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domingo, 5 de dezembro de 2010

UM DEUS QUE FALA

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio


O tempo da Igreja "deve ser cada dia mais o de uma nova escuta da Palavra de Deus e de uma nova evangelização", diz o Papa Bento XVI na nova exortação apostólica "Verbum Domini", lançada no Vaticano, no dia 11 de novembro.

A Verbum Domini é fruto da 12ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, realizada de 5 a 26 de outubro de 2008. Nas páginas do documento, o Papa procura mostrar que, ainda que no século XX tenha havido um renascer de consciência da necessidade da Palavra de Deus em temas como a reforma litúrgica, a catequese e os estudos bíblicos, existe um déficit que deve ser suprido em relação à vida espiritual do povo de Deus. Este tem o direito de ser mais inspirado e nutrido por uma aproximação mais orante e eclesial das Sagradas Escrituras.

Em vários pontos da exortação apostólica, Bento XVI insiste que o cristianismo “não é fruto de uma sabedoria humana ou de uma ideia genial”, nem seus textos resultados da indústria humana, mas decorrem, sim, “de um encontro e de uma aliança com uma Pessoa que dá à existência humana sua orientação e forma decisivas.”

Ao longo de quase 40 páginas das muitas mais que compõem o documento, o Papa destaca a necessidade de apresentar uma hermenêutica de forma “clara, construtiva, situando a ciência bíblica, exegética e teológica no interior e a serviço da fé da Igreja.” É preciso – segundo o Pontífice - uma interpretação das Sagradas Escrituras, que deve ser complementada com uma leitura teológica e científica e que, além disso, exige “o valor da exegese patrística” e convida “os exegetas, teólogos e pastores a um diálogo construtivo para a vida e para a missão da Igreja”.

Na verdade, voltar a pensar o lugar da Escritura na vida da Igreja é uma tarefa sempre pendente, ao mesmo tempo que primordial para todos aqueles que crêem. Pois a Bíblia é para todos que professam a fé cristã fonte da Revelação que lhes suscita a resposta da fé e, por isso mesmo, chamada Palavra de Deus.

Nos primórdios da Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que captaram e falaram sobre essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e fala. Mas se sabe e se declara que fala porque existe um ouvinte, ser humano ou mulher, que ouviu, ouve e fala daquilo que ouviu.

A linguagem humana, na medida em que toma consciência de si mesma, perceberá que fala do que lhe foi dado, fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na origem sem origem que foi caos e agora é cosmos.

Nó de relações aberto ao mundo, aos outros, a Deus, o ser humano vive tensionado como arco cuja flecha mira o infinito lutando com o peso da gravidade que o conduz ao chão onde partilha com os outros seres criados a condição perecível e o destino mortal. Por seu ouvido aberto, no entanto, penetra continuamente a palavra divina que o constitui ouvinte da Palavra criadora, pronunciada antes de todo nome sobre o caos primitivo. E em suas narinas é soprado o “nefesh” divino que lhe imprime o selo que o faz à imagem e semelhança do Criador.

A Revelação chega ao ser humano como graça que surpreende e convoca a liberdade. Proposta graciosa e gratuita, que pede uma resposta igualmente gratuita por ser fruto da graça que a precede. É, portanto, graça de Deus não só o fato de Ele fazer essa proposta ao ser humano, mas também o fato deste último, em sua limitação e finitude, poder ouvi-la, acolhê-la e a ela responder na fé, carente de evidências e comprovações empíricas. O milagre da escrita torna possível consignar esta escuta e esta resposta em signos legíveis e codificados. Mas por ser não apenas série de signos, letra invertebrada, e sim texto vivo e cheio de carne e seiva, a Palavra assim ouvida, assim falada se torna Escritura: escrita do Mistério maior que é Deus.

O homem e a mulher – seres históricos, sujeitos à caducidade do tempo - são referidos ao ser como mistério, ou seja, são seres sob misteriosa disposição alheia. Por isso, são pacientes mesmo quando agentes; desconhecidos mesmo para si próprios. A salvação os alcança como proposta que vem de Deus, mas que deverá ser experimentada e respondida dentro dos limites humanos: históricos, sociais, culturais.

Sendo algo tão fundamental para a compreensão mesma do que implica ser humano, esta categoria passa a ser uma definição da própria identidade humana: “ouvinte da palavra”. Porém, além de ser um ouvinte da Palavra, o ser humano é um ser criador e emissor de palavra, um ser de linguagem. Não apenas ouvinte da linguagem elaborada e proferida por outro, mas também criador de linguagem que transforma a realidade.
A Bíblia – Verbum Domini, Palavra de Deus – é a Palavra que liberta e dá a vida. Sobre ela, o Papa exorta que se torne não apenas letra morta, mas Palavra de vida, que faz o que diz e faz fazer.


A teóloga é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)


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POR UMA ECONOMIA A SERVIÇO DA VIDA


POR UMA ECONOMIA A SERVIÇO DA VIDA artigo de Frei Betto
por Frei Betto




A vida, dom maior de Deus, tem base econômica. Para sobreviver, o ser humano é capaz de prescindir de muitos bens, exceto comida e bebida. Por isso, Jesus ensinou a oração com dois refrões: “Pai Nosso” e “ pão nosso”. Deus é verdadeiramente Pai nosso, de todos, se o pão – símbolo dos bens essenciais à existência – é partilhado entre todos.

Hoje, os bens da Terra e os frutos do trabalho humano não são partilhados entre todos. Apenas 20% da população mundial, concentrados na parte ocidental do hemisfério Norte, detêm 80% da riqueza do planeta. No Brasil, basta sair à rua para se deparar com a miséria – que, além de ser um problema econômico, deveria ser, para todos, um desafio ético. Nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que nasceu. Se não padecemos necessidades básicas é por mero acaso da loteria biológica.

No mundo, de cada três nascidos vivos, dois vêm à luz na pobreza ou na miséria. Portanto, nossa condição de vida digna não deveria ser encarada como um privilégio, e sim como dívida social. Injusto é existir a loteria biológica num planeta que produz alimentos para 12 bilhões de bocas e é habitado por pouco mais da metade.

Nossos avós, antes de iniciarem a labuta diária, consultavam a Palavra de Deus. Nossos pais, o serviço de meteorologia. Nós, os índices do mercado financeiro... A quem as pessoas de fé dão, hoje, mais importância? Aos preceitos divinos ou às suas contas bancárias?

Economia - palavra que deriva do grego oikos+nomos,

É preciso sensibilizar a sociedade sobre o valor sagrado de cada pessoa; criticar o consumismo e superar o individualismo; enfatizar a relação entre fé e vida, através da prática da justiça; ampliar a democracia firmada em metas de sustentabilidade; fortalecer a globalização da solidariedade, de modo a criar uma nova alternativa de sociedade na qual o que há de mais sagrado – a vida humana – esteja acima da idolatria do dinheiro.

A ONU informa que, em 2009, foram investidos US$ 18 trilhões para socorrer bancos e empresas ameaçados de quebra devido às dificuldades econômicas e financeiras. De onde surgiu esta imensa quantia de dinheiro? A pergunta é pertinente, pois até então se dizia não haver recursos para garantir os direitos básicos das pessoas nem para a superação da miséria e da fome. Nos últimos 49 anos, a ajuda dos países ricos às nações em desenvolvimento foi de apenas US$ 2 trilhões! Uma mísera esmola ao longo de quase meio século!

A crise financeira comprovou que, por si só, o mercado é incapaz de reduzir o índice de exclusão social e assegurar a prosperidade coletiva. Nem é este o seu objetivo.

Na raiz da desigualdade social imperante no Brasil está a concentração de terras em mãos de poucas famílias ou empresas. Temos a segunda maior concentração da propriedade fundiária do planeta. Apenas 2,8% do total das propriedades rurais do país têm mais de 1.000 ha e ocupam 56,7% das terras cultiváveis. Os minifúndios representam 62,2% dos imóveis rurais e ocupam apenas 7,9% da área total – de acordo com o Atlas Fundiário do INCRA. É como se a área conjunta dos estados de São Paulo e Paraná estivesse em mãos dos 300 maiores proprietários rurais, enquanto 4,8 milhões de famílias sem-terra estão à espera de chão para plantar.

A lógica econômica que predomina na política do governo insiste, sob pretexto de evitar a inflação, em elevar os juros para favorecer o mercado financeiro e não os consumidores. Basta dizer que governo federal gastou em 2008, com a dívida pública, 30,57% do orçamento da União para irrigar a especulação financeira. E apenas 11,73% do orçamento com saúde (4,81%), educação (2,57%), assistência social (3,08%), habitação (0,02%), segurança pública (0,59%), organização agrária (0,27%), saneamento (0,05%), urbanismo (0,12%), cultura (0,06%) e gestão ambiental (0,16%).

Quem mais paga impostos são os pobres. Os 10% mais pobres da população destinam 32,8% de sua escassa renda ao pagamento de tributos, enquanto os 10% mais ricos, que dispõem de mecanismos de isenção tributária, apenas 22,7% da renda.

O ciclo da moderna economia política fecha-se num mundo autossuficiente, indiferente a qualquer consideração ética sobre a vida humana e a preservação da natureza. Os fatos históricos e a miséria em que vive grande parte da humanidade – 2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza, segundo a ONU -, põem em questão o rigor e a seriedade dessa ciência e a bondade das políticas econômicas voltadas mais ao crescimento e à acumulação da riqueza do que ao verdadeiro desenvolvimento sustentável.
“administração da casa” - não deveria ser encarada pela ótica da maximização do lucro, e sim do bem-estar da coletividade. Em outras palavras, se todos os aspectos de nossas vidas se relacionam à economia, como fazer de conta que ela prescinde de valores éticos e princípios evangélicos?

SOMOS AS MUDANÇAS QUE QUEREMOS NO PLANETA

Lboff/Itaipu 2Estou em Cancun e antes que comece o trabalho pesado das comissões sobre as mudanças climaticas envio o artigo que completa o anterior sobre o Cultivando Agua Boa. Voltarei sobre o tema de Cancun.
Abraço
LeonardoBoff
Teólogo

Esta frase que parece arrogante é, na verdade, o testemunho do que significa o projeto “Cultivando Agua Boa” implementado pela grande hidrelétrica Itaipu Binacional nos limites entre o Brasil e o Paraguai envolvendo cerca de um milhão de pessoas. Os diretores da empresa – Jorge Samek e Nelton Friedrich – com suas equipes sabiamente entenderam o desafio global que nos vem do aquecimento global e resolveram dar uma resposta local, o mais inclusiva e holística possível. Esta se mostrou tão bem sucedida que fez-se uma referência internacional.

Seus diretores-inspiradores dizem-no claramente: ”A hidrelétrica Itaipu adotou para si o papel de indutora de um verdadeiro movimento cultural rumo à sustentabilidade, articulando, compartilhando, somando esforços com os diversos atores da Bacia Paraná 3 em torno de uma série de programas e projetos interconectados de forma sistêmica e holística e que compõem o Cultivando Agua Boa; eles foram criados à luz de documentos planetários como a Carta da Terra, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis, a Agenda 21 e os Objetivos do Milênio”.

Operaram, o que é extremamente difícil, uma verdadeira revolução cultural, vale dizer, introduziram um complexo de princípios, valores, hábitos, estilos de educação, formas de relacionamento com a sociedade e com a natureza, modos de produção e de consumo que justifica o lema, escrito em todas as camisetas dos quatro mil participantes do último grande encontro em meados de novembro:”somos as mudanças que queremos no planeta”.

Com efeito, a gravidade da crise do sistema-vida e do sitema-Terra é de tal magnitude que não bastam mais as iniciativas dos Estados, geralmente, tardias e pouco eficazes. A Humanidade inteira, todos os saberes, as instâncias sociais e as pessoas individuais, devem dar a sua contribição e tomar o destino comum em suas mãos. Caso contrário, dificilmente, sobreviveremos coletivamente.

Christian de Duve, prêmio Nobel de Fisiologia de 1974, nos adverte em seu conhecido livro “Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico”(1997) que “nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções em massa”. Efetivamente, o ser humano tornou-se uma força geofísica destruidora. Outrora eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra, hoje o meteoro rasante davastador se chama o ser humano sapiens e demens, duplamente demens.
Dai a importância de “Cultivando Agua Boa”: mostrar que a tragédia não é fatal. Podemos operar as mudanças que vão desde a organização de centenas de cursos de educação ambiental e capacitação, do surgimento de uma consciência coletiva de corresponsabilidade e cuidado pelo ambiente, da gestão compartilhda das bacias hidrográficas, de incentivo à agricultura familiar, da criação de um refúgio biológico de espécies regionais, de corredores de biodiversidade unindo várias reservas florestais, de mais de 800 km de cercas de proteção das matas ciliares, do resgate de todos os rios, do cultivo de plantas medicinais, da geração de energia mediante os dejetos de suinos e aves, da construção de um canal de 10 km para vencer um desnível de 120 metros e permitir a passagem de peixes de piracema até a criação de um Centro Tecnológico, Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e da Universidade da Integração Latino-Americana entre outras não citadas aquí.

A sustentabilidade, o cuidado e a participação/cooperação da sociedade civil são as pilastras que sustentam este projeto. A sustentabilidade introduz uma racionalidade responsável pelo uso solidário dos recursos escassos. O cuidado funda uma ética de relação respeitosa para com a natureza, curando feridas passadas e evitando futuras e a participação da sociedade cria o sujeito coletivo que implementa todas as iniciativas. Tais valores são sempre revisados e pactados. O resultado final é a emergência de um tipo novo de sociedade, integrada com o ambiente, com uma cultura da valorização de toda a vida, com uma produção limpa e dentro dos limites do ecossistema e com profunda solidariedade entre todos. Uma aura espiritual benfazeja perpassa os encontros como se todos se sentissem um só coração e uma só alma.

Não é assim que começa o resgate da natureza e o nascimento de um novo paradigma de civilização?

ITAIPU BINACIONAL; MINIATURA DA BIOCIVILIZAÇÃO


Lboff/Cultivando Agua Boa
por LEONARDO BOFF

Há hoje na cultura mundial muita desesperança e perplexidade generalizada. Não sabemos para onde estamos rumando. O vôo é cego num rumo ao desconhecido. O que mais dói é a falta de alternativa ao modelo vigente que visa grande acumulação em vista do acelerado consumo, à custa da depredação da natureza e da geração de gritantes injustiças sociais a nivel mundial.
Com as “externalidades” surgidas (aquecimento global, escassêz de recursos, desequilíbrio global do sistema-Terra) a sensação predominante é que assim como está o mundo não pode continuar. Temos que mudar. Por isso, por todas as partes, surgem novas visões e especialmente práticas que nos devolvem certa esperança de que outro mundo é possível e necessário. A nova centralidade gira ao redor do cuidado da vida, da salvaguarda da Humanidade e da proteção do planeta Terra. O que vai nascer será uma biocivilização ou uma Terra da Boa Esperança (Ignacy Sachs).

Eis que em nosso pais encontramos uma miniatura do desejo coletivo, uma pequena antecipação daquilo que deverá ser dominante na Humanidade: o projeto “Cultivando Agua Boa” da Itaipu Binacional em Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná.
Ai, num acordo entre Brasil e Paraguai, se construiu a maior hidrelétrica do mundo com um reservatório de água de 176 quilômetros de comprimento, onde estão estocados 19 bilhões de metros cúbicos de água, utilizados por 20 turbinas que geram 14 mil megawatts.

Qual foi o “insight” de seus diretores Jorge Samek e Nelton Friedrich já nos inícios de sua administração em 2003? Que a água não se destina apenas para produzir energia elétrica, mas também para gerar todo tipo de energia necessária aos seres que dependem vitalmente da água, especialmente os humanos.

Foi então se modelou o projeto “Cultivando Agua Boa” que envolve os 29 municípios lindeiros nos quais vivem cerca de um milhão de pessoas, com a criação de aves e suinos, das maiores do pais. Trata-se de um projeto altamente complexo que envolve praticamente todas as dimensões da realidade, resultando numa verdadeira revolução cultural, pois este é o propósito dos milhares que implementam o projeto. É exatamente isso que precisamos: de um novo ensaio civilizatório, testado numa miniatura, que seja viável dentro das condições mudadas da Terra em processo de aquecimento e de exaustão de seus recursos. O motto diz tudo:”um novo modo de ser para a sustentabilidade”.

Sempre afirmei que a sustentabilidade foi sequestrada pelo projeto do capital, esvaziando-a para impedir que significasse um paradigma alternativo a ele, já que é intrinsecamente insustentável. Libertada deste cativeiro, ela adquire valor central de um novo arranjo civilizatório que estabelece uma equação equilibrada entre ser humano-natureza-desenvolvimento-solidariedade generacional. Em Itaipu se conseguiu instaurar esta equação feliz. Começaram corretamente com a sensibilização das comunidades. Quer dizer, iniciaram com o alargamento das consciências, convocando nomes notáveis do pensamento ecológico, como F. Capra, Enrique Leff (Pnuma latinoamericano), Marcos Sorrentino, Carlos e Paulo Nobre entre outros. Eu mesmo acompanho o projeto desde o seu início. Definiram o espaço não pelos limites arbitrários dos municípios mas pelos naturais das hidrobacias. Envolveram todas as comunidades, criando comités gestores de cada bacia, legalizados pelas prefeituras. Sabiamente se deram conta de que a educação ambiental representa o motor da mudança de ser, de sentir, de produzir e de consumir. Não é isso a inauguração de uma revolução cultural? Formaram algumas centenas de formadores ambientais, atingindo milhares de pessoas. Uma nova geração está surgindo que busca um modo sustentável de viver.

No próximo artigo quero detalhar o vasto campo de atividades que vão desde o aproveitamento dos dejetos sólidos gerando energia, até a inovação tecnológica com o carro elétrico, a pesquisa sobre o hidrogênio, a criação do Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e a da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Quem acompanha aquele projeto sai com esta certeza: a Humanidade é resgatável, ela tem jeito, é possível, como dizia Fernando Pessoa, criar um mundo que ainda não foi ensaiado.

OLHANDO MARIA


por ASSUERO GOMES

Sobem o morro multidões em crise e outros nem tanto, felizes. Alguns vendedores experimentam o milagre da sobrevivência mais farta, por pelo menos oito dias. Crianças sonham com o carrossel do parque popular, os vendedores de velas e fitas se alegram. Patroas e empregadas sobem juntas. Prostitutas e freiras. Mendigos pedem, senhoras pedem, o pároco pede, o coral canta, os fogos explodem. É júbilo, é oração, é festa.

Quem os vê de longe pode pensar numa serpente caprichosa que vai ser pisada pelos pés da Virgem, mas são passageiros de uma terra em movimento, paroquianos do planeta, poeira cósmica cintilante e opaca, a romaria das filhas e dos filhos que segue morro acima. Vão debulhar suas novenas, como grãos semeados em terços devotos.

É festa no Morro. É festa no coração, entre lágrimas e sorrisos e olhares todos procuram pela Mãe. Não será esta a eterna procura dos seres humanos enquanto vivos? Procuram o carinho, o alívio, a proteção, a saúde, o conforto. Alguns sobem de joelhos, outros carregam pedras, como se o fardo de viver e caminhar já não fosse bastante pesado para todos, especialmente para os miseráveis, filhos e filhas de Eva neste vale de lágrimas.

Vãos os devotos e os profanos, os puros e os promíscuos, estão de azul e branco. Olham serenos o olhar sereno da serena maternidade de Maria.

O que pensará a Mãe nestes dias de festa e devoção?

Olhando aquela multidão desesperada e compassiva, como ovelhas no meio de lobos, olhará para o Filho e intercederá por cada um, citando nome por nome, derramando misericórdia no já transbordante coração misericordioso de Jesus. Bastando um olhar de súplica, que vale mais que todas as orações de todos os anjos e santos do universo celeste. Maria contará no seu coração cada lágrima de uma mãe aflita, de um pai de família desempregado, de um drogado, de uma violentada, de uma família destroçada. Transformará estas lágrimas em um rosário translúcido, como uma jóia rara, e o depositará nas mãos do Filho para que os alivie.

Lá vai o cego camelô vendendo óculos, o profeta bêbado que grita contra o governo, a cantora lírica que está afônica, a afilhada que foge da madrinha, o homem de paletó com a Bíblia na mão clamando o fim do mundo, o aleijado tentando subir correndo, a gestante que não encontrou lugar para ela na maternidade, o pedinte com a perna enfaixada, a faminta que pede comida numa lata de goiabada, o dançarino de frevo numa cadeira de rodas, e a procissão aumentando. É a humanidade peregrina no seu cortejo humano aos pés da santa.

O que ninguém sabe, e isso é um segredo mariano, é que ela desce do pedestal, e ali no meio de seus filhos e filhas caminha com eles, incógnita, invisível, no entanto aqueles que veem com os olhos do coração, especialmente as crianças e os pobres, a reconhecem e se animam mais um pouco, até a chegada final da peregrinação. Segue com eles cantando a canção e os hinos de vitória, pois o Filho traz a história na mão.

Olhar Maria, só através dos olhos dos necessitados, dos aflitos e dos corajosos. Entender Maria só com o coração ferido de uma mãe cujo filho sangra a dor do abandono e da necessidade. Pedir a Maria é ter certeza da sua intercessão junto ao Filho, agora, amar Maria só amando seus filhos, que são nossos irmãos.

O DIREITO DE SER FELIZ


O direito de ser feliz

Por: Marcelo Barros

Um dos atuais projetos de lei, proposto ao Congresso Nacional, propõe que se introduza na Constituição Brasileira o direito de todas as pessoas à felicidade, como objetivo a ser alcançado pela sociedade nacional e dever a ser salvaguardado pelo Estado. À primeira vista, parece estranho e sem sentido imaginar que a felicidade possa ser decretada como lei e um governo deva ter uma função neste domínio. Isso causa mais espanto em uma sociedade na qual o individualismo se tornou dogma inquestionável e as pessoas pensam a felicidade como algo absolutamente individual. Ninguém teria nada a ver com a felicidade do outro. Cientistas das mais diferentes áreas contestam isso. Em seu livro “Inteligência Emocional”, Daniel Golemann mostra que, quando há cerca de 125 milhões de anos, o ser humano se distinguiu dos outros mamíferos, o que marcou a diferença foi o surgimento de uma capacidade de associação afetiva que nos liga essencialmente ao outro. Naquela etapa da evolução, em uma espécie de mamíferos humanóides, em tudo semelhantes aos outros macacos, surgiu o cérebro límbico, parte do nosso sistema cerebral, responsável pelo afeto, pelo cuidado e pelos sentimentos. Mais tarde e somente há quatro milhões de anos, o nosso corpo desenvolveu o neocortex, a parte do cérebro capaz de razão abstrata, conceitos e linguagem racional. Todo o nosso ser é um só e tudo deve ser integrado. Entretanto, se fosse necessário, distinguir e hierarquizar nossas funções de forma isolada, temos de reconhecer: o ser humano é primeiramente um animal emocional e afetivamente ligado aos outros e só depois é racional. Para corresponder à natureza humana mais profunda, a sociedade deve se basear na colaboração e na comunhão e jamais na competitividade e na concorrência que, infelizmente, ainda se encontram nos empregos, nas escolas, nas famílias e até em comunidades religiosas.

“Bustão é um pequeno reino nas encostas do Himalaia, espremido entre a China, a Índia e o Tibet. Tem apenas dois milhões de habitantes e a capital é Timfu, com 50 mil habitantes. O país é governado por um rei e por um monge budista que, coordena o judiciário. Juntos dialogam com os conselheiros, responsáveis pelo legislativo. É o único país do mundo, no qual, de acordo com a lei do Estado, o objetivo do desenvolvimento do país não depende apenas do Produto Interno Bruto (PIB), mas, principalmente, do “índice de felicidade interna”. A cada ano, as pesquisas sociais não computam apenas o que o país produziu em serviços e bens de consumo, mas procuram saber se as políticas públicas foram capazes de sustentar e fortalecer no povo um “índice de felicidade interna”(L. Boff, Cuidar da Terra, Proteger a Vida, Record, 2010, p. 141).

A experiência humana mostra como a felicidade das pessoas depende de uma série de fatores imponderáveis e misteriosos. Um Estado bem organizado pode favorecer uma boa qualidade de vida nas cidades e no campo, mas não pode garantir que as pessoas sejam felizes. É claro que uma educação à solidariedade e à descoberta de valores mais profundos na vida podem ser fundamentais neste caminho. Em todo o Brasil, as diversas unidades regionais da “Universidade da Paz” e trabalhos similares têm ajudado muita gente a se encontrar e a desenvolver valores de vida mais profundos.

As novas Constituições cidadãs da Bolívia e do Equador ensinam que o sumak kawsat do povo Quétchua, ou o suma qamaña dos Aymara (o bom viver) é um objetivo social a ser perseguido pelo Estado e por toda a sociedade. Não se trata apenas de viver melhor, mas de viver dignamente e a partir da realização profunda das potencialidades da pessoa, sempre dentro da sua comunidade humana e na comunhão com a Mãe Terra e com todo o universo. O “bom viver” é realmente um jeito de viver solidário e afetuoso que respeita a individualidade das pessoas, mas ajuda cada uma a se desenvolver a partir de uma educação essencialmente comunitária e solidária. Ninguém pode ser feliz isolado. E ser feliz não depende da quantidade de objetos de consumo que se possui. Ter dinheiro pode ser útil para satisfazer necessidades básicas, mas se a sociedade as garante de forma saudável e justa, isso se torna relativo. O objetivo da construção de uma comunidade verdadeiramente integrada é o caminho da boa convivência.

No Brasil, para que possamos ter em nossa lei o direito e o dever à felicidade pessoal e comunitária, é preciso que, antes de tudo, criemos a consciência de que esta é a nossa vocação humana e espiritual. Quem é cristão deve se recordar de que o próprio Jesus declarou: “Eu vim ao mundo para que todas as pessoas tenham Vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

FREI BETTO LAMENTA QUE O PAPA SEJA USADO COMO CABO ELEITORAL

Frei Betto lamenta a postura do papa Bento XVI, que voltou a trazer o aborto ao debate político brasileiro às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais. Na manhã desta quinta-feira (28), o papa esteve com 15 bispos brasileiros do Nordeste, a quem convocou a condenar o aborto e orientar fieis a "usar o próprio voto para a promoção do bem comum". Em entrevista, o frei brasileiro sustenta que há temas mais relevantes para o momento.
"Lamento que Bento XVI esteja sendo usado como cabo eleitoral, seja para qual partido for. Há temas muito mais importantes do que aborto e religião para se discutir em uma campanha eleitoral", afirmou Frei Betto.
"Aborto se evita com políticas sociais. Num país em que se sabe que os futuros filhos terão saúde, escolaridade e oportunidades de trabalho, o número de aborto é reduzido. Lula fez o governo que mais fez para evitar o aborto no Brasil", analisa.
No discurso proferido durante reunião em Roma, o papa afirmou que se "os direitos fundamentais da pessoa ou da salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas". O discurso do papa reconheceu a possibilidade de eventuais efeitos negativos: "Ao defender a vida, não devemos temer a oposição ou a impopularidade".
Frei Betto relembrou que tal postura se parece com as de dom Nelson Westrupp, dom Benedito Beni dos Santos e dom Airton José dos Santos, bispos que subscreveram um panfleto produzido pela Regional Sul 1 da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O material trazia um pedido aos cristãos que não votassem no PT e em partidos que defendessem o aborto. Para o frei, o objetivo era clararamente fazer um manifesto anti-Dilma.
"Lamento também que três bispos tenham desviado a atenção da opinião pública para introduzir oportunisticamente o tema no debate", critica. Atuante em movimentos sociais, Frei Betto afirma que muitas mulheres acabam optando pelo aborto por se sentirem inseguras com o futuro que darão aos filhos.
Polêmica
O aborto ganhou status de tema de campanha desde o final do primeiro turno. A questão é apontada por analistas como uma das responsáveis pela perda de intenção de votos da candidata governista na reta final, causando o segundo turno. Desde o dia seguinte da votação, a discussão permaneceu na disputa entre os candidatos Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB).
O fenônemo levou a campanha de Dilma a promover eventos com lideranças evangélicas e de outras religiões. Ela assumiu ainda compromissos em defesa da vida e contrários a mudanças na legislação sobre interrupção da gravidez. O PSDB empregou, segundo relatos publicados em jornais e blogues, uma ampla ação de telemarketing ativo (milhares de telefonemas a eleitores) com o objetivo de espalhar a informação de que a petista seria favorável ao aborto.
A onda foi seguida por figuras relevantes do cenário religioso. A Comissão em Defesa da Vida, grupo católico coordenado pelo padre Berardo Graz, divulgou nota incitando os fiéis a não votar em Dilma. No último sábado (23), porém, o bispo dom Angélico Sândalo Bernardino leu, em São Paulo, uma carta pela "verdade e justiça nas eleições" deste ano. O conteúdo da carta critica a atitude da Regional Sul 1 e a utilização eleitoreira do tema aborto.
Fonte: Vermelho com Rede Brasil Atual
Criado por: Wellington Correia e Postado em: 29/10/2010 14:10:34
Fonte da notícia: sítio do Sindicato dos Bancários de Pernambuco: http://www.bancariospe.org.br/noticias_aparece.asp?codigo=5743

domingo, 24 de outubro de 2010

DILMA: A IMPORTÂNCIA DE UMA MULHER NA PRESIDÊNCIA


Por Leonardo Boff


Há duas formas principais de estarmos presentes no mundo: pelo trabalho e pelo cuidado. Como somos seres sem nenhum órgão especializado, à diferença dos animais, temos que trabalhar para sobreviver. Vale dizer, precisamos tirar da natureza tudo o que precisamos. Nessa diligência usamos a razão prática, a criatividade e a tecnologia. Aqui precisamos ser objetivos e efetivos, caso contrário sucumbimos às necessidades. Na história humana, pelo menos no Ocidente, instaurou-se a ditadura do trabalho. Este mais do que obra foi transformado num meio de produção, vendido na forma de salário, implicando concorrência e devastação atroz da natureza e perversa injustiça social. Representantes principais, mas não exclusivos, do modo de ser do trabalho são os homens.

A segunda forma é o cuidado. Ele tem como centralidade a vida e as relações interpessoais e sociais. Todos somos filhos e filhas do cuidado, porque se nossas mães não tivessem tido infinito cuidado quando nascemos, algumas horas depois teríamos morrido e não estaríamos aqui para escrever sobre estas coisas. O cuidado tem a ver mais com sujeitos que interagem entre si do que com objetos a serem gestionados. O cuidado é um gesto amoroso para com a realidade.

O cuidado não se opõe ao trabalho. Dá-lhe uma característica própria que é ser feito de tal forma que respeita as coisas e permite que se refaçam. Cuidar significa estar junto das coisas protegendo-as e não sobre elas, dominando-as. Elas nunca são meros meios. Representam valores e símbolos que nos evocam sentimentos de beleza, complexidade e força. Obviamente ocorrem resistências e perplexidades. Mas elas são superadas pela paciência perseverante. A mulher no lugar da agressividade, tende a colocar a convivência amorosa. Em vez da dominação, a companhia afetuosa. A cooperação substitui a concorrência. Portadoras privilegiadas, mas não exclusivas, do cuidado são as mulheres.

Desde a mais remota antiguidade, assistimos a um drama de consequêncas funestas: a ruptura entre o trabalho e o cuidado. Desde o neolítico se impôs o trabalho como busca frenética de eficácia e de riqueza. Esse modo de ser submete a mulher, mata o cuidado, liquida a ternura e tensiona as relações humanas. É o império do androcentrismo, do predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Chegamos agora a um impasse fundamental: ou impomos limites à voracidade produtivista e resgatamos o cuidado ou a Terra não aguentará mais.

Sentimos a urgência de feminilizar as relações, quer dizer, reintruzir em todos os âmbitos o cuidado especialmente com referência às pessoas mais massacradas (dois terços da humanidade), à natureza devastada e ao mundo da política. A porta de entrada ao universo do cuidado é a razão cordial e sensível que nos permite sentir as feridas da natureza e das pessoas, deixar-se envolver e se mobilizar para a humanização das relações entre todos, sem descurar da colaboração fundamental da razão intrumental-analítica que nos permite sermos eficazes.

É aqui que vejo a importância de podermos ter providencialmente à frente do governo do Brasil uma mulher como Dilma Rousseff. Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos(seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: “política é um gesto amoroso para com o povo”.

Neste momento dramático da história do Brasil e do mundo é importante que uma mulher exerça o poder como cuidado e serviço. Ela, Dilma, imbuida desta consciência, poderá impor limites ao trabalho devastador e poderá fazer com que o desenvolvimento ansiado se faça com a natureza e não contra ela, com sentido de justiça social, de solidariedade a partir de baixo e de uma fraternidade aberta que inclui todos os povos e a inteira a comunidade de vida.

DOIS EVENTOS NO MESMO CAMINHO


por Marcelo Barros

Neste próximo domingo, as comunidades cristãs serão chamadas a viver dois eventos que, aparentemente, nada têm em comum, mas, o calendário os uniu no mesmo 31 de outubro. O primeiro evento é o segundo turno das eleições para presidente da República. O segundo acontecimento é que este dia do segundo turno eleitoral coincide com o “dia da reforma”, aniversário do início do movimento evangélico. Segundo a tradição, no dia 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero pregou na porta da catedral de Wintenberg (Alemanha) as 95 teses sobre a necessidade de uma profunda reforma na Igreja cristã.
De fato, somente cinco séculos depois, no Concílio Vaticano II (de 1962 a 1965) e, mais tarde, em uma declaração comum com a Federação Luterana Mundial (1999), a hierarquia católico-romana reconheceu o acerto das principais afirmações de Lutero: a primazia da Bíblia como fonte da fé cristã, a salvação pela graça de Deus através do dom da fé e o sacerdócio real de todas as pessoas batizadas. Apesar dessas afirmações feitas em comum, as Igrejas continuam divididas. Até hoje, cada grupo cristão ainda é tentado a pensar a sua missão apenas em função de si mesmo. O aniversário da reforma começa a chamar a atenção não somente de cristãos evangélicos, mas também de católicos. Em algumas cidades do país, o dia 31 de outubro começa até a ser feriado municipal.
Neste ano, a coincidência do segundo turno destas eleições no dia do aniversário da reforma protestante pode nos ajudar a perceber que estes dois acontecimentos são como uma só estação na mesma estrada.
No século XVI, Lutero, Calvino e outros reformadores propuseram à Igreja uma reforma que a ajudasse a voltar ao espírito do evangelho.: uma Igreja mais simples, mais comunitária e aberta à participação ativa dos leigos e disposta a se renovar espiritualmente para ser como o ensaio de uma humanidade renovada. Lutero dizia que esta reforma da Igreja deve ser permanente e contínua. Hoje, quase cinco séculos depois, homens e mulheres que pertencem às várias Igrejas cristãs sentem a urgência de uma nova reforma da Igreja e do mundo, como também cada pessoa é chamada a se converter e se renovar interiormente.
Ao dar o seu voto neste segundo turno das eleições presidenciais, a maioria do povo brasileiro também está dizendo que quer uma mudança social e política para o país. Não uma volta ao passado do qual já nos libertamos, mas um passo adiante no caminho de uma sociedade mais justa e participativa. Esta mudança não depende só e principalmente do governo, por mais importante que este seja. É necessário desenvolvermos um modelo democrático que não consista só em votarmos em nossos representantes cada quatro anos, mas possibilite que todo o povo participe verdadeiramente dos destinos do país. Para presidente da República, é preciso escolhermos a pessoa que for mais aberta e disponível para não somente aceitar, mas incentivar esta participação da sociedade civil no processo do país.
Para os cristãos, a fé não é apenas um sentimento individual. Ela deve nos levar a uma postura social e política que se expressa em uma atitude de cidadania. Não existe verdadeira vida de fé se não se busca criar uma sociedade mais justa e igualitária. Por isso, as pessoas cristãs devem não somente votar de acordo com a sua consciência, mas a partir do interesse dos mais empobrecidos e para que o regime social e político favoreça a realização do projeto divino no mundo e no país. Não se trata de servir apenas a interesses eclesiásticos, mas de construir um mundo renovado de fraternidade entre as pessoas e de comunhão com a natureza.

sábado, 16 de outubro de 2010

INQUISIÇÃO FORA DE ÉPOCA


por JURACY ANDRADE


Colocar a questão do aborto no centro dos debates do segundo turno da campanha eleitoral para Presidente da República é uma grossa sacanagem. Além de o Brasil ser, desde 1889, uma república laica (ao contrário do Império soi-disant católico), não é o presidente da República que legisla e decide sobre a descriminalização do aborto e em que casos pode ser praticado. Isso cabe ao Poder Legislativo, e a eleição para deputados e senadores já foi concluída no dia 3 de outubro.

Apressadinha e doida para ser “primeira dama” (que coisa cafona!), a mulher de José Serra, Mônica, definiu para o eleitorado: Dilma “é a favor de matar criancinhas”. Nos últimos dias da campanha do primeiro turno, o aborto foi içado a principal tema. Não importa o enorme progresso do nosso país nos dois mandatos de Lula, nem o fato de a candidata petista pretender prosseguir nessa rota vitoriosa. Comunidades protestantes e também alguns bispos e padres católicos que são meros funcionários do Vaticano, e não pastores, empurraram a campanha para o terreno religioso, ignorando solenemente que temos um Estado republicano e laico.

Nem padres nem pastores que assim agem aprenderam com a história, com a Reforma de Martinho Lutero, com as guerras de religião que ensanguentaram a Europa nos séculos 16/17. Na Idade Média, aqueles que se julgavam proprietários da Igreja de Cristo mandavam também na política e nos negócios profanos, ou neles se imiscuíam. A Reforma de Lutero pretendeu acabar com essa confusão entre religião e política, com a venda da salvação praticada por pregadores de indulgências, com o império sinistro da Inquisição. Nem todos os cristãos (protestantes tradicionais ou de inspiração mais recente, neopentecostais, católicos) aprenderam as lições da história e continuam misturando política, governo com religião.

O candidato Serra nunca foi de ostentar religiosidade, mas agora, oportunisticamente, vive faturando bênçãos. Parece um congregado mariano de outrora. A campanha eleitoral da oposição descambou para a ferocidade, o preconceito, o ódio, a mentira, a calúnia. A questão do aborto guindada a arma eleitoral é a última esperança dos ultraconservadores para ganhar a eleição e retomar os projetos da época de Collor e FHC, de privatização ampla, geral e irrestrita (não tiveram tempo para privatizar a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa, sem os quais o Brasil teria se ferrado amplamente na recente crise mundial), de um Estado voltado única,mente para o bem dos privilegiados, de um tradicional e servil alinhamento com os interesses dos EUA e outros países ricos, etc.

O aborto como arma eleitoral é uma bandeira hipócrita, pois católicas e protestantes continuam fazendo aborto e, o que pior, as mulheres sem recursos o fazem por métodos duvidosos que as levam até à morte, em clínicas clandestinas que não se submetem a nenhuma fiscalização. Em vez da atual encenação, o que se deveria fazer é uma grande campanha de educação sexual e de planejamento familiar. Certo tipo de religioso não pode nem ouvir falar disso; embora todas as classes mais abastadas o pratiquem, deixando para as menos favorecidas o ônus de ter um monte de filhos de que não podem cuidar, ou de enfrentar o aborto clandestino.

O aborto é um tema delicado e não pode ser abordado a partir de dogmas, preconceitos, marketing eleitoral barato. Para além do aspecto religioso, é um problema de saúde pública. Pior ainda é pô-lo na ordem do dia de uma disputa eleitoral para presidente da República. Como vimos, não é o presidente que legisla sobre o tema. Isso tem de ser discutido seriamente no Congresso, independente de campanha eleitoral e interesses individuais ou partidários. Para protestantes (hoje ditos evangélicos; creio que todo aquele que segue o Evangelho de Jesus Cristo é evangélico) e católicos que não misturam religião com política, é uma vergonha ver bispos pregando contra a candidata Dilma e pastores entrando nessa onda inquisitorial fora de época.

Há, contudo, inúmeras exceções. O protestante Walter Pinheiro, eleito senador, que é contra a descriminalização do aborto, não demoniza Dilma: “O que nós defendemos, o que a Dilma defende é que a mulher que faz aborto, ao chegar às portas do hospital, não seja presa, mas atendida”.



Juracy Andrade é jornalista

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ENTRE O PARTO CESARIA E O PARTO NORMAL


por ASSUERO GOMES



Publicado no Diario de Pernambuco em 10/10/2010

"Uma inverdade dita e repetida muitas vezes acaba se tornando realidade", alguém, de maldita memória, já disse isso e infelizmente estava certo. Sobre o parto muito se tem afirmado e se tem usado de meias verdades, se tem distorcido estatísticas e se tem emitido assertivas baseadas nestes dados, de tal maneira, que está disseminado um conceito, que toma ares de verdade absoluta e unanimidade radical.
Gostaria de tecer alguns comentários sobre o tema, para tentar jogar alguma luz na questão. Tenho uma boa experiência em assistência ao recém nascido na sala de parto, nestes trinta anos de profissão e já passando dos 9.000 nascimentos. Concordo plenamente que um parto normal (vaginal) quando evolui bem e com assistência contínua do obstetra, é o ideal, isso é inquestionável. Porém, e aqui um 'porém' incisivo, a indicação da cesariana em tempo hábil, antes que se manifeste algum sinal de sofrimento fetal, é imprescindível, e representará a diferençavital, entre toda uma vida saudável ou uma condenação perpétua ao sofrimento de uma sequela neurológica.
A lenda urbana que se criou é a seguinte: 'no Brasil a quantidade de cesáreas é maior que em qualquer outro lugar do planeta', mentira! A estatística é manipulada desta maneira: entre as pessoas que têm acesso à assistência por plano de saúde, neste universo, realmente a porcentagem de cesarianas é elevada, no entanto se a amostragem incluir todas as mulheres grávidas do Brasil (as que têm plano de saúde e as atendidas pelo SUS e as que nem ao SUS têm acesso) então a proporção é semelhante a de países como os USA, Canadá e Comunidade Europeia. Outra afirmativa da lenda: 'as complicações para os recém-nascidos de cesariana são maiores e mais graves que os nascidos de parto vaginal', mentira! Divulga-se estatística das complicações das cesarianas para os recém nascidos (RN), que na sua maioria são transitórias e não deixam maiores sequelas e omitem-se as complicações graves de partos vaginais mal conduzidos,que trarão consequências para toda a vida, especialmente as temíveis paralisias cerebrais decorrentes da falta de oxigenação no cérebro dos RN. Não se divulga também as complicações nas parturientes de partos vaginais feitos por curiosas nesse imenso interior do Brasil onde falta tudo.
Longe de mim fazer apologia à cesariana, porém posso testemunhar, que foram muito maiores as complicações, do ponto de vista do RN, em partos vaginais, mesmo em maternidades bem equipadas, que em cesarianas.
O que há por detrás de tudo isso? O governo nas três esferas: federal, estadual e municipal, tem obrigação constitucional de prover assistência médica de qualidade para seus cidadãos, para isso arrecada nossos olhos e nosso sangue em impostos. Porém, e aqui um 'porém' mais incisivo ainda, ele não cumpre sua obrigação. Assistência obstétrica de qualidade requer recursos, embora dentro da medicina, esta especialidade não seja das mais onerosas. Por outro lado, os planos de saúde no seu afã de lucrar, tentam baratear o custo da assistência. Ora, um parto normal é muito mais barato que uma intervenção cirúrgica. Governo e planos de saúde juntos com poder de mídia. Para completar o caldo da lenda, estimula-se o parto através de parteiras, de doulas, em casa, em casas de parto, chegando aos médicos os casos já complicados, quando é fatalmente tarde uma intervenção, engrossando as estatísticas das "complicações".
É sempre bom lembrar que a assistência ao parto é um ato médico e compete a ele, em última instância, as decisões relativas a esse evento, pois a responsabilidade final recairá inevitavelmente sobre o médico.

*Médico e escritor

SEGUNDO TURNO


por FREI BETTO

Surpreendeu a votação (quase 20 milhões de votos) recebida por Marina Silva. Votos dados a ela e não ao PV, pois o eleitor vota em pessoas mais que em partidos. Isso coloca algumas questões.

Muitos eleitores de Marina se coligaram pelas redes sociais da internet. Esta funciona, sim, como poderoso palanque virtual. Milhares de pessoas estão permanentemente dialogando através da web. E isso ajuda a formar opinião.
Curioso é constatar que a militância virtual cresce na proporção em que se reduz a do corpo a corpo, do militante que, voluntariamente, saía às ruas, panfletava, pichava muros, distribuía santinhos e vendia brindes para arrecadar fundos de campanha. É lamentável observar a ausência de militância voluntária em eventos eleitorais, substituída por pessoas remuneradas que, por vezes, nada sabem do candidato que propagam.
Ao contrário do que, até agora, supunham PT e PSDB, o tema da preservação ambiental interessa sim ao eleitor. Já não é pauta “apenas dos verdes”. A sociedade, como um todo, está preocupada com o aquecimento global, o desmatamento da Amazônia, a construção de hidrelétricas poluidoras.
Marina Silva se afirmou politicamente como representante de importantes demandas da sociedade que ainda não foram devidamente assumidas pelo PT e o PSDB. Parafraseando Shakespeare, há mais coisas entre a esquerda e a direita do que supõem os atuais caciques partidários. Criou-se, assim, uma fissura, quebrando a polarização bipartidária. E, para muitos, abriu-se uma nova janela de esperança.
A candidatura de Marina Silva ajudou a bloquear o suposto caráter plebiscitário do primeiro turno. Agora, Dilma e Serra têm que, obrigatoriamente, debater propostas e programas de governo. O eleitor não quer saber se FHC ou Lula foi melhor presidente. Interessa-lhe o futuro: como promover o desenvolvimento sustentável? Como o Estado pode oferecer mais eficientes segurança pública e sistemas de educação e saúde? Como a Amazônia e as nossas florestas serão preservadas?
Marina é neófita no PV. E assim como Lula é maior que o PT, ela também é maior que o PV. E a história do PV está marcada, como ocorre nos outros partidos, por contradições. Participou do governo Lula (ministério da Cultura) e, em nível estadual, do governo Serra em São Paulo (secretaria do Meio Ambiente) e, no Rio, apoiou César Maia (DEM) candidato a senador.
O PV poderá continuar em cima do muro ou até mesmo deixar-se seduzir pelo canto das sereias e aceitar propostas de cargos no futuro governo federal. Marina não. Ela tem uma história de coerência e testemunho ético. Portanto, a candidata do PV não tem o direito de manter-se neutra no segundo turno.
Em política, neutralidade é omissão. Nenhum aspecto de nossas vidas – da qualidade do café da manhã ao transporte que utilizamos – escapa ao âmbito da política. E Marina não veio de Marte. Veio do Acre, das Comunidades Eclesiais de Base, da escola ambiental de Chico Mendes, do PT pelo qual se elegeu senadora e graças ao qual se tornou ministra do Meio Ambiente em dois mandatos de Lula.
O eleitor espera que Marina se posicione, e o faça em coerência com sua história de militância e seus princípios éticos e ideológicos. Seria uma decepção vê-la em cima do muro para observar melhor os dois lados… Fiel não é apenas quem abraça convicto determinada religião. Há que ter fidelidade também à trajetória que permite a Marina se destacar, hoje, como uma das mais importantes lideranças políticas do Brasil.
O que está em jogo, agora, não é o futuro eleitoral da senadora Marina Silva e seu rico patrimônio político de quase 20 milhões de votos. É o futuro imediato do Brasil. Nos próximos quatro anos, a influência dela pesará nos rumos de nosso país. Por isso, é preciso que, embora adepta do verde, ela amadureça o quanto antes o seu posicionamento entre os dois projetos de Brasil em questão.


Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org – twitter: @freibetto


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por LEONARDO BOFF


O Brasil já deixou de “estar deitado eternamente em berço esplêndido”. Nos últimos anos, particularmente sob a administração do Presidente Lula, conheceu transformações inéditas em nossa história. Elas se derivaram de um projeto político que decide colocar a nação acima do mercado, que concede centralidade ao social-popular, conseguindo integrar milhões e milhões de pessoas, antes condenadas à exclusão e a morrer antes do tempo. Apesar dos constrangimentos que teve que assumir da macroeconomia neoliberal, não se submeteu aos ditames vindos do FMI, do Banco Mundial e de outras instâncias que comandam o curso da globalização econômica. Abriu um caminho próprio, tão sustentável que enfrentou com sucesso a profunda crise econômico-financeira que dizimou as economias centrais e que devido à escassez crescente de bens e serviços naturais e ao aquecimento global está pondo em xeque a própria reprodução do sistema do capital.

O governo Lula realizou a revolução brasileira no sentido de Caio Prado Jr. no seu clássico A Revolução Brasileira (1966):”Transformações capazes de reestruturarem a vida de um pais de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas, e as aspirações da grande massa de sua população…algo que leve a vida do país por um novo rumo". As transformações ocorreram, as necessidades mais gerais de comer, morar, trabalhar, estudar e ter luz e saúde foram, em grande parte, realizadas. Rasgou-se um novo rumo ao nosso pais, rumo que confere dignidade sempre negada às grandes maiorias. Lula nunca traiu sua promessa de erradicar a fome e de colocar o acento no social. Sua ação foi tão impactante que foi considerado uma das grandes lideranças mundiais.
Esse inestimável legado não pode ser posto em risco. Apesar dos erros e desvios ocorridos durante seu governo, que importa reconhecer, corrigir e punir, as transformações devem ser consolidadas e completadas. Esse é o significado maior da vitória da candidata Dilma que é portadora das qualidades necessárias para esse “fazimento”continuado do novo Brasil.
Para isso é importante derrotar o candidato da oposição José Serra. Ele representa outro projeto de Brasil que vem do passado, se reveste de belas palavras e de propostas ilusórias mas que fundamentalmente é neoliberal e não-popular e que se propõe privatizar e debilitar o Estado para permitir atuação livre do capital privado nacional, articulado com o mundial.
Os ideólogos do PSDB que sustentam Serra consideram como irreversível o processo de globalização pela via do mercado, apesar de estar em crise. Dizem, nele devemos nos inserir, mesmo que seja de forma subalterna. Caso contrário, pensam eles, seremos condenados à irrelevância histórica. Isso aparece claramente quando Serra aborda a política externa. Explicitamente se alinha às potências centrais, imperialistas e militaristas que persistem no uso da violência para resolver os problemas mundiais, ridicularizando o intento do Presidente Lula de fundar uma nova diplomacia baseada no dialogo e na negociação sincera na base do ganha-ganha.
O destino do Brasil, dentro desta opção, está mais pendente das megaforças que controlam o mercado mundial do que das decisões políticas dos brasileiros. A autonomia do Brasil com um projeto próprio de nação, que pode ajudar a humanidade, atribulada por tantos riscos, a encontrar um novo rumo salvador, está totalmente ausente em seu discurso.
Esse projeto neoliberal, triunfante nos 8 anos sob Fernando Henrique Cardoso, realizou feitos importantes, especialmente, na estabilização econômica. Mas fez políticas pobres para os pobre e ricas para os ricos. As políticas sociais não passavam de migalhas. Os portadores do projeto neoliberal são setores ligados ao agronegócio de exportação, as elites econômico-financeiras, modernas no estilo de vida mas conservadores no pensamento, os representantes das multinacionais, sediadas em nosso pais e as forças políticas da modernização tecnológica sem transformações sociais.
Votar em Dilma é garantir as conquistas feitas em favor das grandes maiorias e consolidar um Estado, cuja Presidenta saberá cuidar do povo, pois é da essência do feminino cuidar e proteger a vida em todas as suas formas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A ARTE DE ENVELHECER SEM SE TORNAR VELHO


por MARCELO BARROS

A ONU dedica o dia 1º de outubro em honra das pessoas idosas e à conquista dos seus direitos. Cada dia mais esta comemoração é oportuna porque, nestas primeiras décadas do século XXI, a humanidade conta com mais gente acima de 65 anos. A medicina já fala em terceira, quarta e até quinta idade. Em todos os continentes, aumenta o número de pessoas centenárias, embora em alguns países pobres da África a profunda injustiça social e a exploração dos países ricos continuem garantindo para aqueles povos uma média de vida ainda muito baixa. No Brasil, o censo deste ano mostrará um progressivo envelhecimento da população. “A população brasileira com mais de 65 anos já aumentou em 2, 5 milhões de pessoas. (...) O Brasil tem hoje 10% da população ativa com mais de 60 anos e chegará a 30% em 2050” (Isto É, 29/09/2010).

Este fato desencadeia novos desafios sociais: maiores cuidados com a saúde pública, a garantia de trabalho, de vida ativa e máxima autonomia possível, participação nos destinos do país e possibilidades de lazer, assim como a segurança nas atividades cotidianas, como a garantia de ir e vir, subir em ônibus adaptados à sua idade e assim por diante. Não basta garantir que as pessoas vivam por mais tempo. É essencial que possam gozar de uma qualidade de vida humana digna. Em países da Europa, a economia que visa apenas o lucro das empresas retarda sempre mais a idade da aposentadoria. Muitos homens e mulheres, aos 70 anos, devem trabalhar para garantir o sustento, enquanto jovens de 30 não conseguem um emprego que lhes permita deixar a casa dos pais e casar.

De todas as responsabilidades sociais para com as pessoas idosas, sem dúvida, a maior é uma verdadeira integração dos mais velhos na família e na comunidade. Quem conhece povos indígenas e visita comunidades negras, remanescentes de Quilombos ou grupos de religião afro-descendente perceberá que ali pessoas mais velhas têm função de destaque na comunidade. Cumprem o papel de bibliotecas vivas que garantem a memória do grupo. Na sociedade moderna, cada vez se dá mais importância à beleza e à elegância do corpo. Todo mundo quer mostrar um corpo sarado. Muita gente recorre até a operações plásticas para parecer mais jovem. Isso não teria conseqüências negativas, se não fizesse parte de uma cultura na qual a pessoa mais velha se sente inútil, ou porque não é mais plenamente produtiva, ou porque, a cada dia, sente mais a necessidade do apoio dos filhos e netos para atividades que antes desempenhava sozinho/a.

Nos aeroportos brasileiros, na hora do embarque, aeromoças de uma companhia aérea chamam os idosos como “pessoas de melhor idade”. Não é fácil ver o corpo enrugar, as forças desaparecerem progressivamente e a gente sentir dores e incômodos espalhados da cabeça aos pés. Algumas pessoas têm a sabedoria de, ao mesmo tempo em que o corpo definha, cuidar do espírito e este se aprimora. A mente se torna mais capaz de interpretar a vida e o mistério permanente das relações. Às vezes, a idade torna o coração mais duro e vacinado para amar. Mas, se nos preparamos melhor para enfrentar estas mudanças naturais da vida, a sabedoria da idade nos tornará capazes do amor gratuito e desinteressado que nos torna mais felizes. Além de mim mesmo, já escutei outras pessoas confessarem que se pudesse escolher manter-se na idade de hoje ou voltar a vinte ou trinta anos no tempo, prefeririam permanecer na idade atual. É claro que isso depende de toda a vida. Não é uma atitude interior que se possa improvisar. Quem se deixou levar por uma ideologia individualista e não cultivou nenhum projeto elevado de vida terá mais dificuldade de encontrar sentido no passar dos anos. Ao contrário, uma irmã de 91 anos que sempre doou sua vida aos mais pobres vive ainda ativa e feliz. Ela me dizia: “O segredo é optar por envelhecer sem se tornar dentro de si mesma uma pessoa velha e amarga”. Perguntei como fazer isso e ela me respondeu: “Não se levar demasiadamente a sério e não se tornar pesada nem para si mesma nem para as pessoas que a cercam”. Isso me lembra o grande arcebispo Dom Hélder Câmara que dizia: “À medida que envelhecemos, devemos cuidar de ser como um bom vinho que quanto mais velho é mais saboroso e não nos tornarmos amargos como vinagre”. Eduardo de Filipo, ator e diretor italiano, dizia: “Um homem que sabe verdadeiramente amadurecer nasce velho e morre criança”. Quem conheceu de perto homens como Dom Hélder ou o grande intelectual Dr. Alceu Amoroso Lima viu isso se concretizar em suas vidas. É um caminho aberto e possível a todos nós.

DILMA E A FÉ CRISTÃ


por frei Betto

Conheço Dilma Rousseff desde criança. Éramos vizinhos na rua Major Lopes, em Belo Horizonte. Ela e Thereza, minha irmã, foram amigas de adolescência.
Anos depois, Dilma e eu nos encontramos no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Ela na ala feminina, eu na masculina, com a vantagem de, como frade, obter permissão para, aos domingos, monitorar celebração litúrgica na Torre, como era conhecido o espaço que abrigava as presas políticas.
Aluna de colégio religioso na juventude, dirigido pelas freiras de Sion, Dilma, no cárcere, participava ativamente de orações e comentários do Evangelho. Nada tinha de “marxista ateia”. Aliás, raros os presos políticos que professavam convictamente o ateísmo. Nossos torturadores, sim, o faziam escancaradamente ao profanarem, com toda violência, os templos vivos de Deus: suas vítimas levadas ao pau-de-arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte.
Em 2003, deu-se meu terceiro encontro com Dilma, em Brasília, nos dois anos em que participei do governo Lula.
De nossa amizade posso assegurar que não passa de campanha difamatória – diria mesmo, terrorista – acusar Dilma Rousseff de “abortista” ou contrária aos princípios evangélicos. Se um ou outro bispo critica Dilma, há que lembrar que, por ser bispo, nenhum homem é santo.
Poucos bispos na América Latina apoiaram ditaduras militares, absolveram torturadores, celebraram missa na capela de Pinochet... Bispos também mentem e, por isso, devem, como todo cristão, orar diariamente “perdoai as nossas ofensas...”
Dilma, como Lula, é pessoa de fé cristã, formada na Igreja Católica. Na linha do que recomenda Jesus, ela e Lula não saem por aí propalando, como fariseus, suas convicções religiosas. Preferem comprovar, por suas atitudes, que “a árvore se conhece pelos frutos”, como acentua o Evangelho. É na coerência de suas ações, na ética de seus procedimentos políticos, na dedicação ao povo brasileiro, que políticos como Dilma e Lula testemunham a fé que abraçam.
Sobre Lula, desde as greves do ABC, espalharam horrores: que, se eleito, tomaria as mansões do Morumbi, em São Paulo; expropriaria sítios e fazendas produtivos; implantaria o socialismo por decreto...
Passados quase oito anos, o que vemos? Vemos um Brasil mais justo, com menos miséria e mais distribuição de renda, sem criminalizar movimentos sociais ou privatizar o patrimônio público, respeitado internacionalmente.
Nas breves semanas que nos separam hoje do segundo turno, forças de oposição ao governo Lula haverão de fazer eco a todo tipo de boataria e mentiras. Mas não podem alterar a essência de uma pessoa. Em toda a trajetória de Dilma, em tudo que ela realizou, falou ou escreveu, jamais se encontrará uma única linha contrária ao conteúdo da fé cristã e aos princípios do Evangelho.
Certa vez, relata o evangelista Mateus, indagaram de Jesus quem haveria de se salvar. Para surpresa dos que o interrogaram, ele não respondeu que seriam aqueles que vivem batendo no peito e proclamando o nome de Deus. Nem disse que seriam aqueles que vão à missa ou ao culto todos os domingos. Nem disse que seriam aqueles que se julgam donos da doutrina cristã e se arvoram em juízes de seus semelhantes.
A resposta de Jesus surpreendeu-os: “Eu tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; estive enfermo e me visitastes; nu e me vestistes; oprimido, e me libertastes...” (Mateus 25, 31-46)
Jesus se colocou no lugar dos mais pobres e frisou que a salvação está ao alcance de quem, por amor, busca saciar a fome dos miseráveis, não se omite diante das opressões, procura assegurar a todos uma vida digna e feliz.
Isso o governo Lula tem feito, segundo opinião de 77% da população brasileira, como demonstram as pesquisas. Com certeza, Dilma, se eleita presidente, prosseguirá na mesma direção.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros - www.freibetto.org twitter:@freibetto


quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O CASO NEYMAR


por Frei Betto

Neymar tem 18 anos de idade. É uma revelação como jogador de futebol. Joga pelo Santos, o mesmo time que projetou Pelé. E joga bem, muito bem. A diferença entre ambos é que Pelé procedia com educação em campo.
Neymar é rebelde. Não entra apenas para jogar. Entra para lutar: xinga o técnico, os adversários, até os parceiros de time. Neymar tem pavio curto. Age na base do olho por olho, dente por dente. Não se conforma de a bola não ser só dele.
O então técnico do Santos, Dorival Júnior, em seu papel de educador (como todo técnico deveria fazer), puniu Neymar por mau comportamento. Por falta de ética, suspendeu-o de jogo. De um jogo importante, contra o Corinthians, dia 22 de setembro. A diretoria do Santos, em vez de apoiar o técnico, decidiu apoiar Neymar. Foi como se a escola expulsasse o professor ofendido pelo aluno.
Dorival Júnior foi demitido e Neymar, escalado para o jogo contra o Corinthians. Adiantou pouco. O Corinthians ganhou por 3 X 2.
Mano Menezes, técnico da seleção brasileira, fez o que o Santos deveria ter feito: puniu o jovem atleta. Mostrou-lhe os limites. Se Neymar quer ver seu talento brilhando nos jogos, terá que aprender a dominar sua fúria. Aprender a saber perder. E admitir que ele pode muito. Mas não pode tudo.
O futebol já foi esporte. Hoje, é competição. Já foi arte. Hoje, é violência. Já foi fator de integração social. Hoje, acirra disputas entre torcidas enfurecidas. Os estádios, em dia de jogo, parecem penitenciárias em dia de visitas. Policiais por todos os lados, torcedores revistados, armas apreendidas.
Os jogadores mais se parecem atletas de luta-livre. Entram em campo para trucidar o adversário. Predomina a agressão verbal e física. As faltas não resultam da disputa de bola. São premeditadas e visam a imobilizar o adversário, de preferência mandá-lo para fora de campo ou mesmo para o hospital.
Os valores democráticos são negados pelo ethos guerreiro do futebol que se pratica hoje. Os times entram em campo imbuídos de espírito revanchista. Por trás de cada jogador há o jogo de poder dos cartolas. Os atletas valem pelo que representam monetariamente. São tratados como produtos de exportação. E, num mundo carente de heróis altruístas, eles ocupam o vácuo. São idolatrados, invejados, imitados.
Na cabeça de milhares de crianças e jovens, eis um modo de se tornar rico e famoso sem precisar dar duro nos estudos. Basta ter a habilidade de fazer a bola obedecer a vontade que se manifesta nos pés.
Gigante adormecido não é apenas o Brasil. É também a nossa seleção, desde a conquista do pentacampeonato. Agora ela acorda. Acorda para a Copa de 2014, que terá o Brasil como palco. Alguns bilhões de dólares estão em jogo. Por isso, o que parece uma simples partida entre dois times é, para cartolas e investidores, um laboratório destinado a transformar gatos em leões.
O Brasil não pode, em 2014, repetir o vexame de 1950. Naquela Copa, no jogo final, em pleno Maracanã, o Uruguai ganhou do Brasil por 2 X 1. Naquela época o futebol ainda era esporte. Os estádios não se pareciam a coliseus nem os atletas a gladiadores. E os cartolas torciam mais por seus times que por suas contas bancárias.
Bons jogadores não brotam de um dia para o outro. São preparados desde a infância. Os clubes mantêm escolinhas de futebol. Muitas exigem dos alunos frequência à escola formal e boas notas. Isso é bom. Mas não suficiente. Essas crianças deveriam também aprender o que significa ética nos esportes. Valores e direitos humanos. Para que, mais tarde, alucinadas pela fama e a fortuna, não se transformem em monstros suspeitos de cumplicidade com traficantes e de homicídios hediondos.
Alguém já refletiu em que medida o bullying, que tanto assusta as escolas, é reflexo do que se passa em nossos estádios? Onde falta educação campeia a perversão. Se a lei do mais forte é o que predomina aos olhos da multidão, como esperar uma atitude diferente de crianças e jovens carentes de exemplos de generosidade e solidariedade?
Nosso futebol, tão bom de bola, não estaria ruim da cabeça? Não teria se transformado num imenso cassino monitorado por quem angaria fortunas? Faz sentido, num país civilizado, atletas, símbolos de vida saudável, posarem de garotos-propaganda de bebidas alcoólicas?
Há que escolher entre Olímpia e Roma, maratona e coliseu. E conhecer a diferença entre os verbos disputar e aniquilar.


Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros.www.freibetto.org – twitter:@freibetto

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CARTA ABERTA AO PRÓXIMO PRESIDENTE DA REPÚBLICA



Por: Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio




Senhora ou senhor,

Esta carta é escrita antes do segundo turno das eleições presidenciais, quando os brasileiros irão escolher se desejam a senhora ou o senhor como primeiro/a mandatário/a do país. Queria pedir aos dois candidatos que disputarão esse segundo turno que, por favor, dessem atenção a algo que, a meu ver, é a prioridade número um do Brasil: a educação.
Em recente pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, do Ibope, a educação aparece como a quarta área que, segundo os eleitores, merece receber mais atenção do próximo presidente da República. Perde apenas para a segurança pública, a saúde e o emprego.
A pesquisa revela ainda que a educação cresceu em importância na consciência do eleitor desde a última eleição de 2006. Na ocasião, ocupava o 7º lugar no ranking, passando agora para o 4º. Isso é extremamente revelador no que diz respeito ao amadurecimento do eleitorado brasileiro. Pois significa que o brasileiro passou a priorizar áreas de resultado a longo prazo e não mais imediatismos.
Recordo-me bem quando o presidente que agora se retira disse em um de seus discursos que sua prioridade número um era a erradicação da fome. E que ele ficaria feliz se graças a seu governo o brasileiro pudesse fazer três refeições ao dia. Creio que por amor à verdade temos que reconhecer que realmente hoje em dia o problema da fome no Brasil se encontra em muito melhor situação do que antes. O brasileiro está comendo mais e melhor e tendo mais acesso aos bens de consumo.
Porém, é forçoso constatar que isso não basta nem plenifica o que significa um verdadeiro desenvolvimento humano. Pelo contrário, um programa de governo que só vise essas necessidades básicas e imediatas do ser humano não toca em uma dimensão essencial: o espírito, a transcendência. Somos seres em contínua auto-transcendência, que têm tanta fome de pão como de liberdade, seres que sentem frio e sede, mas são capazes de suportar essas duas carências para ouvir a música de que mais gostam em um concerto ao ar livre.
Nesse sentido, a educação é imprescindível para fazer do ser humano alguém digno deste nome. Sem educação, sem a mente e o espírito abertos pelo ensino e capaz de pensar e tirar suas próprias conclusões, não adianta a barriga cheia e a televisão na sala. O ser humano não está cumprindo sua vocação na terra, não está fazendo jus ao fim para o qual foi criado.
A pesquisa do Ibope mostra que os entrevistados apontaram, entre as medidas que os próximos governantes devem priorizar na questão da educação pública no país, a melhora do salário do professor em primeiro lugar. Isso também denota um grande amadurecimento, pois ressalta que o maior investimento deve ser feito no capital humano, muito mais do que na construção de prédios onde funcionem escolas. Que escola será esta, mesmo que tenha ótimas instalações, se não tiver educadores apaixonados por sua missão, que desempenhem seu trabalho com amor e entusiasmo e, sobretudo, competência?
Os eleitores, lúcidos e realistas, mostram que só haverá um corpo docente assim qualificado e empenhado se o mesmo for convenientemente valorizado, decentemente remunerado e tiver oportunidades de aperfeiçoar-se sempre mais. Não basta, portanto, multiplicar as escolas e manter os docentes com salários aviltados, tendo que dividir-se e exaurir-se em múltiplos empregos para poder
sobreviver. Eles devem receber o necessário para poder investir na própria carreira, estudar e manter-se atualizados.
Senhora e senhor candidatos que disputarão o segundo turno, o recado do eleitor, de acordo com essa pesquisa, é bem claro. É preciso apresentar propostas consistentes para a área da educação.
Entendam, por favor, o que o eleitor diz em suas respostas.
Já não basta pão e circo para fazer o povo feliz. O brasileiro já não se contenta em ter a boca e o estomago cheios para considerar-se plenamente cidadão. A capacidade desejante de nosso povo cresceu. Graças a Deus!
Não existe povo digno deste nome sem educação. A educação tornou-se no Brasil uma prioridade sempre mais importante, encostando e até ultrapassando áreas que sempre foram priorizadas na expectativa eleitoral, como a saúde e a segurança.
Parece, futuro/a presidente, que nosso povo entendeu finalmente que só com educação se transforma um país. Apenas um povo educado sabe conduzir os destinos de sua nação, escolher seus governantes, reivindicar suas necessidades mais importantes, investir coletivamente em seu futuro.
É a educação que transforma a massa manobrável e manipulável pelos caudilhos e demagogos em povo que tem ideais e projetos consistentes. Por isso esta carta, esta reflexão e este pedido: priorizem a educação em suas agendas. O Brasil lhes agradecerá e a história lhes fará justiça.


Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape