O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O LEGADO DE CHICO MENDES PARA O SÍNODO PANAMAZÔNICO



Por Leonardo Boff

Chico Mendes é um lídimo filho da floresta, identificado com ela. Cedo se deu conta de que o atual desenvolvimento prescinde da natureza e que se faz contra ela, pois, a vê antes como um estorvo que como um aliado. Foi um dos poucos que entendeu a sustentabilidade como equilíbrio dinâmico e autoregulador da Terra, graças a cadeia de interdependências entre todos os seres, especialmente, dos vivos que vivem de recursos permanentemente reciclados e, por isso, indefinidamente sustentáveis. A Amazônia é o exemplo maior desta sustentabilidade natural.
Nós que o conhecemos e com quem privamos de amizade, sabemos de sua profunda identificação com a floresta amazônica, com sua imensa biodiversidade, com os seringais, com os animais, com o mais leve sinal de vida da mata. Tinha o espírito de um São Francisco moderno.
Dividia seu tempo entre a cidade e a selva. Mas quando estava na cidade ouvia fortemente o chamado da selva, em seu corpo e em sua alma. Percebia-se parte dela e não sobre ela. Por isso, regressava de tempos em tempos ao seu seringal e à comunhão com a natureza. Aí sentia-se em seu habitat, em sua verdadeira casa.
Mas sua consciência socioecológica o fazia deixar, por algum tempo, a floresta para organizar os seringueiros, fundar células sindicais e participar das lutas de resistência: os famosos “empates”, estratégia pela qual os seringueiros junto com suas crianças, velhos e outros aliados se postavam pacificamente diante das máquinas dos desmatadores, impedindo-lhes de derrubar as árvores.
Face às queimadas como as atuais da Amazônia que em 2019, foram de 74,155, focos atingindo 18.627 km2, Chico Mendes sugeriu em nome do movimento dos povos da floresta a criação de reservas extrativistas, aceitas pelo Governo Federal em 1987. Bem dizia: “nós seringueiros, entendemos que a Amazônia não pode se transformar num santuário intocável. Por outro lado, entendemos também que há uma necessidade urgente de desenvolvimento, mas sem desmatar e com isto ameaçar a vida dos povos do planeta”.
Afirmou: “no início defendia os seringueiros, depois compreendi que devia defender a natureza e por fim, percebi que devia defender a Humanidade. Por isso propomos uma alternativa de preservação da floresta que fosse ao mesmo tempo econômica. Então pensamos na criação da reserva extrativista” (cf. Grzybowski, C.,(org.) O testamento do Homem da Floresta: Chico Mendes por ele mesmo, FASE, Rio de Janeiro 1989 p.24).
Ele mesmo explica como funciona:”Nas reservas extrativistas nós vamos comercializar e industrializar os produtos que a floresta generosamente nos concede. A universidade precisa acompanhar a reserva extrativista. Ela é a única saída para a Amazônia não desaparecer. E mais : essa reserva não terá proprietários. Ela vai ser um bem comum da comunidade. Teremos o uso-fruto não a propriedade” (cf. Jornal do Brasil 24/12/1988).“Destarte se encontraria uma alternativa ao extrativismo selvagem que somente traz vantagens aos especuladores. Uma árvore de mogno, cortada no Acre, custa de 1-5 dólares; vendida no mercado europeu custa cerca de 3-5 mil dólares”.
Na véspera do Natal de 1988 foi vítima da sanha dos inimigos da natureza e da humanidade. Foi assassinado com 5 balas. Deixou a vida amazônica para entrar na história universal e no inconsciente coletivo dos que amam nosso planeta e sua biodiversidade.
Chico Mendes virou um arquétipo que anima a luta pela preservação da floresta amazônica e dos povos da floresta, hoje assumida por milhões de pessoas. Entendemos a indignação de muitos membros do G 7, liderados por E.Macron, presidente da França, contra a devastação irracional promovida pelo Presidente Bolsonaro. Comete um crime contra Humanidade e mereceria ser julgado por esse crime. A Amazônia é um Bem Comum da Humanidade.
Os megaprojetos amazônicos (brasileiros e estrangeiros) refutam o tipo de desenvolvimento depredador do capitalismo. Ele produz apenas crescimento, apropriado por alguns à custa da floresta e da miséria de seus povos. É contra a vida e inimigo da Terra. Ele é fruto de uma racionalidade demente.
Tais projetos faraônicos.sem as devidas informações tomam decisões em escritórios gélidos, longe da paisagem que encanta, cegos aos rostos suplicantes dos sertanejos e indiferentes aos olhos ingênuos dos índios, sem qualquer vínculo com a empatia e com o sentido de respeito da selva e de solidariedade humana.
Diferente é o Instrumento de trabalho para o Sínodo Panamazônico, onde a voz mais presente e ouvida é dos povos da floresta. Eles sabem protegê-la. Oferecem as melhores sugestões, unindo a salvaguarda da floresta e a extração e produção de seus bens naturais.
Esse “desenvolvimento” é feito para o povo e com o povo. Ele deslegitima a ideia dominante, especialmente do agronegócio de que as florestas deviam ser erradicadas. Caso contrário não se entraria na modernidade.
Os estudos mostraram que não é preciso destruir a floresta amazônica para tirar riquezas dela. A extração dos frutos das palmeiras (açai, buriti, bacaba, pupunha etc), da castanha-do-pará, da seringa, dos óleos e corantes vegetais, das substâncias alcaloides para a farmacologia, das substâncias de valor herbicida e fungicida rendem mais do que todo o desmatamento que sob o governo de Bolsonaro cresceu mais de 230%.
Só os 10% das terras roxas (terras dos índios) já identificadas de excelente fertilidade podem tornar-se áreas de maior produção agrícola mundial. A exploração de minério e de madeira podem caminhar juntos com um reflorestamento permanente que garanta a mancha verde das áreas afetadas (cf. Moran, E., A economia humana das populações na Amazônia, Vozes, Petrópolis 1990, 293 e 404-405 ; Schubart, H., Ecologia e utilização das Florestas, em Salati, E., Amazônia, desenvolvimento, integração, ecologia, op.cit. 101-143).
A Amazônia é o lugar de ensaio de uma alternativa possível, em consonância com o ritmo daquela natureza luxuriante, respeitando e valorizando a sabedoria dos povos originários.
Chico Mendes será para o Sínodo Panamazônico a realizar-se em outubro de 2019 em Roma, um exemplo paradigmático e uma fonte de inspiração.
Leonardo Boff é eco-teólogo e filósofo e escreveu Como cuidar da Casa Comum: uma ética  da Terra, Vozes 2018.


quinta-feira, 29 de agosto de 2019

LIVRO DE TRÁGICA ATUALIDADE




por Frei Betto
*Artigo originalmente publicado no jornal O Globo

       Em 1934, a editora Cruzeiro do Sul, do Rio, publicou “Hitler e seus comediantes – o despertar da Alemanha”, de autoria do futuro embaixador José Jobim, então correspondente de O Globonaquele país. Jobim foi “suicidado” pela ditadura militar, no Rio, em 1979, ao ameaçar denunciar as falcatruas na construção da usina de Itaipu, agora de novo em foco.

       A Alemanha, destroçada pela Primeira Grande Guerra (1914-1918), viu em Hitler um salvador da pátria. Jobim registra: “Os hitleristas prometeram acender o fogão de todos os alemães. Para isso, necessitavam do apoio das mulheres. E, paradoxalmente, a melhor maneira que encontraram para atraí-las foi insultá-las. Houve já quem dissesse que os três Kas – “Kuche” (cozinha), “Kirche” (igreja) e “Kinder” (filhos) – são todo o programa feminista do nacional-socialismo. As mulheres sabem disso e, entretanto, o apoiam.”

       Como explicar esse apoio? “Num país onde há milhões de desempregados, sem nenhuma esperança séria de resolver o problema, a mulher desiludiu-se com a democracia e deu ouvidos ao Fuehrer que lhe prometeu um lar.”

       Jobim escreve: “O nazismo não aprecia a inteligência. Despreza-a. É infindável a lista dos aposentados, demitidos, afastados e perseguidos nas letras, ciências e artes. Nas ciências, o caso mais conhecido é o de Einstein, culpado dos crimes de ser judeu e sábio. Suas obras foram queimadas nas fogueiras da Universidade de Berlim.”

       “Outros autores foram escolhidos para a fogueira. Os autores das obras pacifistas, das poesias e novelas sociais cujos nomes encarnam o melhor da Alemanha democrática. Foram-se os livros de Thomas Mann e Heinrich Mann, Leonhard Frank, Magnus Hirschfeld, Jacob Wassermann, Stephan Zweig, Bertold Brecht, Alfred Doeblin e Th. Plivier.”

       “Quando ouço a palavra cultura, engatilho o meu revólver” – esta frase, repetida à exaustão por Goebbels, na verdade é da peça “Schlageter”, de Hanns Johst, intelectual de esquerda que aderiu a Hitler. Segundo Jobim, “o único escritor nacional-socialista legível”.

       A respeito dos jovens escritores alemães, o autor reproduz as palavras de seu amigo Gorkin: “Assistiram ao triunfo do nacional-socialismo em atitude fatalista. ‘Que importa?’, perguntaram-se. Como defender os princípios democráticos se não acreditavam neles? Logo começaram a pagar as consequências de sua indiferença. O nacional-socialismo respondeu ao seu fatalista ‘que importa?’ queimando suas obras nas praças públicas. Arderam no fogo de seus próprios livros os últimos lampejos de liberdade e rebeldia de toda uma geração intelectual.”  

       “Depurar, transformar, hitlerizar!”, escreve Jobim. “É a preocupação que se manifesta em todos os domínios: educação, moda, patriotismo. O novo ensino superior desprezava, por inútil, o sânscrito. Mas um sábio explicou ao ministro da Educação que o sânscrito era a língua sagrada dos brâmanes, dos arianos da Índia. E pronto! O sânscrito passou a ser gênero de primeira necessidade.”

       Jobim salienta em seu livro: “Os leitores dos jornais servidos pela Agência Brasileira estiveram durante muito tempo convencidos de que o Reichstag (parlamento alemão) fora mesmo incendiado pelos comunistas. As crônicas que enviei da Europa narrando os verdadeiros debates das audiências do processo do Reichstag desmoralizaram os despachos da agência hitlerista no Rio. O Globo encontrou, porém, grande dificuldade para publicá-las. A censura alegava, para cortá-las, a necessidade de não perturbar as boas relações de amizade que o Brasil deve manter com a Alemanha. Não podia, eu, entretanto, ser mais sereno. Minhas crônicas diferiam das de qualquer um jornalista a soldo da Legação alemã apenas pela honestidade com que eram escritas.”

       Pela sua trágica atualidade, a obra de José Jobim sobre a ascensão do nazismo merece ser republicada no Brasil. Qualquer semelhança com o período atual do nosso país não é mera coincidência. Eis um autor à procura de editora.

Frei Betto é escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros.

Copyright 2019 – FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com


terça-feira, 27 de agosto de 2019

PROFECIA, MEMÓRIA PERIGOSA



Por Marcelo Barros

Nessa semana, no Brasil, as comunidades cristãs e as pessoas que buscam a justiça lembram com saudade de três bispos que exerceram sua missão de modo profético e nos deixaram no mês de agosto. No dia 27, celebramos o 20º aniversário da partida de Dom Hélder Câmara (1999), arcebispo emérito de Olinda e Recife, profeta da não violência e da ação justiça e paz. Sete anos depois, (2006), na mesma data, partiu Dom Luciano Mendes de Almeida (2006), arcebispo de Mariana, MG, considerado pai dos pobres e que, com sua sabedoria, ajudou muito a Igreja Católica na América Latina. Na mesma data, em 2017, falecia, em Belo Horizonte, Dom José Maria Pires, ex-arcebispo de João Pessoa e pioneiro da pastoral das comunidades afrodescendentes no Brasil.

Esses profetas viveram e atuaram em tempos difíceis de um Brasil sob ditadura militar e dentro de uma Igreja Católica, dominada pelo conservadorismo e pela tendência de centralização autoritária.

Atualmente, no Brasil, temos uma realidade política difícil que favorece a desigualdade social, a marginalização dos povos indígenas, das comunidades negras e de todos os mais pobres. Do outro lado, em Roma, na coordenação das Igrejas de comunhão católico-romana, temos o papa Francisco que propõe o modelo de uma Igreja Sinodal e a valorização das Igrejas locais. A esses bispos profetas, não teria sido necessário o papa Francisco pedir que fossem à periferia e tornassem a Igreja pobre e dos pobres. Eles já viviam isso por convicção de fé e por terem sido confirmados nesse caminho pelo Concílio Vaticano II e pela conferência latino-americana de Medellín (1968). Dom Luciano se tornou bispo depois do Concílio. Dom José Maria foi ordenado bispo durante o Concílio, mas assumiu a arquidiocese de João Pessoa dois anos depois do Concílio (1967). Durante o Concílio, Dom Hélder liderou um grupo de mais de 40 bispos que, no dia 16 de novembro de 1965, se reuniu em Roma e assinou um compromisso de viver como pobres e ajudar a Igreja a se inserir no meio dos pobres como Igreja serva, pobre e missionária. empobrecidos.

Há mais de seis anos, o papa Francisco se tornou bispo de Roma. Ele revalorizou os princípios fundamentais da renovação eclesial do Concílio Vaticano II: o caráter de Igreja particular de cada diocese, a responsabilidade de todos os bispos junto com o papa pela Igreja Universal e a necessidade da Igreja retomar o diálogo amoroso e humilde com a humanidade, que, há 60 anos, o papa João XXIII iniciou e que, a partir do final dos anos 70, foi interrompido.

Retomar agora o diálogo com a humanidade é mais exigente do que exige a capacidade de interpretar os sinais dos tempos atuais e escutar os apelos e clamores do mundo dos pobres. Para isso, é preciso uma coragem profética que Dom Helder Camara, Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom José Maria Pires tiveram.  A eles, o papa Francisco não precisaria pedir que se libertassem do clericalismo. Eles se fizeram irmãos do povo e se viam como pessoas comuns. Junto com outros bispos do seu tempo, souberam superar preconceitos e dialogar com a parte da humanidade que procura a transformação social e tem fome e sede de justiça e de um mundo mais igualitário e livre.

Na história, muitas vezes, a ideia de transformação social esteve ligada a ódio, violência e luta armada. Hoje, precisamos resgatar a meta de uma revolução social e política baseada em valores humanos e em uma nova ética. Essa revolução deve radicalizar a democracia, tornando-a mais verdadeira e profunda. Toma a educação como tarefa prioritária para transformar o mundo e, principalmente, deve partir dos mais pobres. Por isso, valoriza as culturas indígenas e negras e se solidariza a todas as forças que trabalham pela transformação social da América Latina e Caribe.

Quem é cristão participa desse processo, fazendo a memória perigosa dos nossos profetas e profetizas. Figuras como as de Dom Helder Camara, Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom José Maria Pires nos animam nesse caminho e nos lembram o que escreveu Paulo aos romanos: “Não se conformem com esse mundo, mas o transformem pela renovação de suas mentes” (Rm 12, 1).


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A CRIATIVIDADE DO AMOR





              por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            As situações-limite pelas quais passa a humanidade são reveladoras.  Às vezes ressaltam a crueldade de que são capazes os seres humanos, inventando técnicas de tortura, linhas de montagem industriais para eliminação massiva de pessoas, corrupção monumental que beneficia uns poucos, atirando outros mais fundo na fome e na miséria. Pressionado pela desgraça e a crueldade, o ser humano se animaliza e em seu instinto de sobrevivência busca a todo custo salvar-se ainda que seja ao preço da vida e da segurança de outros. 
            O extraordinário é que essas mesmas situações extremas revelam um outro aspecto, não tenebroso, mas luminoso.  E extremamente criativo. Evidenciam os ápices de nobreza da qual são capazes os mesmos seres humanos, os quais, premidos e encurralados por tiranias e opressões, criam respostas generosas e até mesmo heroicas. Ou seja, extraem vida ali onde a vida é humanamente impossível. 
            Toda essa introdução vem a propósito da festa – celebrada em 14 de agosto -  de um santo do século XX que talvez seja pouco conhecido: o franciscano polonês Maximiliano Kolbe. Entrando jovem para a ordem franciscana, fez doutorado em filosofia e teologia em Roma. Foi posteriormente missionário no Japão. Era profundamente devoto da Virgem Maria e se dedicou durante toda a vida a promover a espiritualidade de veneração a ela como Imaculada, ou seja, a sem pecado, a toda pura. 
            O fato mais marcante da biografia desse homem acontece, no entanto em Auschwitz, o campo de extermínio nazista para onde foi levado como prisioneiro durante a Segunda Guerra Mundial.  O número tatuado em seu braço era 16.670. Um dia do ano de 1941, após a fuga de um prisioneiro, os SS seguiram o protocolo habitual. Dez outros prisioneiros deviam morrer como represália à fuga.  O sargento polonês Franciszek Gajowniczek, ao ouvir seu nome chamado para dar um passo à frente murmurou: “Coitada de minha esposa e de meus filhos”. 
            Maximiliano Kolbe, que estava a seu lado, ouviu essas palavras e interpelou o oficial nazista dizendo: “Sou um sacerdote católico polonês.  Estou velho.  Gostaria de ocupar o lugar deste homem, que tem esposa e filhos”. O oficial ficou irritado, mas finalmente aceitou o louco oferecimento de Kolbe.  E o franciscano de 47 anos foi enviado a uma cela subterrânea juntamente com outros nove a fim de morrer de fome.
            Kolbe, enquanto teve forças e lhe foi permitido, celebrou a Eucaristia com pão e vinho fornecidos às escondidas por guardas que lhe tinham simpatia.  Após três semanas, ainda sobrevivia, juntamente com três outros.  Os nazistas necessitavam desocupar a cela onde estavam os condenados e eliminaram os sobreviventes com uma injeção de fenol. Os corpos foram incinerados no forno crematório no dia seguinte.  Era o dia 15 de agosto, festa da Assunção de Maria.
Não posso dizer que sintonizo com o estilo de espiritualidade de Maximiliano Kolbe.  Sua intensa devoção à Imaculada Conceição de Maria é admirável, mas soa um tanto piegas para os dias de hoje, sobretudo em tempos de diálogo ecumênico, quando importa reforçar os pontos em comum com os irmãos de outras igrejas. 
Porém, sintonizando ou não, é necessário reconhecer que seu gesto é de uma força tal que dignifica não apenas sua pessoa, mas a todo o gênero humano.  Revela a constitutiva capacidade de autotranscedência que tem a criatura finita penetrada pelo Espírito divino. Em meio a um contexto de morte e horror, o obscuro franciscano realizou um movimento redentor de extraordinário alcance. De sua morte brotou a vida para um homem e toda a sua família.  E seu testemunho permanece através dos tempos lembrando que é salvando a vida do outro que salvo a minha.  
Na festa de São Maximiliano Kolbe, a alteridade revela sua prevalência sobre o ego e suas imediatas necessidades. E o amor mostra-se mais criativo que o ódio, gerando vida ali onde os conluios da morte parecem haver fechado todas as saídas. 
-- 
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco), entre outros livros.

Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>



sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A FALTA QUE HOJE NOS FAZ: O AMOR UNIVERSAL E INCONDICIONAL






Por Leonardo Boff

        Dedicado para a pensadora e mestre-astróloga Martha Pires Ferreira
Vivemos atualmente tempos sombrios de muito ódio e falta de refinamento. Precisamos resgatar o mais importante e que verdadeiramente nos humaniza: o simples amor. Estimo que devemos sempre retomar o tema do amor universal e sem précondições.
Sobre ele se disseram as coisas mais elevadas até o de designar o nome próprio de Deus. Para superar o discurso, convencional, convém incorporar a contribuição que nos vem das várias ciências da Terra, da biologia e dos estudos sobre o processo cosmogênico. Mais e mais fica claro que o amor é um dado objetivo da realidade global e cósmica, um evento bem-aventurado do próprio ser das coisas, nas quais nós estamos incluídos.
Dois movimentos, entre outros, presidem o processo cosmogênico: a necessidade e a espontaneidade.
Por necessidade de sobrevivência todos os seres são interdepententes e se ajudam uns aos outros. A sinergia e a cooperação de todos com todos, mais que a seleção natural, constituem as forças mais fundamentais do universo, especialmente, entre os seres orgânicos. A solidariedade é mais que um imperativo ético. É a dinâmica objetiva do próprio cosmos e que explica por que e como chegamos até aqui.
Junto com essa força da necessidade comparece também a espontaneidade.
Os seres se relacionam e interagem espontanemente, por pura gratuidade e alegria de conviver. Tal relação não responde a uma necessidade. Ela se instaura por um impulso de criar laços novos, pela afinidade que emerge espontaneamente e que produz o deleite. É o universo da novidade, da irrupção de uma virtualidade latente que faz surgir algo maravilhoso e que torna o universo um sistema aberto. É o advento do amor.
Ele se dá entre todos os seres, desde os primeiros topquarks que se relacionaram para além da necessidade de criarem campos de força que lhes garantissem a sobrevivência e o enriquecimento na troca de informações. Muitos se relacionaram por se sentirem espontaneamente atraídos por outros e comporem um mundo não necessário, gratuito, mas possível e real.
Desta forma, a força do amor atravessa todos os estágios da evolução e enlaça todos os seres dando-lhes irradiação e beleza.. Não há razão que os leve a se comporem em elos de espontaneidade e liberdade. Fazem-no por puro prazer e por alegria de conviver. Cosmólogos há que afirmam ser o universo todo colorido e, portanto, extremamente belo.
O amor cósmico realiza o que a mística sempre intuiu: “a rosa não tem por quê. Ela floresce por florescer. Ela não cuida dela mesma nem se preocupa se a admiram ou não”. Assim o amor, como a flor, ama por amar e floresce como fruto de uma relação livre, como entre os enamorados.
Pelo fato de sermos humanos e autoconscientes, podemos fazer do amor um projeto pessoal e civilizatório: vive-lo conscientemente, criar condições para que a amorização aconteça entre os seres humanos e com todos os demais seres da natureza. Podemos nos enamorar de uma estrela distante e fazer uma história de afeto com ela.Os poetas sabem disso.
O amor é urgente no Brasil e no mundo. Milhares de refugiados são excluídos e nordestinos, ofendidos. Mais que perguntar quem destila raiva e intolerância é perguntar por que as praticam. Seguramente porque faltou o amor como relação que abriga os seres humanos na bela experiência de cada um se abrir e acolher jovialmente o outro e de se respeitarem mutuamente.
Digamo-lo com todas as palavras: o sistema mundial imperante não ama as pessoas. Ele ama o dinheiro e os bens materiais; ele ama a força de trabalho do operário, seus músculos, seu saber, sua produção e sua capacidade de consumir. Mas ele não ama gratuitamente as pessoas como pessoas, portadoras de dignidade e de valor.
Pregar o amor e dizer: “amemo-nos uns aos outros como nós mesmos nos amamos”, significa uma revolução. É ser anti-cultura dominante e contra o ódio imperante.
Há de se fazer do amor aquilo que o grande florentino, Dante Alignieri, escreveu no final de cada cântico da Divina Comédia: “o amor que move o céu e todas as estrelas”; e eu acrescentaria, amor que move nossas vidas, amor que é o nome sacrossanto do Ser que faz ser tudo o que é.
Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor e escreveu A   força da ternura, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2012.


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

AMAZÔNIA EXIGE NOVO PARADIGMA




Frei Betto

       O papa Francisco, em janeiro de 2018, declarou em Puerto Maldonado, Peru: “A Amazônia é disputada por várias frentes: de um lado, o neoextrativismo e a forte pressão de grandes interesses econômicos ávidos por petróleo, gás, madeira, ouro e monocultivos industriais. Por outro, a ameaça procedente da perversão de certas políticas que promovem a ‘preservação’ da natureza sem levar em conta o ser humano.”

       Francisco ressaltou que uma ecologia integral, que não separe ser humano e natureza, exige nova antropologia e novo conceito de desenvolvimento, nos quais a prioridade seja condições dignas de vida da população local.

       Isso implica defender os direitos humanos e a Mãe Terra; resistir aos megaprojetos que causam morte; e adotar um modelo econômico sustentável, solidário, sintonizado com os ecossistemas e os saberes ancestrais dos amazônicos.  

       Em discurso aos participantes da conferência sobre “Transição energética e cuidado de nossa casa comum”, em 2018, no Vaticano, Francisco frisou que a busca de um crescimento econômico contínuo provocou graves efeitos ecológicos e sociais, porque “nosso atual sistema econômico prospera devido ao aumento de extrações, consumo e desperdício. A civilização requer energia, mas o uso da energia não deve destruir a civilização.”

       Para o sínodo amazônico, a ecologia integral ou socioambiental exige mudança de paradigma, mas também uma espiritualidade da reciprocidade, de harmonia, que mantenha o equilíbrio do bioma capaz de refletir um sentido de convivência dentro dessa imensa maloca comum que é a Terra. Em suma, passar de uma cultura do descarte a uma cultura do cuidado. 

       Para tanto, é preciso promover uma educação ecológica que nos induza a outro estilo de vida, livre do consumismo obsessivo e do paradigma tecnoeconômico. Como propõe o papa Francisco na encíclica socioambiental “Louvado sejas” (Laudato Si), “dar o salto ao Mistério, onde a ética ecológica adquire seu sentido mais profundo”. Esta experiência espiritual, sagrada, ocorre quando se é capaz de solidariedade, responsabilidade e cuidado. 

       Pretende o sínodo que cada paróquia da Amazônia se torne uma ecoparóquia, e adote uma ecopedagogia. Isso significa aprender a conviver com a família de Deus que habita o território panamazônico, no qual há culturas ocultas, isoladas, sem contato com o mundo não indígena; outras que rejeitam convictamente a civilização ocidental; e ainda as que mantêm boas relações com a Igreja sem, contudo, assumir o Evangelho como referência de vida. Existe ainda uma Igreja autóctone, integrada por indígenas que relacionam seus saberes ancestrais com a palavra de Deus.

       A proposta é que a Igreja presente na Amazônia, através de paróquias e congregações religiosas, se oponha aos projetos que ameaçam a floresta e os povos que a habitam, critique o paradigma tecnocrático, o antropocentrismo irresponsável, e o relativismo moral, e valorize a economia solidária, de valor de uso dos bens da natureza, e descarte a que prioriza o valor de troca. 

       Na visita à Amazônia, em janeiro de 2018, o papa Francisco, frisou que “a cultura de nossos povos é um sinal de vida. A Amazônia, além de ser uma reserva da biodiversidade, é também uma reserva cultural que deve ser preservada frente aos novos colonialismos.” E fez este apelo aos indígenas: “Ajudem seus bispos, ajudem seus missionários e missionárias a ser um com vocês e, no diálogo entre todos, possam formar uma Igreja com rosto amazônico e indígena”.

Frei Betto é escritor, autor de “Uala, o amor” (FTD), entre outros livros.
 Copyright 2019 – FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 
  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com



terça-feira, 20 de agosto de 2019

PARA NOS LIBERTAR DE TODAS AS FORMAS DE SERVIDÃO



Por Marcelo Barros

No DNA de todos os caminhos espirituais está a vocação humana para a liberdade. Para se acolher o Espírito Divino no mais profundo de nossas vidas, todos temos de procurar permanentemente sermos livres. Mesmo com imensas contradições e ambiguidades, todas as religiões têm em sua natureza a missão de colaborar para que se organize uma sociedade de pessoas libertadas. Infelizmente, nem sempre as religiões foram fieis a essa orientação. No passado e mesmo nos dias atuais, muitas têm sido coniventes com situações de opressão, injustiças e violência.

A cada ano, no dia 23 de agosto, a ONU celebra o dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição. Durante toda essa semana, em vários países, principalmente naqueles mais marcados pela tragédia terrível que foi, na história, a escravidão negra, ocorrem eventos e conferências sobre o assunto. No entanto, infelizmente, o tráfico e a servidão humana não são apenas lembranças de um passado distante. Até hoje, a África inteira sofre consequências sociais da colonização e da exploração que, por séculos, saqueou suas riquezas e escravizou os seus povos. Mesmo nos nossos dias, o petróleo e os diamantes e minerais do subsolo só têm contribuído para os Estados Unidos e os países ricos da Europa . Para os africanos, acarreta apenas imensa miséria e servidão. 

No mundo contemporâneo, a escravidão mudou apenas de forma. Embora ilegal, o tráfico de seres humanos permanece fonte de riqueza para máfias internacionais, especializadas em prostituição forçada e em migrantes clandestinos que lhes rendem dinheiro. Os escravagistas do século XXI não operam mais em navios negreiros e sim em jatos de última geração.

De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os lucros provenientes do tráfico humano, são de mais de trinta bilhões de dólares por ano. No mundo de hoje, mais de 12 milhões de pessoas já passaram por alguma forma de trabalho forçado ou de servidão. Destas, 10 milhões foram exploradas por agentes privados e muitas em trabalho forçado resultante do tráfico humano. Os dados mais elevados encontram-se na Ásia, seguidos da América Latina e nas Caraíbas. Mesmo na América do Norte e nos países ricos da Europa ocidental, quase 500 mil pessoas são vítimas do tráfico humano e de formas de escravidão contemporânea. Dessas mais da metade são mulheres e jovens menores de idade.

Em um país, como o Brasil, no qual cinco pessoas possuem riqueza equivalente à metade pobre da população brasileira, fica praticamente impossível eliminar, no campo e nas cidades, situações de trabalho semelhantes à escravidão. As políticas do atual governo federal favorecem o trabalho informal e a perda dos direitos dos trabalhadores. Em todo o país as condições de trabalho são cada vez mais precárias. Na Amazônia, há estreita relação entre o desmatamento da Amazônia que tem crescido muito nesses anos e a prática de trabalho forçado. Em pleno centro de São Paulo, indústrias de fundo de quintal e empresas de tecelagem empregam bolivianos em situação ilegal, obrigados a morar no lugar de trabalho, com horários extenuantes e sem salários fixos. Trabalham para pagar dívidas que crescem ininterruptamente e exigem mais trabalho.

A raiz da escravidão é o sistema social que perpetua a desigualdade social e considera o dinheiro mais importante do que a vida. O trabalho escravo atinge principalmente índios, negros, mulheres pobres e crianças. Ele atenta contra a dignidade das vítimas, mas também de toda a sociedade que convive com essa barbárie. O trabalho escravo ainda persiste porque os que o praticam encontram pessoas com tal fragilidade social que se tornam mais vulneráveis a isso Cada um/uma de nós é responsável por criar uma cultura, nas quais esse tipo de crime se torne impossível. Principalmente, quem está ligado a alguma tradição espiritual deve assumir esse compromisso pela justiça como testemunho de sua fé em um Espírito que é amor e ternura solidária. Há muitos anos, um poeta escreveu:

 “Quem trabalha pelo pão de cada dia, faz avançar no mundo o projeto divino. Quem varre a rua e recolhe o lixo está preparando o reino de Deus”.


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

GANGORRA NA FRONTEIRA





           por Maria Clara Lucchetti Bingemer


            Não é de hoje que o movimento da vida é comparado ao de uma  gangorra. O brinquedo no qual se sobe e desce alternadamente nas extremidades de uma longa trave apoiada sobre um espigão faz as delícias das crianças.  E também dos adultos muitas vezes. Pelo movimento que faz subir e descer, não podendo jamais estacionar ao mesmo nível, o significado de gangorra é associado à  insegurança, incerteza, instabilidade. 
            Daí a comparação com a vida, que é o território das surpresas e dos inesperados, levando ora para cima, ora para baixo, aqueles que nela estão embarcados pelo nascimento e que só chegarão ao porto no momento da morte. Nada mais inseguro, instável do que a vida.  E, no entanto, como é apaixonante, bela, preciosa.  Tudo que sabemos é que não pedimos para nascer, mas não queremos morrer.  A gangorra em movimento nos fascina e nela queremos estar, sem parar e sem desistir. E os pequenos que estão começando a viver se deliciam com o movimento para cima e para baixo, incessante e constante. 
            No entanto, há alguns dias esse tradicional brinquedo ganhou a mídia e as redes sociais com novo significado.  Tudo porque dois professores da Califórnia resolveram através não de uma, mas de várias gangorras, subverter o bloqueio e o terror instaurados na fronteira entre México e Estados Unidos. A política migratória, cada vez mais dura do Presidente Donald Trump, tem tido como consequência violência, mortes e deportações na fronteira entre os vizinhos do norte e do sul. 
Dois artistas que são também educadores resolveram inverter a mensagem de obstrução e interdição que o muro representa.  Em Sunland Park, no estado de New Mexico, foram instaladas gangorras que, deflorando a violência fria e inexpugnável do muro, chegam a Ciudad Juarez, do outro lado.  E assim convidam à brincadeira e ao balanço tanto estadunidenses como mexicanos, adultos e crianças, pessoas que se encontram de um lado e outro da fronteira. 
            Desde o último dia 29, as gangorras foram instaladas e começaram a ser usadas.  De um lado, Sunland Park, do outro Ciudad Juarez, uma das mais violentas na fronteira mexicana, onde o feminicídio tem taxas altíssimas e tem havido muitos casos de estupro, violência e morte com os migrantes que por ali passam. 
            A ideia dos dois professores, um arquiteto e uma designer, é mais antiga. Data de 2009.  Mas somente agora foi implementada.  E o resultado foi que o mundo inteiro pôde ver, graças às tecnologias de comunicação veloz que hoje temos, crianças e adultos de ambos os países interagindo, rindo, conversando, brincando enfim. O símbolo sombrio do muro que separa os dois territórios foi subvertido pelas gangorras de cor rosa forte, onde mexicanos e estadunidenses sobem e descem, dialogam e fazem comunhão. 
            Embora aparentemente a intenção da instalação das gangorras tivesse um objetivo primário imediato, que era atrair as crianças, já alcançou muito mais. Não só crianças têm usado a gangorra.   Adultos também se balançam na trave inquieta e rosada que atravessa a grande barreira de aço do muro da divisão.  E pessoas de distintas nacionalidades, não apenas mexicanos e estadunidenses, entram no balanço das gangorras e alternam subidas e descidas que movimentam o corpo e refrescam o espírito. 
            Mais que isso, porém, os dois pedagogos tinham um objetivo ainda mais profundo.  O muro foi feito para separar os dois países e deter os migrantes que vêm não apenas do México, mas de vários países da América Central, tentando chegar ao sonho de uma vida melhor e mais digna. Agora, porém, é ponto de apoio de relações. E as gangorras fazem com que aqueles que ali se sentam e se balançam, rindo e conversando, também reflitam sobre o fato de que o que acontece de um lado tem uma consequência direta para o outro lado. 
            Aí reside talvez o sentido mais pleno e profundo da afirmação de que a vida é uma gangorra.  Nada do que se faz fica impune.  Nenhuma de nossas ações deixa de repercutir sobre o outro e sua vida.  O fechamento das fronteiras de uma nação rica, obstruindo a entrada de pessoas que vêm de uma situação de pobreza e violência, tem consequências dolorosas e até mortais. 
            A gangorra ensina que tudo que sobe desce.  Isso significa que aquele ou aquela que hoje está em situação confortável observando a vida desde uma altitude privilegiada, amanhã poderá estar por baixo, em vulnerabilidade e desvantagem.  Se fosse transferida para o comunitário e o coletivo, talvez as gangorras que perfuram o muro “intransponível” para conectar os de cima e os de baixo pudessem servir para chamar atenção e conscientizar uns e outros, transformando a fronteira em um lugar mais humano e menos inóspito. 
            As gangorras da fronteira mostram que podem, além de subir e descer, perfurar silêncios e bloqueios, e construir relações e solidariedade. Parabéns aos dois autores que colocaram em prática essa bela ideia. 

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc), entre outros livros
Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>



sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O CRISTO CÓSMICO E OS MUITOS “CRISTOS” NA HISTÓRIA




Por Leonardo Boff

O processo de planetização, colocou as religiões em contacto uma com as outras e mostrou como podemos ser religiosos das mais diferentes formas. Esta situação nova coloca a questão referente à figura de Jesus, crido como Cristo e  salvador universal. Como situar Jesus ao lado de outros, considerados por seus povos também como portadores de salvação?
O Cristianismo não é uma cisterna de águas mortas. Ele possui a natureza de um organismo vivo que cresce e se enriquece em diálogo com o diferente. Ele tem agora a oportunidade de revelar virtualidades até hoje latentes. Deve mostrar-se não um problema uma coisa boa.
Queremos nos concentrar na relevância do Cristo cósmico. Ele é visto como dado que está se formando lentamente dentro do cosmos. Ele se densificou no homem Jesus de Nazaré. Mas esgotou nele todas as suas virtualidades ou outras figuras podem ser também expressões deste Cristo cósmico que está inserido na criação?
Mais e mais estamos atualmente nos acostumando a entender todos os fenômenos como emergências do universo em evolução. Assim as figuras de Jesus, de Sidarta Gautama e de outros e outras, antes de surgirem na história humana, estavam em gestação dentro do universo. O universo inteiro se organizou de tal forma que criou as condições de sua formação e emergência. O que irrompeu neles não se transformou em monopólio pessoal. Assim podemos dizer que o Jesus histórico surge como uma expressão singular do Cristo cósmico presente no processo da evolução. O Jesus histórico não esgotaria todas as formas possíveis das manifestações do Cristo cósmico. Algo semelhante vale para Sidarta Gautama.
Pertence à compreensão cristã dizer: cada ser humano foi tocado pelo Filho de Deus encarnado. O que se atribui a Jesus, por ter a nossa natureza, pode ser atribuído,sob uma forma própria, a cada ser humano,formado ao longo de milhões de anos de história cósmica.
Concretamente, nele e em Buda estão presentes todas as energias e os elementos físico-químicos que se forjaram no coração das grandes estrelas vermelhas antes de explodirem e de lançarem tais elementos pelo universo afora como o fósforo, o cálcio, o ferro e outros .
Como o universo não possui apenas exterioridade mas também interioridade podemos dizer que a profundidade psíquica deles vem habitada pelos movimentos mais primitivos do inconsciente coletivo com seus arquétipos ancestrais.
Sem estas determinações eles não seriam concretos como foram. Detenhamo-nos rapidamente na figura de Jesus pois ele é de nosso lar espiritual.
Pierre Teilhard de Chardin (+1955) viu a inserção cósmica de Jesus, chamado de Cristo e cunhou o termo “crístico” em distinção do “cristão”. O “crítico”é um dado objetivo da criação em evolução. Quando chega à consciência no homem Jesus, o “cristico” se transforma em “cristão” que é o “crístico” conscientizado.
Em outras palavras, o Jesus histórico não esgota em si todas as possibilidades contidas no “crístico”. O “crístico” irrompeu em Jesus mas pode emergir também em outras figuras e se encontra na raiz de todo o ser.
Para entender tais afirmações precisamos esclarecer a palavra “Cristo”. Não é um nome, mas um adjetivo que se atribui a uma pessoa. “Cristo” em grego ou “Messias” em hebraico significam o “ungido”.
“Ungido” é aquela pessoa assinalada para desempenhar uma determinada missão. O rei, os profetas, os sacerdotes eram “ungidos”, para desempenharem suas missões específicas. Mas cada pessoa individual é também um “ungido” pois tem o seu lugar no desígnio divino. Jesus foi chamado de “Cristo-ungido” por causa de sua obra redentora e libertadora, realizada de forma exemplar.
O budismo conhece semelhante caminho. Em primeiro lugar existe Sidarta Gautama, o ser histórico que viveu seiscentos anos antes de Cristo. Mediante um processo de interiorização e ascese chegou à “iluminação” que é um mergulho radical no Ser. Começou então a ser chamado de “Buda” que significa o “Iluminado”. Mas essa iluminação – ser Buda – não é o monopólio dele. Ela é oferecida a todos. Existe, portanto, a “budeidade”, aquela realidade radical que pode se autocomunicar de muitas formas às pessoas. O Buda é uma manifestação da “budeidade” que é a mais pura luz, a essência do Inominável. É um “ungido”.
Como transparece, o conteúdo concreto de “Cristo” e de “Buda” remete à mesma realidade “crística”. Ambos revelam o Ser que faz ser tudo o que é. Sidarta Gautama é uma manifestação do Cristo cósmico como o é também Jesus de Nazaré. Ou Jesus de Nazaré é um “Iluminado” como Buda.
Expressões singulares do Cristo cósmico ou da Iluminação são figuras como Krishna, Francisco de Assis. Mahatma Gandhi, o Papa João XXIII, Dom Helder Câmara, Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce entre tantos e tantas. Eles e elas não esgotam as possibilidades desta sublime realidade “crística”. Ela se dá em todos. Mas neles ganharam tal densidade que se transformaram em referências e arquétipos orientadores para muitos.
O conhecido mestre yogui do Brasil, Hermógenes, já falecido, sem cair no sincretismo fácil mas a partir de uma profunda experiência espiritual de unidade com o Todo criou a seguinte fórmula como “Glória ao Uno”:
“Pedi a benção a Krishna. E o Cristo me abençoou.Orei ao Cristo. E foi Buda que me atendeu.Chamei por Buda.E foi Krishna que me respondeu”.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.