O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

ANTES QUE TERMINE MAIO....

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

Falamos de Maria, mãe de Jesus, de vacina, bem comum e esperança de todos. E o mês de maio já está acabando.  O Dia das Mães ficou para trás e não falamos sobre essa experiência humana fundamental que é a maternidade.  Transitando entre o mais horizontal e contingentemente biológico e o transcendente que lhe dá estatura de quase milagre, antes que termine maio, não posso deixar de escrever sobre maternidade. 

Sempre de fundamental importância, chamando a atenção das religiões, das igrejas e do pensar acadêmico, a maternidade hoje encontra uma nova e potente analogia: a terra. Nossa Mãe Terra, como diz o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si, de 2015.  Pacha Mama, Nana e outros muitos nomes pelos quais é venerada a terra em diversas religiões: andinas, afroameríndias e outras. 

Em um momento como o que vivemos, quando a espécie humana sente aterrorizada, pesando sobre sua cabeça, a ameaça da extinção, é importante voltar-se para a fonte da vida, que se encontra no feminino e muito concreta e tangivelmente no corpo feminino. Criado capaz da maternidade, de gerar outro corpo, carregá-lo,  trazê-lo ao mundo, alimentá-lo com o leite que sai de seu corpo e criá-lo para que a vida se multiplique, a fim de que o povo ganhe mais filhos e a fecundidade, e não a morte, tenha a última palavra. 

A experiência de que somos Terra constituiu a matriz da autocompreensão da humanidade desde que o mundo é mundo e o homo sapiens tomou consciência disso. Essa experiência matricial produziu uma espiritualidade e uma política configuradas nas instituições matriarcais.

As mulheres são os eixos organizacionais da sociedade e da cultura. Surgiram sociedades sagradas centradas e organizadas em torno da primordialidade da vida, que deveria ser cuidada, protegida e reverenciada.

A Mãe Terra carrega a memória, as origens, a nostalgia da integração e da plenitude. Rememora um passado histórico e real, que urge ser resgatado e ganhar validade hoje, aqui e agora. 

A terra é o corpo vivo da criação. E este corpo funciona como o corpo feminino. Tem ciclos, é receptivo e permeável à penetração do outro. Fertilizado, dá frutos. Quando atacado e agredido, seca e se esteriliza. É um corpo vivo, encontra sua analogia na abertura, receptividade e fecundidade que acontece no corpo da mulher, que é terra semeada e fecundada.

Como   dizem os versos inspirados de Chico Buarque e Milton Nascimento, a terra deve ser afagada, seus desejos conhecidos pelo Amante que por sua vez a deseja.  Como as fêmeas animais e humanas, ela tem ciclos, cios que são propícia estação de fecundar o chão. 

A Mãe Terra é um corpo aberto e potencialmente fecundo, pronto para gerar vida.  E nesta crise ecológica vem sendo esterilizada por sucessivas agressões e irresponsáveis ataques.  Em estreita conexão com o feminino e sua vulnerabilidade, que é potência de vida, a terra necessita ter seus clamores desesperados ouvidos e atendidos, seus desejos conhecidos e respondidos, seu corpo acariciado e protegido daqueles que veem nele apenas fonte de lucro e a exploram com ganância desmedida. 

A maternidade é, hoje, inseparável da luta ecológica, como mostra a corrente de pensamento denominada Ecofeminismo.  A Mãe Terra, criação de Deus, vive hoje sugada em forças e recursos, agredida em potencialidades, diminuída em possibilidades, esmagada em força vital.  Não se respeitam seus ciclos, sua gravidez lenta e progressiva, seu útero fecundo.  Não se acaricia seu corpo para que suas sementes se abram em flores de beleza luxuriante ou em frutos turgidos de sumo. 

 E, no entanto, qual mãe amorosa cuja realização é que seus filhos vivam plenamente continua a alimentá-los com o que lhe resta de vida, energia e forças.  Foi criada por Deus, que é Vida em Si mesmo, e assim sua única ciência e seu único agir é dar vida. No entanto, não é inesgotável ou eterna como Seu Criador.  Depende de nós, humanos, não esgotar seus recursos para que possa seguir sendo a mãe com seio túrgido que sacia a todos com os frutos de seu ser. 

Antes que termine maio, mas igualmente em todo tempo e em toda parte, é digno e justo louvar e reverenciar a maternidade, esse potencial biológico e natural, esse milagre transcendente e sagrado que é ser um corpo fecundado e habitado por outro que dele se alimenta e dele depende para viver. 

 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Experiência de Deus em corpo de mulher” (Editora Loyola), entre outros livros.

 

sábado, 29 de maio de 2021

SANIDADE E LOUCURA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(28/05/2021)

 

     Poucas palavras são tão polivalentes como a palavra loucura em nossa língua pátria. Se alguém nos chamar de louco, precisamos decifrar a sua intenção no olhar ou no tom da voz, pois podemos estar  sendo alvo de repreensão ou de consternação ou de admiração. Há loucos de hospício, loucos de paixão, loucos de Deus e até loucos de "faz de conta".

     Entre os antigos latinos, dizia-se proverbialmente "quando os deuses querem destruir alguém, primeiro o enlouquece". No entanto, S.Paulo escreve aos coríntios: "por causa de vocês, procuro ser prudente, mas, por Deus, cometo loucuras" 2Cor 5,13. Para a grande mística Sta.Teresa D'Ávila, "sem o tempero da loucura, todo amor é insípido". E o mais universal dos santos, S. Francisco de Assis, definia-se como um louco por inspiração divina: "O Senhor me chamou a ser um novo louco no mundo". Por conseguinte, de perturbação mental à mais elevada mística, a loucura percorre todo o escalão do comportamento humano.

 

     Às vezes temos a impressão de que tornar-se louco, vez por outra, é uma necessidade básica para permanecer são neste vasto campo de insanidades em que se converteu nosso mundo atual. É uma forma de tornar a realidade suportável. No campo das relações cotidianas,  não é nada agradável conviver com gente sem humor, sem sal, sem graça, sem verve, sem o tempero da loucura. Talvez se encontre mais gente deprimida por excesso de normalidade do que por eventuais loucuras. Outras horas temos dúvidas se este mundo merece nossa lucidez, se não seria mais sadio estirar-lhe a língua, como no famoso retrato de Einstein. De qualquer forma, uma vida sensata não tira o direito à loucura. "Há tantos loucos felizes!", exclama a poetisa portuguesa Florbela Spanca.

     No Evangelho, Jesus apresenta um critério simples e sábio, capaz de discernir os diversos estados de loucura e assim livrar-nos dos psicopatas, "pelos seus frutos os conhecereis" Mt. 7,16.

    Os impulsos loucos de Paulo, de Teresa D'Ávila, de Francisco de Assis, redundaram em santidade, não de uma hora, de um dia, mas da vida inteira, culminando com a mais convincente de todas as loucuras: eles deram a vida por amor.

       Nas últimas décadas tivemos oportunidade de conhecer algumas figuras que se projetaram na política por discursos inflamados, em tom de "loucura". Em pouco tempo desapareceram no meio das sombras. Seu discurso não tinha consistência prática. Era mera retórica. De eminentes candidatos a Presidente do país, regrediram à condição de candidatos não eleitos para a Câmara de vereadores em sua terra natal.

 

     Em negrito queremos destacar alguns heróis e heroínas, que foram tomados da "loucura profissional", nem por isso menos santa, de por em risco suas vidas pela saúde de outros. O coronavirus pôs às claras estes exemplos de muitos profissionais da saúde.

 

     Toda esta variedade de significados nos deixa atônitos pela seguinte questão: é possível que loucos insanos assumam o comando de uma nação? E toda a população fique à mercê de suas insanidades? - sem dúvida, a História o comprova com frequência. Como discerni-los? "Pelos seus frutos os conhecereis".

 

     Veja-se a real condição da vida do povo. Avalie-se o clamor mudo e impotente dos pobres. Observe-se o ar de desdém de pequenos grupos dominantes. E compreenda-se uma coisa: silenciar é tornar mais poderosa a voz dos loucos.

 

     O caminho de solução se abre à vista de quem tem olhos para ver: o exercício da cidadania, o grito da indignação, o convite para as ruas e praças, o convencimento porta à porta, o tiro certeiro do voto, o poder da Fé no Deus da Justiça.

 

    Um dia Jesus foi colocado diante deste impasse e não vacilou em declarar: "não vim ao mundo trazer a paz e sim a espada" Mt.10,34. Decerto Ele não se refere à espada que derrama sangue irmão, mas à espada inquebrável de quem teima, avança, persevera, sacrifica-se, não se cansa, porque "sabe em quem pôs a sua confiança" 2 Tim.1 12.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

NO MEIO DA PANDEMIA: A URGÊNCIA DO ESPÍRITO DE VIDA

 


                           Leonardo Boff


 

Em plena pandemia com milhares de mortos cada dia, celebramos a festa de Pentecostes, do Espírito doador de vida e curador. Sua atuação junto a todos os que estão na linha de frente no combate ao Covid-19 é urgente para mantê-los vivos, protegidos e com o ânimo heroico de continuarem em sua missão de salvar vidas, pondo as suas próprias em risco. O hino litúrgico da festa de hoje fala que ele é o “consolador ótimo e o doce refrigério”.Mais do que nunca deve se mostrar com estes dons a todos os que trabalham nos hospitais.

Reflitamos um pouco sobre a natureza do Espírito Santo e sua relevância para a vida e para o dramático momento atual.

Em primeiro lugar importa dizer que o Espírito foi o primeiro a chegar a este mundo e ainda está chegando. Veio e armou sua tenda sobre Maria de Nazaré. Quer dizer, fixou nela sua morada permanente (Lc 1,35) e elevou o feminino à altura do Divino.

Desta sua presença, se originou a santa humanidade do Filho de Deus. O Verbo armou sua tenda (Jo 1,14) no homem Jesus gerado por Maria. Num momento da história, ela, a simples mulher de Nazaré, é o templo de Deus vivo: nela habitam duas divinas Pessoas: o Espírito  que a faz “bendita entre todas as mulheres” (Lc 1,42) e o Filho de Deus, crescendo dentro dela, de quem é verdadeiramente mãe.     

Depois,  o Espírito desceu sobre Jesus na ocasião do batismo por João Batista e o inflamou para a sua missão libertadora. Desceu sobre a primeira comunidade reunida em Jerusalém, na festa de Pentecostes que agora celebramos, fazendo nascer a Igreja. Continuou descendo, independentemente, se as pessoas eram cristãs e batizadas ou não como ocorreu com o oficial romano Cornélio, ainda pagão (At 11,45). E em toda a história sempre veio antes dos missionários, fazendo com que no coração dos povos vigorasse o amor, se cultivasse a justiça e se vivesse a compaixão.Esses valores mostram a ação do Espírito Santo. Uma vez entrado na história, nunca mais a deixou. Toma o que é de Jesus, passa-o adiante mas também “anuncia coisas novas que hão de vir”(Jo 16,13).

É pelo Espírito que irrompem os profetas, cantam os poetas, criam os artistas, e pessoas praticam o bem, o justo e o verdadeiro. Do Espírito se moldam os santos e santas, especialmente aqueles que entregam a própria vida para a vida dos outros, como agora os que trabalham,quase à exaustão, nos hospitais do Brasil e do mundo.

É também pelo Espírito que velhas e  crepusculares instituições, de repente, se renovam e prestam o serviço necessário para as comunidades como o Papa Francisco está fazendo e também outras igrejas cristãs.

O mundo está grávido do Espírito mesmo quando o espírito da iniquidade persevera na sua obra, hostil à vida e a tudo o que é sagrado e divino. Isso está ocorrendo em nosso país com um governante mais amigo da morte do que da vida.

Quem se sente mais penalizado nesse momento, sem casa adequada para morar, sem saber o que vai comer no dia seguinte, sem trabalho e sem nenhuma segurança contra os ataques do vírus letal é o pobre. Hoje são milhões. Os pobres gritam. E Deus é o Deus do grito, quer dizer, aquele que escuta o grito do oprimido. Deixa sua transcendência e desce para escutá-los e libertá-los, como no caso do cativeiro no Egito (cf. Ex 4,3). É o Espírito que nos faz gritar Abba, Paizinho querido (Rm 8,15; Gal 4,6). Por isso o Espírito é o pai  e o padrinho dos pobres (pater pauperum) como a Igreja canta hoje nesta festa.

Seguramente não o faz miraculosamente, mas lhe confere ânimo e resistência, vontade de luta e de conquista. Não deixa que seus braços se abaixem. Ele enviou a luz aos corações dos pobres para descobrirem as iniciativas certas, persistirem e de fato chegaram vivos  até hoje; se os indígenas não puderam ser totalmente exterminados e agora, por incúria das autoridades brasileiros estão sob grave risco, se os afrodescendentes não puderam sucumbir ao peso da escravidão, foi porque dentro deles havia uma energia de resistência e de libertação, aquilo que o hino chama de dons e luz dos corações: o Espírito Santo, pouco importa o nome que dermos.

Aos desesperados Ele se mostra como um consolador sem igual. Não os assiste a partir de fora. Foi morar dentro deles com hóspede para auxiliá-los e aconselhá-los, pois esta é sua missão. Nos grandes apertos e crises, Ele se anuncia como uma referência de paz, de calma: um refrigério. Pois assim diz o hino de Pentecostes que estou citando literalmente.

Ele surge como o grande consolador. Quantas vezes,nestes tempos sombrios de epidemia as agruras da vida nos fazem encher os olhos de lágrimas. Quando perdemos um ente querido, sem poder se despedir dele e fazer o luto necessário, ou vivemos profundas frustrações, afetivas ou profissionais como desempregados/as parece que caímos num abismo. É nestes momentos em que devemos suplicar: “Vem Espírito, sede nosso  conforto; enxugue nossas lágrimas e alivie nossos soluços.

O Espírito Santo  veio uma vez e continua vindo permanentemente. Mas em momentos dramáticos como os nossos, sob o Covid-19 precisamos clamar:”Vem Espírito Santo e renova a face da Terra, salve o nosso país, livre-nos dos que não cuidam da vida”.

Se o Espírito não vier, seremos condenados a ver a paisagem descrita pelo profeta Ezequiel (c.37):  a Terra coberta de cadáveres e ossos por todos os lados. Isso jamais queremos de jeito nenhum. Mas quando ele vem, os cadáveres se revestem de vida e o deserto se faz um vergel. Os pobres receberão sua justiça, os enfermos ganharão  saúde e os pecadores que somos todos nós, receberemos o perdão e a graça. Oxalá isso aconteça logo.

Essa é a nossa fé e mais ainda, a nossa imorredoura esperança, unida a um profunda solidariedade com todas as vítimas do Covid-19 de nosso país e do mundo.

Leonardo Boff é teólogo e esceveu O Espírito Santo: fogo interior, doador de vida e pai dos pobres, Vozes 2013.

 

quinta-feira, 27 de maio de 2021

TEM FUTURO ESSE FUTURO?

  

Frei Betto


        As pesquisas pretendem encontrar uma forma de dotar bonecos e bonecas revestidos de silicone capazes de imitar a pele humana.

       Quem da minha geração poderia imaginar, há 40 anos, que hoje teríamos em mãos um aparelho que cabe no bolso da camisa e nos permite conectar com o mundo, ver filmes e vídeos, fazer pesquisas e até proferir conferências com visibilidade para o público? 

       Quem poderia supor que as redes digitais quebrariam o monopólio de notícias em mãos da grande mídia ou que um hacker seria capaz de, à distância, sugar eletronicamente arquivos secretos (mas não seguros) dos governos? 

       O que o futuro nos aguarda supera o imaginário da soma de mentes visionárias como Leonardo da Vinci, Júlio Verne e George Orwell. Foi um artigo de Ricardo Abramovay que me chamou a atenção para o livro de Jenny Kleeman, “Sex robots and vegan meat. Adventures at the frontier of birth, food, sex and death” (em tradução livre “Robôs sexuais e carne vegana. Aventuras na fronteira do nascimento, da alimentação, do sexo e da morte”).

       A autora informa que no Vale do Silício pesquisadores buscam como nos assegurar a felicidade com recursos tecnocientíficos. Uma pessoa deixaria de procurar seu parceiro ou parceira ideal, livre do risco de se decepcionar ;com vários relacionamentos; bastaria adquirir um robô dotado de inteligência artificial programado para se adequar perfeitamente ao gosto de seu amo e senhor, inclusive na satisfação de seus desejos. 

       Um cético poderia retrucar que tal hipótese é absurda. Ora, não há milhares de pessoas que prescindem de relacionamentos humanos e vivem felizes em companhia de seus animais? Inclusive porque cães e gatos não falam, não questionam, não exigem DR e se ajustam com facilidade ao gosto do dono.

       As pesquisas pretendem encontrar uma forma de dotar bonecos e bonecas revestidos de silicone capazes de imitar a pele humana. Outros teriam a função de acolher o feto para que ele se desenvolva fora do útero da mãe. Isso a livraria dos incômodos da gravidez e a manteria ativa no mercado de trabalho. 

       Os veganos, que apontam os males que a carne causa ao organismo humano e os rebanhos ao equilíbrio ambiental, poderão desfrutar de um churrasco cujas peças de alcatra, picanha e maminha procedem de vegetais. Não vale, entretanto, indagar se são alimentos orgânicos, pois considerável dose de ingredientes químicos se fazem necessários para tornar o leitão à pururuca tão suculento quanto o do vizinho não vegano que come o mesmo prato sem culpa.

       Todo esse processo tecnocientífico ameaça a autonomia humana e corre o risco de transformar cada individuo em mera peça da linha de montagem da voraz fábrica de lucros. Ao preencher seu cadastro, seu médico, por exemplo, perguntará com que idade e em qual data você prefere morrer. Caso você sobreviva aos fatores imprevisíveis, poderá até mesmo redigir o convite a seus familiares e amigos, para que compareçam ao velório e às cerimônias religiosas.  

       Esse “admirável” mundo novo, visto de hoje, levanta uma questão não abordada pela ciência e a tecnologia: o que faz a felicidade humana? É óbvio que não resulta de fama, poder, dinheiro e beleza. Há muitas pessoas que alcançaram esses quesitos e são também felizes. Mas a legião de infelizes demonstra que não são suficientes. No entanto, sem nada disso, há milhões de pessoas felizes porque encontraram o fator fundamental para atingir esse bem – o sentido que se imprime à vida. E isso nenhuma inteligência artificial será capaz de nos incutir. 

 

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mario Sérgio Cortella e Leonardo Boff, de “Felicidade foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros.

 

 

Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

quarta-feira, 26 de maio de 2021

MENTIRAS, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 



 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO

(26/05/2021)

 

     Dentro deste vasto mundo onde habitamos há um mundo específico no qual eu engatinho feito criança fascinada e assustada. Sei que fomos nós que o criamos, mas, por vezes, me pergunto se a criatura não se apropriou do criador. Quem é que manda? Quem é que obedece? Quem tem o controle? Quem é controlado?

     Trata-se do mundo da INTERNET.

     Ela está invadindo os espaços de 99,9% da população mundial, seja na mente ou nas mãos ou no bolso ou na alma. De vez em quando escuto uma terrível profecia: quem não entrar nela de cabeça não terá futuro. A dúvida que me ocorre é sempre a mesma: ela veio para desenvolver a inteligência ou para criar  autômatos?

     Por outra parte, confesso o meu desejo ardente de conhecer a fundo os seus efeitos no campo dos princípios e valores morais que orientam a sociedade humana. Desde sempre e ainda hoje, as relações entre povos e entre indivíduos se fundam na confiança de que os interlocutores estejam lidando com a verdade.

Contudo, nestes últimos tempos, fomos surpreendidos por uma invasão de milhões de fake-news, via redes sociais, desmantelando toda segurança. Parece que mentira e verdade foram lançadas na arena para um combate aberto, sob milhões de olhares, e a primeira impressão é que a verdade está perdendo de lavagem.

 

     Em nosso país, particularmente, assiste-se a uma verdadeira tragédia moral, protagonizada por figuras políticas de cúpula, tendo como platéia 200 milhões de expectatores (a maior parte comendo pipoca). Aí a mentira faz um strip-tease completo, sob os aplausos de uma parte e a perplexidade de outra parte dos assistentes. Quando o Presidente da nação, eleito por benefício de uma avalanche de fake-news,  inicia seu governo citando uma frase bíblica ("conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará"), temos uma clara noção da  encruzilhada a que chegamos.

     Aí vem a CPI da Covid e expõe o previsível espetáculo onde se misturam tragédia e comédia. Não  é preciso grande esforço para se conhecer a verdade. Ela é precisamente o contrário do que está sendo dito por figuras que ocupam funções públicas, convocadas para depor sob juramento constitucional. Os espectadores não precisam ser  convencidos a acreditar, uma vez que o papel da mentira não é mais esconder as intenções, mas sim escancará-las. Reproduz-se o famoso episódio do "rei nu", do rei ludibriado por dois prestigitadores, que lhe prometeram tecer uma veste real com fios de ouro. No dia e hora marcados, o soberano desfilou solenemente, sob o olhar do seu povo, até que uma criança gritou do meio da multidão: "o rei está nu!". Hoje já não é preciso ter o olhar puro de uma criança; qualquer cidadão, bem ou mal da vista, pode ver que "os reis estão nus".

     Sem nenhum estímulo de perguntar pela verdade, resta-nos indagar simplesmente: o que é que está acontecendo? Que país é este?  A nação virou refém do "Pai da Mentira"? Nos corredores dos hospitais e nas consciências sensíveis, a pergunta é mais cruel: quantas destas 450.000 mortes por covid resultaram de omissões e mentiras oficiais?

     Em meio a este apagão moral, a indignação é um dom do Espírito Santo e a resignação, uma artimanha de satanás. Como fazer da justa revolta uma arma eficaz

de combate à mentira?

 

     Quem se deixa guiar pela Fé, leia todo o capítulo 23 do Evangelho de S. Mateus,  e conhecerá um arsenal de imprecações de Jesus contra os mentirosos. "Hipócritas, raça de víboras, sepulcros caiados! Bonitos por fora, mas, por dentro, só podridão" Mt.23,7. Ele os acusa de chantagem: "Ai de vós, doutores da lei e fariseus hipócritas! São vocês que fecham o Reino dos Céus. Não entram e não deixam que entrem os que desejam entrar" Mt. 23,13. Porém, ao final, Jesus nos adverte contra o pessimismo. "Não tenham medo deles. São como cegos guiando outros cegos, e quando um cego guia outro cego, caem ambos no abismo" cf. Mt.15,14.

     Se a coragem de nosso Redentor custou-lhe o preço do Calvário, não faltam hoje novos mártires da Verdade: companheiras e companheiros nossos que estão exilados, outros enfermos ou feridos, outros ainda fisicamente mortos, porque não foram vencidos pelo medo.

     A História, mestra da vida, já provou que nenhuma construção fundada na mentira se consolida por muito tempo. O pior de tudo seria pensar: isso tudo é o fim para aqueles que lutam pela Verdade. Não! Absolutamente! Isso é o começo do fim para aqueles a quem só resta a mentira. (De sobra, um provérbio árabe: "com a mentira se consegue o almoço, mas não o jantar")

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

terça-feira, 25 de maio de 2021

A DESCRENÇA DE QUEM CRÊ E A FÉ DE QUEM NÃO CRÊ

 

Marcelo Barros

Quem crê em qualquer coisa ou não sabe exatamente em que crer, ou não crê em nada de forma profunda”, ensinava um professor de Bíblia. Assim, ele comentava a conclusão da 1ª carta atribuída ao apóstolo João: “Filhinhos/as, cuidado com os ídolos” (1 Jo 5, 21). De fato, no século XVI, em Genebra, o reformador João Calvino repetia sempre: “O ser humano é uma permanente fábrica de ídolos”.

O termo ídolo vem do grego e significa imagem falsa, que não corresponde ao original. Nestes tempos de publicidade, pessoas famosas pagam agências e profissionais para cuidar de sua imagem. Quem retoca a aparência física e faz cirurgia plástica para mudar algum defeito no rosto não deixa de ser ele ou ela mesma. No entanto, quem se apresenta de modo falso ou diz de si mesmo competências e capacidades que não possui comete o que a lei chama “falsidade ideológica”.

Nas religiões, o termo ídolo designa imagens não adequadas de Deus. Faz parte da cultura humana fazer imagens físicas ou mentais de tudo aquilo com o qual as pessoas se relacionam. Desde tempos muito antigos, os povos adoravam ao mistério divino nos astros. Outros adoravam animais como o crocodilho do rio Nilo, a serpente na Babilônia, a águia em Roma. Muitas culturas veem Deus nos antepassados. A Bíblia rejeita o bezerro de ouro dos hebreus, mas aceita a serpente de bronze. Esta era uma imagem de Deus que servia para curar as pessoas. A outra as afastava do caminho da unidade e da libertação. Cinco séculos antes de Jesus, na Índia, Buda advertia: “Não confunda a lua com o dedo que aponta a lua”.

Em todas as épocas, o nome de Deus foi tema de conflito. Até hoje, sempre que podem, impérios usam o nome de Deus para se legitimar. Na Alemanha dos anos 30, Adolf Hitler começou o Nazismo afirmando: “Deus acima de todos”. Muitos grupos e Igrejas cristãs ficaram contentes por ter, finalmente, um presidente que falava em nome de Deus. Ao contrário, pastores como Dietrich Bonhoeffer e outros denunciaram isso. Foram presos e condenados à morte como ateus. Hoje, eles têm seus nomes no livro dos/das mártires da Igreja, porque deram as suas vidas para que o opressor não instrumentalizasse o nome de Deus a seu proveito.

Hoje, o nome de Deus está nas cédulas de dólar, nas paredes de bancos, nas fachadas de casas de negócio e até em casas de assassinos que, mentindo e servindo aos piores interesses da elite, se apoderam do poder. A eles é preciso dizer Não! E em nome de Deus denunciar a desonestidade de quem usa o nome de Deus para o mal.

No século VI, Gregório, o bispo de Roma, ensinava: “Existem dois tipos de idolatria: o primeiro é adorar deuses falsos e o outro é pior e mais perigoso: adorar o Deus verdadeiro de maneira falsa”. Isso acontece quando se propaga um deus cruel, insensível ao sofrimento dos pobres e com obsessão em problemas sexuais, como se o corpo e o prazer não tivessem sido criados por Ele.  

 Há quem use o nome de Deus para consolar uma mãe que chora a perda de um filho ou filha, arrancada da vida em plena infância ou juventude. As pessoas costumam dizer: “Deus quis assim”, ou “foi a vontade de Deus”. A mãe poderia perguntar: Que Deus é esse que quer a morte de crianças inocentes?

Alguém compra um carro novo e coloca no vidro um adesivo: “Este carro foi Jesus quem me deu”. Faz isso imaginando estar sendo grato a Jesus. Será? “Que Deus é este que a um de seus filhos dá um presente de consumo capitalista e à maioria das pessoas não dá nem o que comer?”.

Depois de um grave acidente aéreo, um passageiro que chegou atrasado e não embarcou no tal voo da morte, afirmou: “Deus me salvou!”. Salvou a ele e deixou morrer mais de cem pessoas...  

A Bíblia é muito sábia ao insistir no mandamento que a tradição cristã traduziu como: “Não pronuncie o nome de Deus”. Em cada celebração pascal, na renovação do batismo, a comunidade cristã é convidada a dizer em que Deus crê. Entretanto, para isso, deve antes deixar claro em qual Deus não crê. É isso que significa atualmente o que, em outros tempos, se denominava renunciar ao demônio e a suas obras.

Devemos rejeitar as falsas imagens de um Deus que serve para enriquecer Igrejas. Se Deus é Amor e Pai de todos não pode gostar de pastores que, em plena pandemia, querem Igrejas abertas para arrecadar o dízimo dos pobres. Deus não pode servir para  disfarçar a maldade de governantes que destilam ao mundo o seu ódio à humanidade, enquanto gritam: “Deus acima de todos”. 

Em 1943, de uma prisão nazista, em uma carta ao cunhado, enquanto esperava ser executado, o mártir Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo luterano e grande opositor do Nazismo,  escreveu:

Deus nos faz viver neste mundo, sem nos servirmos de sua presença. Durante todo o tempo, vivemos diante de Deus e com Deus, mas como se Deus não existisse. Não devemos nos utilizar dele como uma hipótese de trabalho. Desde que criou o mundo, ele deu a suas criaturas e ao ser humano a autonomia de existir. Aceitou se retirar e fica feliz quando nos vê como seres que podem viver e prosseguir por conta própria sem, para tudo, se esconder em seu manto”.

 

  Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br 

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

MARIA, A SEMPRE AMADA

 Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

      Maio é conhecido na Igreja Católica como o mês de Maria.  Nele se cultua especialmente a mãe de Jesus, reconhecida pela fé católica como mãe de Deus.  Durante  maio, portanto, uma reflexão sobre o mistério de Maria tem seu lugar e pertinência.

      A devoção a Maria é algo muito característico do catolicismo. Na Igreja Católica Romana, a Virgem Maria é reconhecida pelo título de bem-aventurada. Reconhece-se nela um estatuto especial em meio a todos os santos e santas de Deus, inclusive a capacidade de interceder em favor daqueles que a seu favor recorrem por meio de orações e práticas devocionais. A teologia e o magistério católicos, no entanto, deixam claro que Maria não é considerada divina e as orações a ela dirigidas não são respondidas por ela, mas por Deus.

Porém, é fato que Maria ocupa um lugar destacado entre os católicos, os quais, além de a ela reservar diversos títulos honoríficos, cantam hinos em seu louvor, dirigem-lhe uma variedade de orações e peregrinam a diversos santuários marianos para honrá-la e louvá-la. 

Catecismo da Igreja Católica diz que "A devoção da Igreja à Santíssima Virgem é intrínseca ao culto cristão". O culto a ela é chamado hiperdulia, enquanto o culto a Deus é a latria e o culto aos santos, dulia. Com isso a Igreja Católica demonstra que distingue a mãe de Jesus dos outros santos.

A figura de Maria tem interessado  pensadores e pesquisadores, dentro e fora da Igreja Católica.  Além de obras literárias, Maria tem chamado a atenção de pensadores agnósticos e ateus, como a psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva e a pesquisadora espanhola Marina Warner, entre outras. A figura da mãe de Jesus inquieta incessantemente a mente atenta e, sem dúvida, brilhante da psicanalista e pensadora. Trata-se de um dos aspectos de seu pensamento que mais intriga os leitores cristãos, católicos e teólogos, devido a suas teorias fortemente contestatórias.

       Kristeva questiona o estereótipo que a Mariologia tradicional impõe sobre as mulheres, mas ao mesmo tempo questiona o feminismo que “enquanto reivindica uma nova representação da feminilidade...dele parece que exclui ou minimiza a maternidade.”

        A enorme importância que para Kristeva parece ter o mistério de Maria no imaginário religioso cristão é o fato de a relação dela com seu Filho Jesus – gerando quem a gerou, sendo anterior a ele em sua humanidade, mas posterior por sua divindade,  virgem e mãe simultaneamente - se tornar matriz para uma rede de outras relações muito complexas: a de Deus com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe etc.

       O passado ortodoxo da psicanalista Kristeva, que através de seu pai que era devoto fiel dessa Igreja, desempenha papel importante neste interesse por Maria. Ela diz estar convencida de que o catolicismo teve em suas mãos o mais poderoso discurso de todo o Ocidente sobre a maternidade  Agora, com a secularização, ela teme que esse discurso se perca, o que deixaria a cultura ocidental amputada de um de seus mais fortes e fecundos componentes.

       Creio que os temores de Kristeva não têm muita razão de assustar-nos, já que a devoção a Maria continua muito presente no Catolicismo e os santuários e festas marianos. Aparecida e a festa do Círio de Nazaré ainda são os lugares mais procurados pelos fiéis católicos que ali explicitam sem temor ou pudor de nenhuma espécie o amor pela mãe de Jesus, que sentem como sua mãe também. A importância da mãe no Catolicismo ainda continua muito forte, apesar de todo o avanço da secularização.

        Maria é, portanto, além de todos os títulos que tem, a sempre amada. Mãe muito querida, a quem os fiéis se dirigem com confiança filial em todas as encruzilhadas de suas vidas, encontrando nela conforto e carinho.  Nesses tempos de pandemia, Maria tem sido certamente muito invocada.  Portanto, neste mês de maio acorramos a ela mais uma vez.

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de   “Santidade:chamado à humanidade” (Editora Paulinas), entre outros livros.

 

 

Copyright 2021 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

 

 

Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com

domingo, 23 de maio de 2021

LIÇÕES DO TEMPO PASCAL, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 


FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(21/05/2021)

 

     Este ano, mais uma vez, celebramos a Festa da Páscoa com nossas igrejas quase vazias. Uma tristeza, sem dúvida, para quem se nutre da Fé e, a cada ano, reacende sua chama no Círio Pascal.

 

     No entanto, há boas lições a aprender neste esvaziamento imposto pelo coronavírus. Recordemos o grande medo dos apóstolos, vendo esvaziarem-se suas esperanças com a morte do Mestre querido. Recordemos a dor de Maria Madalena e de outras mulheres ao visitar a sepultura do Senhor e encontrar o túmulo vazio. Mas foquemos nossa atenção em um ponto especial, nas palavras do anjo mensageiro: "por que vocês procuram entre os mortos Aquele que está vivo?" Lc.24,5.

 

       Poderemos ver aí uma fonte inspiradora para outro tipo de entendimento. Às vezes uma realidade tal gera seus contrapontos e estes acabam ajudando a comprendê-la com nais lucidez (o veneno da cobra é mortífero, porém com ele se fabrica um antídoto para curar a mordida da cobra.)

 

     Vou invocar novamente um dos nossos "terríveis adversários", o filósofo Nietzsche. Em um de seus textos ele fala de um "homem tolo", uma espécie de palhaço (palhaço é um personagem que pode dizer a verdade em meio a risos). Ele entra na igreja e convida o povo a entoar o "requiem aeternum" pela morte de Deus, dizendo: "o que ainda são estas igrejas senão túmulos e lápides de Deus"?

 

     Sinceramente confesso que a blasfêmia do "homem tolo" não fere minha fé, mas fere a minha consciência. Será que não há certas formas de Igreja que se tornaram jazigos frios de um "deus morto?". Lembro, a propósito, uma alusão do Papa Francisco, quando ainda cardeal, a uma passagem do livro do Apocalipse. O Senhor esta diante da porta e bate, querendo entrar. Só que agora Ele bate por dentro, querendo sair. Talvez tenhamos aprisionado Jesus em nossas pretensas seguranças.

 

     Recentes estudos sociológicos constataram uma notável diminuição do número de pessoas que se sentem em casa, no mundo (há uma doença chamada "mal do mundo", um tédio de estar aqui). Por outro lado, cresce também a quantidade de pessoas que estão à procura. Entre estas últimas devemos situar a nossa Fé. Uma fé estagnada, que não está mais à procura, é uma fé de UTI. A diferença é que, em vez de procurarmos a partir de um ponto zero, nós nos deixamos conduzir por uma Luz Superior: "Eu sou a Luz do mundo" Jo.8, 12.

 

     Imaginemos muitos desses caminhantes das sombras entrando em nossas igrejas, ansiosos por ouvir algo que toque suas feridas e aponte meios de cura! O que ouvem? O que sentem? Como saem dali?

 

     Vale buscar inspiração em uma outra passagem bíblica que se destaca na liturgia do tempo pascal.  Aquela do apóstolo Tomé. Após descrer do testemunho dos companheiros, Ele se confronta com o Senhor, face a face. - "Vem cá, Tomé, olha para mim, vê minhas mãos, toca nas marcas das chagas. Sou eu. Por que duvidas?" Cf.Jo, 20, 27-29. Neste momento o incrédulo Tomé transforma-se no Tomé crente e comovido: "Meu Senhor e meu Deus!". Qual foi a porta da conversão? Foi o "toque nas marcas das minhas chagas".

 

     Aí se encontra a lição permanente do tempo pascal: é preciso crer na eficácia do amor solidário, a despeito da visão adversa dos fatos reais. S. Paulo chama o acontecimento do Calvário de "loucura da cruz", e a põe em confronto com a pretensa sabedoria do mundo. "Aquilo que o mundo reputa como loucura e fraqueza Deus converte em saber e poder, a fim de confundir os que se passam por sábios e poderosos" 1Cor.1,18ss.

 

     Narra uma antiga tradição que, um belo dia, o diabo apareceu a São Martinho, disfarçado de Jesus Cristo. O santo viu, não se impressionou e perguntou: "onde estão as feridas"?  Moral da estória: não há outro caminho para ver Jesus revivendo e operando ressurreições, hoje em dia, que não seja tocando nas feridas do mundo.

     É para nos guiar por este caminho que invocaremos o Espírito Santo no próximo domingo: "Senhor e Criador que és nosso Deus, vem inspirar estes filhos teus, e em nossos corações derrama a tua luz, e um povo renovado ao mundo mostrarás". Amém.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

 

sexta-feira, 21 de maio de 2021

A ORAÇÃO PARTICULAR DO PAPA FRANCISCO A SÃO JOSÉ

                                              Leonardo Boff



Durante o ano 2019-2020 foi declarado pelo Papa Francisco o ano “josefino”, vale dizer, um ano dedicado à devoção e ao aprofundamento da figura de São José. Ela é oportuna nesse momento da pandemia do Coronavírus que é impiedosa para com os mais vulneráveis que são os pobres e destituídos dos necessários cuidados. São José mais que ser o Patrono da Igreja Universal é antes de tudo o patrono da igreja doméstica, dos trabalhadores, dos anônimos,dos que vivem submetidos ao silêncio social. Ora, São José vem deste mundo. Ele não nos deixou nenhuma palavra. Falou pelas mãos de trabalhador. Teve apenas sonhos. Foi esposo terno de Maria,pai provedor de Jesus, protegeu o filhinho recém nascido,ameaçado de morte por Herodes, se refugiou no estrangeiro, no Egito, introduziu Jesus nas tradições da piedade judaica. Cumpriu sua missão e  desapareceu sem deixar nenhum sinal.

Pertence à teologia atualizar as reflexões já existentes, mas mais que tudo aprofundar o significado de São José para os dias atuais, como tenho tentado fazer por um alentado livro sobre “São José, a personificação do Pai (Vozes 2005) e por vários artigos reproduzidos em diferentes meios.

Propus-me levar até as últimas consequências a reflexão sobre São José, pois essa ousadia (permitida pois sempre temos a ver com os mistério divinos) pertence ao ofício da teologia. Ele nos deve ajudar a entender melhor o Deus adorado pelos cristãos.

Não é sem significado que São José se tenha mantido sempre na dimensão do mistério que nenhuma palavra pode exprimir, nem que seu meio de comunicação tenham sido os sonhos e, por fim, que não foi um rabino que fala e ensina mas um trabalhador que silencia enquanto trabalha. Sabemos hoje pela psicologia do profundo à la C.G.Jung e discípulos que os sonhos são a linguagem da radicalidade humana e de seu mistério último. Parece que o próprio Deus ou o universo tivessem preparado a pessoa com as precondições adequadas para acolher o Pai, caso decidisse  sair de seu mistério e auto comunicar-se a alguém.

Para os cristão é uma verdade aceita de que o Espírito Santo foi a primeira pessoa divina a vir a este mundo e armar sua tenda (morar definitivamente) sobre Maria (Lc 1,35). Da mesma forma é uma convicção de fé que o Filho do Pai veio em seguida, gerado por Maria e que também armou sua tenda entre nós (se encarnou: Jo 1,14). Por que o Pai ficou de fora? Por que somente duas pessoas divinas se estabeleceram entre nós? A essas perguntas tento buscar razões bem fundadas.

Parto da tese oficial, confirmada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) na “Constituição Dogmática Dei Verbum” que a revelação é mais que comunicação de verdades. É a intercomunicação de Deus assim como é (n.2). Ora, se isso é verdade, significa que revelação é sempre autocomunicação  das três pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo. Não pode ser apenas do Espírito Santo e do Filho. O Pai deve entrar também, até por um efeito sinfônico e harmonioso de toda a revelação divina.

Ora, diz-se em teologia que o Pai é o mistério absoluto sem-nome, que continuamente está trabalhando  ao fazer surgir e ao sustentar a criação dizendo, a cada momento, o seu “fiat” (faça-se!), caso contrário ela voltaria ao nada. Note-se, São José apresenta características adequadas à a natureza do Pai celeste. Ele, São José não fala, quem fala é o Verbo, ele vive no silêncio abissal e sua principal atividade é trabalhar, como atesta Jesus:”Meu Pai trabalha até agora (Jo 5,17) como José também o faz. Se há alguém a quem o Pai poderia armar sua tenda e morar entre nós, José de Nazaré, seria essa pessoa. O Papa João Paulo II em sua Exortação Apostólica sobre São José, Redemptoris Custos (1989) acenou para o fato de que “a paternidade humana de José” foi assumida no ato da encarnação de Deus (n.21).

Diz um clássico ditado da teologia: “Deus potuit, decuit, ergo fecit”:” Deus podia,era conveniente e, portanto, fez”. Assim que o Pai celeste podia se personificar em José, era conveniente que o fizesse e, portanto, assim o fez. Efetivamente,nesta compreensão minha, o Pai se personificou no pai terrestre, tomou forma humana em José. Faltava essa peça arquitetônica para a plena radiocomunicação de Deus  assim como é, quer dizer, como Trindade, no caso incluindo o Pai.  Esta é a tese fundamental, logicamente, urdida com argumentos da própria teologia que não cabe aqui referir.

A grande lição que tiramos e nisso aprendemos algo a mais de Deus é essa: A Família divina, num momento preciso da história, assumiu a família humana. O Pai se personalizou em José, o Filho em Jesus e o Espírito Santo em Maria.

O Papa Francisco recebeu meu livro em tradução espanhola “São José, a personificação do Pai” e agradeceu transmitindo-me a oração que ele todos os dias faz. Literalmente escreveu e isso pode auxiliar a muitos devotos de São José:

“Quero partilhar com você a oração que, há quarenta nos, recito depois das Laudes:

 Glorioso Patriarca São José, cujo poder consegue tornar possíveis as coisas impossíveis, vinde em minha ajuda nestes momentos de angústia e de dificuldade. Tomais sob a vossa proteção as situações tão graves e difíceis que Vos confio,para que obtenham uma solução feliz. Meu amado Pai, toda a minha confiança está colocada em Vós. Que não se diga que eu Vos invoquei em vão, e dado que tudo podeis junto a Jesus e a Maria, mostrai-me que a vossa bondade é tão grande como o vosso poder. Amém.

Esta oração de já 40 anos, parece adequada para os dias sombrios vividos e sofridos por toda a humanidade. Junto com a ciência, a técnica e todos os demais  cuidados, a oração vale como um supplément d’ame  que nos pode valer muito, pelo menos, alimentar a esperança esperante.

 

Leonardo Boff é teólogo e escreveu: São José, a personificação do Pai” Editora Vozes, Petrópolis  2005.