
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