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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O PAPA FRANCISCO RESGATA O BOM-SENSO DE JESUS


Por Leonardo Boff



O eixo estruturador dos discursos do Papa Francisco não são as doutrinas e os dogmas da Igreja Católica. Não que as preze menos. Sabe que elas são criações teológicas criadas historicamente. Elas provocaram guerras de religião, cismas, excomunhões, teólogos e mulheres (como Joana D’Arc e as tidas por “bruxas”) queimados na fogueira da inquisição. Isso durou por séculos e o autor destas linhas fez uma amarga experiência no cubículo onde se interrogavam os acusados no edifício severo da ex-Inquisição, à esquerda da basílica de São Pedro.

O Papa Francisco revoluciona o pensamento da Igreja remetendo-se à prática do Jesus histórico. Ela resgata o que hodiernamente se chama “a Tradição de Jesus” que é anterior aos atuais evangelhos, escritos 30-40 anos após a sua execução na cruz. A Tradição de Jesus ou também, como nos Atos dos Apóstolos se chama “o caminho de Jesus” se funda mais em valores e ideais que em doutrinas. Essenciais são o amor incondicional, a misericórdia, o perdão, a justiça e a preferência pelos pobres e marginalizados e a total abertura a Deus Pai. Ele, na verdade, não pretendeu fundar una nova religião. Ele quis nos ensinar a viver. Viver com fraternidade, solidariedade e cuidado de uns para com os outros.

O que mais ressalta em Jesus é o bom-senso. Dizemos que alguém tem bom senso quando para cada situação tem a palavra certa, o comportamento adequado e quando atina logo com o cerne da questão. O bom-senso está ligado à sabedoria concreta da vida. É distinguir o essencial do secundário. É a capacidade de ver e de colocar as coisas em seu devido lugar. O bom-senso é o oposto ao exagero. Por isso, o louco e o gênio que em muitos pontos se aproximam, aqui se distinguem fundamentalmente. O gênio é aquele que radicaliza o bom-senso. O louco, radicaliza o exagero.

Jesus, como nos testemunham os evangelhos, evidenciou-se como um gênio do bom-senso. Um frescor sem analogias perpassa tudo o que diz e faz. Deus em sua bondade, o ser humano com sua fragilidade, a sociedade com suas contradições e a natureza com seu esplendor comparecem numa imediatez cristalina. Não faz teologia. Nem apela para princípios morais superiores. Nem se perde numa casuística tediosa e sem coração. Suas palavras e atitudes mordem em cheio no concreto onde a realidade sangra é levada a tomar uma decisão diante de si mesmo e de Deus.

Suas admoestações são incisivas e diretas: ”reconcilia-te com teu irmão”(Mt 5,24). “Não jureis de maneira nenhuma”(Mt 5, 34). “Não resistais aos maus e, se alguém te esbofetear a face direita, dá-lhe também a outra”(Mt 5, 39).”Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”(Mt,5, 34). “Quando deres esmola, que a mão esquerda não saiba o que faz a direita”(Mt 6, 3).

Esse bom-senso tem faltado à Igreja institucional (Papas, bispos e padres), não à Igreja da base, especialmente em questões morais. Aqui é severa e implacável. Sacrifica as pessoas em sua dor aos princípios abstratos. Rege-se antes pelo poder do que pela misericórdia. E os santos e sábios nos advertem: onde impera o poder, se esvai o amor e desaparece a misericórdia.

Como é diferente o Papa Francisco. A qualidade principal de Deus, nos diz, é a misericórdia. À miúde repete: “Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso”(Lc 6, 36). Ele explica o sentido etimológico da misericórdia: miseris cor dare”: “dar o coração aos míseros”, aos que padecem. Numa fala no Angelus de 6 de abril de 2014 diz com voz alterada: ”Escutai bem: não existe limite algum para a misericórdia divina oferecida a todos”. Pede que a multidão repita com ele: “Não existe limite algum para a misericórdia divina oferecida a todos”.

Dá uma de teólogo ao recordar a concepção de São Tomás de Aquino segundo o qual, no que se refere à prática, a misericórdia é a maior das virtudes “porque cabe-lhe derramar-se para os outros e mais ainda socorre-los em suas debilidades”.

Cheio de misericórdia, face aos riscos da epidemia da zica abre espaço para o uso de anticoncepcionais. Trata-se de salvar vidas: “evitar a gravidez não é um mal absoluto”, disse em sua vista ao México em fevereiro deste ano. Aos novos cardeais diz com todas as palavras: “A Igreja não condena para sempre. O castigo do inferno com o qual atormentava os fiéis não é eterno”. Deus é um mistério de inclusão e de comunhão, jamais de exclusão. A misericórdia é sempre triunfante.

Isso significa que temos que interpretar as referências ao inferno na Bíblia, não fundamentalisticamente, mas pedagogicamente, uma forma de nos levar a fazer o bem. Logico, não se entra de qualquer jeito no Reino da Trindade. Passar-se-á pela clínica purificadora de Deus até irromper, purificados, para dentro da eternidade bem-aventurada.

Tal mensagem é verdadeiramente libertadora. Ela confirma sua exortação apostólica “A alegria do Evangelho”.

Tal alegria é oferecida a todos, também aos não cristãos, porque é uma caminho de humanização e de libertação.


*Leonardo Boff é articulista do JB on line escreveu:” Os direitos do coração”, Paulus 2016.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

OUTRA CRIANÇA…

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



 Ele tem quatro anos e leva uma sacola na mão.   O olhar assustado percorre as areias do deserto e os funcionários da ONU que o observam e tentam ajudá-lo.  É sírio e chama-se Marwan.  Vagava no deserto sozinho quando foi encontrado depois de haver se perdido de seus pais durante a fuga da violência que dizima seu país.  Andava a esmo, errante pelo deserto hostil, sem saber para onde.  

Desde os tempos do Antigo Testamento o deserto é uma imagem poderosamente evocativa para o povo de Deus.  Se algo é concordância na exegese bíblica, é que o deserto é fundamental na auto compreensão que o povo de Deus tem sobre sua identidade.

Povo liberto pela mão poderosa de Deus, o povo de Israel teve que vagar longamente pelo deserto antes de finalmente chegar à terra prometida. Ali os hebreus libertos viveram a dúvida, a vulnerabilidade e a insegurança que os fez muitas vezes duvidar e desejar voltar à escravidão do Egito, onde pelo menos havia comida.
Estar no deserto é sentido como estar próximo da morte, longe da terra dos vivos, que depois se tornará a Terra Santa. Assim se entende a pergunta que faz o povo indignado a Moisés em Ex 14,11-12: Não havia sepulcros no Egito, para nos tirar de lá, para que morramos neste deserto? Por que nos fizeste isto, fazendo-nos sair do Egito?

Não é esta a palavra que te falamos no Egito, dizendo: Deixa-nos, que sirvamos aos egípcios? Pois que melhor nos fora servir aos egípcios, do que morrermos no deserto.

Beijo quente da fome e da sede, o deserto era visto desde muito cedo pelos israelitas como um lugar difícil e perigoso, vazio de pessoas, cheio de solidão.  Lugar de animais perigosos e demônios que tentam.  Na Bíblia, o deserto é muitas vezes sinônimo de desolação, e esta é fruto da destruição, sentida como abandono ou castigo de Deus.  O deserto, sobretudo no Antigo Testamento, é o contrário do paraíso; é o caos originário, no seio do qual nada se distingue e nada se pode perceber com clareza.

O deserto é igualmente o lugar da errância, do nomadismo.  Enquanto o povo andava pelo deserto, sem vislumbrar a terra da promessa, sofria com o desejo da estabilidade e da sedentarização que não vinham.  E assim como o ser humano rejeita e detesta o caos, que o atira na anomia e na anarquia para as quais não foi feito,  igualmente odeia e rejeita a errância e o vagar sem descanso e sem lugar para repousar a cabeça, sem uma terra para pisar e sentir que é sua.

Até hoje isso pode ser observado na luta de tantos povos e tantos grupos humanos por uma terra, um lugar para cultivar, um teto para cobrir-lhe a cabeça.  O ser humano não é nem pode ser a-tópico; ao contrário, necessita de um espaço no mundo a fim de sentir-se vivo, protegido, abrigado.

Isso se torna ainda mais grave e evidente quando esse ser vulnerável e desamparado que luta contra a atopia é uma criança.  E uma criança de quatro anos de idade. Nesta idade, a criança ainda é totalmente dependente dos pais, da casa, do lar, do espaço familiar. Estar longe de tudo isso, da proteção dos pais e da família, do espaço da casa e da pátria, vagando sozinho por um lugar hostil, com sede e com fome... O que pode haver de mais cruel e pungente do que o estado dessa criança, desse menino cujos primeiros contatos com o mundo e a vida são tão carregados de perigo e sofrimento?

Impressiona-me sua foto olhando com medo e desconfiança aqueles que tentam ajudá-lo.  Impressiona-me o fato de que há menos de um ano a imprensa e as redes sociais já nos chocaram com a foto de outro menino com idade equivalente morto afogado nas praias da Síria. E com a foto de uma menina síria, da mesma idade, diante de uma câmera fotográfica com pavor nos olhos, pensando tratar-se de uma arma.

A violência terrível que assola a nossa época é chocante. Porém, mais ainda  quando atinge crianças, porque são pequenos, indefesos, vulneráveis e tudo pode atingi-los mortalmente. Porque não podem defender-se nem tomar providências para proteger-se de todas as ameaças que pesam sobre suas vidas.

Não à toa o Deus de Israel identificou-se desde o princípio como porta-voz do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro.  Ou seja, daquelas categorias de pessoas mais desprotegidas e vulneráveis, que não têm quem fale por elas. O próprio Deus toma a defesa delas e é fiador de sua dignidade.  Nossa única esperança é que esse mesmo Deus seja a garantia da vida e do futuro do pequeno Arwan. E de todas as crianças que, como ele, vagam sem rumo por esse mundo à procura de um lugar onde repousar sua corporeidade infantil e frágil, cheia de insegurança e medo diante do mundo que ameaça engolir a infância  delas.

Uma humanidade que não sabe garantir o futuro de suas crianças está no caminho da perdição sem remédio.  Ainda bem que pode sempre voltar-se para o Deus da vida e implorar socorro.  Ele não deixará que Marwan, Aylan e a menina síria vaguem para sempre por um deserto inclemente sem encontrar a fonte de água viva que poderá lhes aplacar a sede.

   Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)    
 Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

APENAS O AMOR INTERESSA

Por Frei Betto



       O papa Francisco abriu uma nova janela na doutrina católica ao ser questionado, na viagem de retorno a Roma após visita ao México, sobre o direito de a mulher tomar contraceptivos, e mesmo abortar, devido ao surto de zikavírus.

       Quanto ao aborto, Francisco foi enfático: a Igreja Católica o considera crime e está descartado. Embora ele saiba que não há consenso entre os teólogos quanto ao momento em que realmente se pode afirmar que há vida humana no feto.

       Porém, quanto aos anticoncepcionais o papa lembrou da exceção aberta pelo papa Paulo VI quando freiras do Congo foram ameaçadas de estupro em situação de guerra. Adotou-se o princípio do mal menor: evitar a gravidez de uma religiosa antes que a sua vocação fosse prejudicada pelo nascimento indesejado de uma criança.

       Francisco é um democrata, embora dotado de poder absoluto. Prefere não usá-lo. Predisposto ao debate, exime-se de condenações moralistas e convoca sínodos para que outras vozes se manifestem sobre questões polêmicas no âmbito católico. Foi o caso da homossexualidade ao afirmar, durante voo de retorno do Rio, após a Jornada Mundial da Juventude, que não se sente no direito de julgar os homossexuais e, muito menos, condená-los.

       A Igreja Católica é a mais longeva instituição religiosa do planeta. O judaísmo é uma religião mais antiga, porém sem a institucionalização centralizada que caracteriza a comunidade fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo. Por isso, sobre o trono papal se acumulam séculos de evolução doutrinária. Ou involução, como o celibato obrigatório para todos os sacerdotes, o que não ocorria nos primeiros séculos, e o dogma da infalibilidade papal, proclamado no século XIX pelo papa Pio IX, que tinha horror à modernidade, a ponto de condenar a luz elétrica (antinatural, pois muitos trocariam o dia pela noite...) e a democracia (favorecedora do livre pensamento...).

       Muitas vezes, no debate teológico, o essencial é deixado de lado. E o essencial são os valores do Evangelho: amor, misericórdia, fome de justiça, desprendimento, disposição de servir e partilhar os bens. Inúmeras pessoas vivem intensamente tais valores sem nenhuma motivação religiosa. E sem que tenham consciência, são elas que melhor fazem a vontade de Deus. Serão aqueles que, conforme a parábola do Juízo Final (Mateus 25, 31-46), serão acolhidos como “benditos do meu Pai”.

       Um dos grandes avanços introduzidos pelo papa Francisco é o de considerar a natureza fonte de revelação divina, conforme enfatiza em sua encíclica socioambiental Louvado Seja – o cuidado de nossa casa comum. Até então eram considerados fontes de revelação divina apenas a Bíblia, a tradição e o ensinamento do magistério eclesiástico. Francisco escancarou as janelas para que possamos encarar a natureza como verdadeiro sacramento (= sinal) da presença amorosa de Deus.

       Sempre que me entretenho com comunidades cristãs populares elas me perguntam sobre os três enigmas além desta vida: céu, inferno e purgatório. O limbo, que na catequese aprendi como lugar aonde iam as almas das crianças falecidas sem batismo, foi definitivamente fechado pelo papa João Paulo II. Havia sido criado na Idade Média, como o purgatório, para responder qual o destino dos bebês mortos sem o primeiro sacramento. Hoje se admite que todos nascemos no amor de Deus, e o batismo não é uma borracha para apagar um pecado original cometido por Adão e Eva, é um sacramento do futuro, para nos fortalecer na graça de Deus frente ao tempo de vida que nos espera.

       O purgatório foi a solução “mineira” encontrada pelos teólogos medievais para se escapar do maniqueísmo bem versus mal. Ou seja, ao transvivenciarmos, vamos para o céu, como santos, ou para o inferno, ainda que a nossa cota de pecado seja infinitamente inferior a de um Herodes infanticida, um Torquemada inquisidor ou um Hitler nazista. Nada como um estágio intermediário, no qual somos purificados – daí o termo purgatório – até merecermos ingressar na morada celestial.

       Tudo isso são metáforas na tentativa de dizer o indizível. Ninguém retornou do mundo dos mortos, exceto uma pessoa, segundo a fé cristã – Jesus. Ele ressuscitou e nos assegurou que também haveremos de ressuscitar, ou seja, seremos acolhidos na plenitude do amor de Deus.

       O que é isso? Não sei exatamente. Sei que todos nós, sem exceção, somos movidos pelo anseio de amar e ser amados. Mesmo quando ostentamos fama, riqueza, beleza e poder. São formas de mendigar, altissonantemente, um pouco de amor. E o que Jesus nos assegurou é que, do outro lado desta vida, desfrutaremos disso em eterna intensidade. Mais não se sabe. Até mesmo porque as coisas do amor não cabem em palavras.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella, de “Felicidade foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros.


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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

CARTA AOS IRMÃOS DA IGREJA DA PARAÍBA




Por Assuero Gomes


Aos irmãos e irmãs leigos que vivem sua fé na Igreja da Paraíba e dão exemplo de virtude e perseverança na sã doutrina, toda Paz e toda Graça. Aos presbíteros e diáconos dessa mesma e amada Igreja Paz e Perseverança.

“E eis que ouvi o clamor que chega da Igreja da Paraíba e contei as lágrimas da Senhora das Neves. Eis que suplico às irmãs que estão em Guarabira, Campina Grande, Patos e Cajazeiras, que se cubram de cinzas e chorem sobre as lágrimas da Senhora, decretem um tempo de luto e oração.” “Suplico às irmãs que estão em Maceió, em Palmeira dos Índios e em Penedo que abram os ouvidos e os olhos para o lamento que vem da Paraíba, pois o corpo sofre as dores de quem foi violentado na sua dignidade de filho de Deus”. “Suplico às irmãs que estão em Natal, Mossoró e Caicó que não sejam mornas nem míopes, pois quando uma parte do corpo sofre todo corpo padece, abomino os omissos”.

“Suplico às dez irmãs que estão em Pernambuco, Petrolina, Salgueiro, Floresta e Pesqueira, ainda em Garanhuns, Caruaru e em Palmares, em Nazaré e Afogados da Ingazeira que cuidem, ajudem e se indignem, e especialmente à Igreja que está em Olinda e Recife, pois foi na hora da agonia que da Paraíba tiveste mais ajuda! É hora de acolher e acalentar, pois somos solidários na alegria e solidários na dor”.

Abateu-se e solidificou-se como numa noite tenebrosa, que tarda tanto a passar, sobre a Paraíba, uma alcateia vestida de pastores que escandaliza o rebanho. As pedras de moinho estão postas e as cordas estiradas, a mão do Senhor já paira sobre eles. Rezemos para que o tempo se abrevie, pois por muito menos os Borgias foram condenados na fogueira da História.

Suplico aos cristãos todos dessas igrejas que se unam em oração, para que não percamos nenhum desses pequeninos; e que suas reações frente aos escândalos sejam de um discernimento tal, que só o dom Espírito permite, que separem o joio dos maus pastores do trigo do qual é feito o Pão. Permita que a fé nos garanta que as portas do inferno jamais prevalecerão sobre a Igreja, que mesmo sofrendo todo tipo de assédio do Mal, toda perseguição e todo mau exemplo sairá vitoriosa e lavada nas vestes puras do Cordeiro.

Rogamos a Maria, mãe nossa e de todos os cristãos, que interceda sempre e cada vez mais, para que possamos não perder nenhum dos pequeninos, prediletos de seu Filho e que encurte o tempo de sofrimento dessa querida Igreja da Paraíba.

Assim como anuncia a profecia de Ezequiel, ai dos pastores de Israel que apascentais a vós mesmos, não devem os pastores apascentar as ovelhas? Assim como anuncia Jeremias, Ai dos pastores que destroem e dispersam as ovelhas do meu pasto, diz o SENHOR.

Portanto assim diz o Senhor Deus de Israel, contra os pastores que apascentam o meu povo: Vós dispersastes as minhas ovelhas, e as afugentastes, e não as visitastes; eis que visitarei sobre vós a maldade das vossas ações, diz o Senhor. E ainda da boca do próprio Jesus: O bom pastor dá a vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas.

Pior quando o lobo é o próprio pastor.

Irmãos e irmãs que estão na Igreja da Paraíba, como uma vela acesa diante do sacrário seja nossas orações dia e noite pela paz, harmonia e benignidade nas vossas vidas, e que um tempo novo de conciliação surja numa nova página do Livro onde está assentada a palavra da vida dessa igreja tão querida e que vive e sobrevive sob a proteção maternal de N. Sra. das Neves.


Cristão Católico Leigo
Da Arquidiocese de Olinda e Recife


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

QUARESMA DA MISERICÓRDIA




Por Marcelo Barros




Misericórdia é uma palavra que tem de ser resgatada do mau uso. Comumente as pessoas compreendem misericórdia como um sentimento de piedade, jogado como esmola para quem não tem mais outro remédio na vida. Compreendida assim, ninguém quer ser o coitadinho que precisa da compaixão alheia para viver. No entanto, nas antigas tradições espirituais e na compreensão bíblica, misericórdia é mais do que um sentimento. No século IV, Santo Agostinho explicava que o termo latino “misericordia” vem de “miser cor dare” que significa “dar o coração a quem precisa”. Isso significa empenhar-se em cuidar do outro como compromisso afetivo e princípio de vida. Portanto, é uma atitude permanente e que estrutura o modo de ser e de viver da pessoa. Implica a solidariedade, mas esta vivida e praticada com o coração. Na cultura bíblica, dizer que uma coisa é feita com coração não significa apenas “com sentimento” ou “com afeição”, mas principalmente com o que hoje se chama de “inteligência espiritual”, isso é, com totalidade ou inteireza do ser.

Infelizmente na nossa sociedade atual, desde crianças somos formados para ser individualistas e indiferentes ao sofrimento do outro. Mesmo entre povos, culturalmente abertos ao acolhimento do outro, espalha-se uma cultura de violência que parece contaminar toda a vida pessoal e coletiva. Vivemos em uma sociedade carente de valores que a mobilizem positivamente e de um projeto de vida pelo qual valha a pena lutar e viver. Isso torna o nosso mundo doente.

Nos tempos antigos do povo da Bíblia, a Misericórdia era uma divindade feminina, concebida como um útero de mãe. Deus era visto como Mãe sempre grávida de um universo novo. Como em hebraico, o termo útero é rehém, a deusa se chamava: Rahamin, a divindade do amor materno. Com o decorrer do tempo, o povo de Israel compreendeu que não se tratava de uma divindade à parte, mas de uma forma como Deus se manifesta. E A Misericórdia tornou-se um nome divino. No meio de uma cultura antiga, na qual a dignidade da mulher estava em gerar e ser mãe, a misericórdia divina se manifestava em tornar fecundas as mulheres estéreis. E várias das matriarcas da Bíblia, como Sara, Rebeca, Ana e outras eram estéreis. Deus as tornou capazes de ser mães para ser felizes e protagonistas de uma nova história. Era um modo de afirmar algo que até hoje é para nós importante: Deus abre o útero de nossas esterilidades e faz com que tudo aquilo que em nossas vidas parece fechado se torne fecundo e dê início a uma vida nova. A misericórdia divina desmente os prognósticos pessimistas do mundo e leva as pessoas que se sentem impotentes e incapazes a serem portadoras de uma vida nova.

Paulo escreveu que a misericórdia divina se manifestou na pessoa de Jesus. Pela doação de sua vida, o Cristo ressuscitado reconciliou povos inimigos e abriu as promessas divinas feitas a Israel para todas as nações, raças e culturas do mundo. Portanto, a misericórdia não é apenas um sentimento pessoal e sim um projeto social e político de mundo reconciliado e em caminho.

 Nos evangelhos, Jesus manifesta essa misericórdia divina ao curar doentes e testemunhar aos oprimidos que o reinado divino se manifesta nesse mundo. Traz a todos justiça e libertação. Também nos evangelhos, misericórdia é um projeto de vida nova que brota da secura, onde parece que nada mais brotará. Na época de Natal, inspiradas em um texto do profeta Isaías, as comunidades eclesiais cantam: “Da cepa (o ramo seco) brotou a rama, da rama brotou a flor, da flor nasceu Maria e de Maria, o salvador”. Em cada Quaresma, os cristãos celebram a renovação da misericórdia divina em uma nova Páscoa.

Na América Latina dos anos 80, o padre Jon Sobrino, um dos grandes teólogos latino-americanos, escreveu um livro no qual propõe a misericórdia não mais como atitude apenas ocasional. “O Princípio Misericórdia” é toda a vida organizada a partir do critério da solidariedade, vivida com delicadeza. Diversos estudiosos pensam que o remédio mais eficaz para nossa sociedade doente é o carinho humano manifestado nas relações. Deus quer que sejamos misericordiosos com os outros, mesmo que eles não sejam justos nem bonzinhos. Afinal, Deus nos trata com misericórdia e pede que o sigamos nesse caminho. Jesus disse: “Quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9, 9).


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 






segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

UMA CULTURA CUJO CENTRO É O CORAÇÃO



Por Leonardo Boff


A nossa cultura, a partir do assim chamado século das luzes (1715-1789) aplicou de forma rigorosa a compreensão de René Descartes (1596-1650) de que o ser humano é “senhor e mestre” da natureza podendo dispor dela ao seu bel-prazer. Conferiu um valor absoluto à razão e ao espírito científico. O que não conseguir passar pelo crivo da razão, perde legitimidade. Daí se derivou uma severa crítica a todas as tradições, especialmente à fé cristã tradicional.

Com isso se fecharam muitas janelas do espírito que permitem também um conhecimento sem necessariamente passar pelos cânones racionais. Já Pascal notara esse reducionismo falando nos seus Pensées da logique du coeur ( “o coração tem razões que a razão desconhece”) e do esprit de finesse          que se distingue do esprit de géométrie, vale dizer, da razão calculatória e instrumental analítica.

O que mais foi marginalizado e até difamado foi o coração, órgão da sensibilidade e do universo das emoções, sob o pretexto de que ele atrapalharia “as ideias claras e distintas” (Descartes) do olhar científico. Assim surgiu um saber sem coração, mas funcional ao projeto da modernidade que era e continua sendo o de fazer do saber um poder e um poder como forma de dominação da natureza, dos povos e das culturas. Essa foi a metafísica (a compreensão da realidade) subjacente a todo o colonialismo, ao escravagismo e eventualmente à destruição dos diferentes, como das ricas culturas dos povos originários da América Latina (lembremos Bartolomé de las Casas com sua História da destruição das Índias) e também do capitalismo selvagem e predador.

Curiosamente a epistemologia moderna que incorpora a mecânica quântica, a nova antropologia, a filosofia fenomenológica e a psicologia analítica tem mostrado que todo conhecimento vem impregnado das emoções do sujeito e que sujeito e objeto estão indissoluvelmente vinculados, às vezes por interesses escusos (J. Habermas).

Foi a partir de tais constatações e com a experiência desapiedada das guerras modernas que se pensou no resgate do coração. Finalmente é nele que reside o amor, a simpatia, a compaixão, o sentido de respeito, base da dignidade humana e dos direitos inalienáveis. Michel Maffesoli na França, David Goleman nos USA, Adela Cortina na Espanha, Muniz Sodré no Brasil e tantos outros pelo mundo afora se empenharam no resgate da inteligência emocional ou da razão sensível ou cordial. Pessoalmente estimo que, face à crise generalizada de nosso estilo de vida e de nossa relação para com a Terra, sem a razão cordial não nos moveremos para salvaguardar a vitalidade da Mãe Terra e garantir o futuro de nossa civilização.

Isso que nos parece novo e uma conquista – os direitos do coração – era o eixo da grandiosa cultura maya na América Central, particularmente na Guatemala. Como não passaram pela circuncisão da razão moderna, guardam fielmente suas tradições que vêm pelas avós e pelos avôs, ao largo das gerações. O escrito maior o Popol Vuh e os livros de Chilam Balam de Chumayel testemunham essa sabedoria.

Participei mais vezes de celebrações mayas com os seus sacerdotes e sacerdotisas. É sempre ao redor do fogo. Começam invocando o coração dos ventos, das montanhas, das águas, das árvores e dos ancestrais. Fazem suas invocações no meio de um incenso nativo perfumado e produtor de muita fumaça.

Ouvindo-os falar das energias da natureza e do universo, parecia-me que sua cosmovisão era muito afim, guardadas as diferenças de linguagem, da física quântica. Tudo para eles é energia e movimento entre a formação e a desintegração (nós diríamos a dialética do caos-cosmos) que conferem dinamismo ao universo. Eram exímios matemáticos e haviam inventado   o número zero. Seus cálculos do curso das estrelas se aproximam em muito ao que nós com os modernos telescópios alcançamos.

Belamente dizem que tudo o que existe nasceu do encontro amoroso de dois corações, do coração do Céu e do coração da Terra. Esta, a Terra, é Pacha Mama, um ser vivo que sente, intui, vibra e inspira os seres humanos. Estes são os “filhos ilustres, os indagadores e buscadores da existência”, afirmações que nos lembram Martin Heidegger.

A essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é cultivar a dimensão do coração. Os Irmãos de La Salle mantém na capital Guatemala uma imenso colégio –Prodessa – onde jovens mayas vivem na forma de internato, onde se recupera, bilíngue, e sistematiza a cosmovisão maya, ao mesmo tempo em que assimilam e combinam saberes ancestrais com os modernos especialmente ligados à agricultura e a relações respeitosas para com a natureza.

Apraz-me concluir com um texto que uma mulher sábia maya me repassou no final de um encontro só com indígenas mayas em meados de fevereiro. ”Quando tens que escolher entre dois caminhos, pergunta-te qual deles tem coração. Quem escolhe o caminho do coração jamais se equivocará” (Popol Vuh).

Leonardo Boff escreveu O casamento do céu e da terra, Mar de Ideias,Rio 2014.


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

OS POVOS ORIGINÁRIOS: MESTRES NO CUIDADO DO MEIO AMBIENTE


Por Maria Clara Luchetti Bingemer 



            Não foi por acaso ou falta de uma expressão mais adequada que em 1492 Cristóvão Colombo relatou a suas Cristianíssimas Majestades, o rei e a rainha da Espanha, que sua expedição havia descoberto um “novo mundo”.  Dali em diante, a velha Europa começou a olhar a parte sul do mundo como o novo, o desconhecido, a terra de aventura e esperança.  Deveria ser um lugar onde novas coisas acontecessem, onde nova vida pudesse ser construída.

            No entanto, esta nova vida nem sempre se mostrou compatível com a justiça, a liberdade e a felicidade. Os conquistadores traziam os valores do Evangelho ao recém-descoberto continente, acompanhando a cruz com a espada e a opressiva dominação que ignorou e desrespeitou os direitos dos povos aqui encontrados.

            Desde o começo da colonização, a questão da justiça tornou-se inseparável do anúncio do Evangelho e da prática da fé cristã na América.  Os abusos cometidos contra os indígenas que habitavam o continente Americano, por parte dos colonizadores, foram corajosamente enfrentados por vozes como a do dominicano Frei Antônio de Montesinos em sua pregação na ilha de Hispaniola (República Dominicana), em um sermão de Advento em 1511.  Ao apresentar-se como “a voz que clama no deserto”, questionou os colonizadores pelo comportamento para com os índios: “Não são homens? Não têm almas racionais?  Não estão vocês obrigados a amá-los como a si mesmos? Não compreendem isso?  Não sentem isso?“

            Mais de cinco séculos depois, aqueles que lutam pela justiça para com os povos que habitaram a Pátria Grande desde as origens se inspiram nas grandes e proféticas figuras de Montesinos (República Dominicana), Bartolomé de las Casas (Chiapas, México), Antônio Valdivieso (Nicarágua), Diego de Medellín (Chile) e tantos outros.

Entre os profetas de hoje que procuram seguir os mesmos passos estão muitos teólogos da libertação, bispos de gigantesca estatura espiritual e moral e inúmeros sacerdotes, religiosos de ambos os sexos e leigos, homens e mulheres que muitas vezes pagaram com a vida a denúncia que fizeram da injustiça incompatível com a fé praticada pelo sistema dominante.

            Sob essa inspiração, igualmente, o Papa Francisco se dirigiu aos povos indígenas no México.  Em San Cristóbal de las Casas, diocese do grande Dom Samuel Ruiz, chamado de “Tatic” – Papai – pelos índios, o Papa pediu "perdão" aos povos indígenas pelas "sistemáticas" incompreensões, súbitas exclusões e pela expropriação de suas terras. Consternado, exclamou ao iniciar sua homilia:  "Que tristeza! Como faria bem a todos nós um exame de consciência e aprender a dizer perdão. O mundo atual, expropriado pela cultura do descarte, precisa de vocês. Em uma cultura do descarte, do consumo desenfreado, da depredação do meio ambiente, os povos indígenas são verdadeiros mestres e testemunhas, que devem ser ouvidos com profunda reverência e respeito pelo resto da humanidade.  Seu estilo de vida pode salvar o planeta que se encontra seriamente ameaçado pela irresponsabilidade com que o ser humano trata a mãe natureza.”

            Diante dos representantes dos povos indígenas, Francisco não economizou palavras para dizer: “Não podemos permanecer indiferentes perante uma das maiores crises ambientais da história. Nisso, vós tendes muito a ensinar-nos. Os vossos povos, como reconheceram os bispos da América Latina, sabem relacionar-se harmoniosamente com a natureza, que respeitam como fonte de alimento, casa comum e altar do compartilhar humano.”

         É impossível não se sentir estupefato ao ouvir o Papa em pessoa pedindo perdão aos indígenas e que, por favor, nos ensinem valores cristãos como o amor à terra, o cuidado da natureza, o valor da gratuidade.  Pois não eram esses que os colonizadores chamavam de selvagens e os teólogos da época chegavam a duvidar que tivessem alma?  Não era a eles que se devia ensinar a verdade, pois viviam na ignorância e no erro, sem saber vestir-se e vivendo no politeísmo, adorando deuses não verdadeiros? 

            Em nome da difusão do Evangelho, o projeto colonizador não teve escrúpulos em arrasar a cultura, valores e tradição dos indígenas, rotulando-os como inferiores. Nem tampouco hesitou em espoliá-los de suas terras, tirando-lhes o meio de sobrevivência e a perspectiva de futuro.

Agora, o Papa Francisco lhes pede  perdão e ajuda.  Sim, ajuda!  Pois se não são um pedido de ajuda as palavras do Pontífice, como interpretá-las então?  “O mundo de hoje, espoliado pela cultura do descarte, necessita de vós. Os jovens de hoje, expostos a uma cultura que tenta suprimir todas as riquezas e características culturais, tendo em vista um mundo homogêneo, precisam que não se perca a sabedoria dos vossos anciãos. O mundo de hoje, prisioneiro do pragmatismo, tem necessidade de voltar a aprender o valor da gratuidade.”

        Aos pés da Morenita de Guadalupe que, vestida com trajes indígenas, apareceu ao índio Juan Diego, Francisco rezou longamente.  A Morenita, desde sua “ tilma” (o poncho no qual ficou gravada sua imagem e está exposto no santuário para onde acorrem milhares de peregrinos) e seu amor originário pelos povos daquela terra, certamente inspirou suas palavras. 
 Resta rezar e esperar que os orgulhosos ocidentais que somos saibamos escutar o Espírito que fala pelos povos originários, nossos ancestrais nesta pátria grande e tão amada que é o continente americano.

Maria Clara Luchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 

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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

PRAGMATISMO ANTIÉTICO DO MERCADO


Por Frei Betto




      Nas páginas iniciais do primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, o tema da ética sobressai: no centro do Jardim do Éden havia uma árvore do bem e do mal. A árvore é o símbolo óbvio de que toda a organização da vida humana deve ser planejada em torno de princípios éticos.

      Nascemos para a liberdade. Se somos livres, temos sempre diante dos olhos um leque de opções. Podemos optar pela opressão ou pela libertação; pela mentira ou pela verdade; pela competitividade ou pela solidariedade.

      Cada uma de nossas opções, tanto pessoais quanto sociais, se funda em uma raiz ética ou antiética. Pois, como acentua Santo Tomás de Aquino, estamos todos, sem exceção, em busca do bem maior, mesmo quando praticamos o mal. E o bem maior é a felicidade.

      A ética exige, porém, uma resposta de cada um de nós: busco a minha felicidade, ainda que obtida mediante a infelicidade alheia, ou busco a felicidade de todos, ainda que a minha felicidade seja coroada pelo sacrifício da própria vida?

      Sabemos que no mundo capitalista, globocolonizado, o desenvolvimento, como bem analisou Marx, sempre significou maior acumulação de riquezas em mãos privadas. Nunca foi realizado em função das reais necessidades da maioria da população. Abrem-se ruas asfaltadas e iluminadas em loteamentos de terrenos vazios, destinados a condomínios de luxo, enquanto as ruas populosas das periferias das cidades não merecem nenhum tipo de calçamento e nelas proliferam valas infectadas de dejetos humanos.

      Talvez o mais significativo exemplo da lógica perversa que rege o desenvolvimento capitalista seja o fato extraordinário de o ser humano, ao custo de US$ 6 bilhões, ter colocado os pés na face da lua. No entanto, ainda não logrou colocar nutrientes essenciais na barriga de milhões de crianças da América Latina, da África e da Ásia.

      A razão instrumental da modernidade fracassou por ceder ao pragmatismo do mercado e se distanciar de valores como a ética. No capitalismo, qualquer sistema axiológico constitui um estorvo. A ética existe apenas enquanto discurso para iludir os ingênuos, assim como os “selos verdes” que emolduram a propaganda das grandes empresas devastadoras do meio ambiente. É o caso da Companhia Vale, no Brasil, e a Samarco, a ela vinculada, que em novembro de 2015, devido ao rompimento de uma barragem, ocasionou o maior desastre ecológico da história do Brasil, envenenando o rio Doce, uma de nossas vias fluviais mais importantes e causando um prejuízo avaliado em, no mínimo, R$ 20 bilhões. 

      Desenvolvimento, no mundo capitalista, é antes um negócio que um programa de aprimoramento da qualidade de vida da população. Vide a especulação imobiliária. Enquanto 1/3 da população do Rio de Janeiro habita em favelas, ou seja, 2 milhões de pessoas, na orla marítima milhares de casas e apartamentos permanecem fechados quase todo o ano, e são abertos apenas quando as férias de seus proprietários coincidem com o período de verão.

      No DNA do desenvolvimento capitalista há um vírus que parece imbatível: a corrupção. O Brasil se destaca hoje, infelizmente, como país onde a corrupção contaminou tanto o governo como nossas maiores empresas, como a Petrobras. Há que lembrar que o mesmo ocorre em inúmeros países. A diferença – meritória para o Brasil – é que os governos Lula e Dilma não moveram um dedo para impedir a Polícia Federal e o Ministério Público de denunciarem e investigarem corruptos e corruptores no poder público e na iniciativa privada, incluindo presidentes de grandes empreiteiras e ministros do governo do Partido dos Trabalhadores.

      Toda a história do desenvolvimento brasileiro é marcada pelo casamento entre corrupção e impunidade. Felizmente a Justiça promove o divórcio, estabelece transparência e favorece prisões e punições, processo esse que, infelizmente, está longe de chegar ao fim.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Cristovam Buarque e Veríssimo, entre outros, de “O desafio ético” (Garamond)


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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O COMPROMISSO DE PENSAR

por Marcelo Barros


Dizem que, no Brasil, as atividades do ano só começam mesmo depois do Carnaval. Só a partir dessa semana, Escolas, universidades e empresas retomam seu ritmo normal. Os meios de comunicação nos bombardeiam com notícias de crise e corrupção. Algumas são verdadeiras, mas se misturam com boatos e delações que condenam as pessoas antes mesmo de serem julgadas. Em tudo isso, o que parece mais em crise é a capacidade das pessoas pensarem. Será que as nossas escolas e universidades incentivarão seus alunos a pensar? Teremos algum dia  meios de comunicação social que divirtam as multidões sem reduzi-las ao pão e circo concedido pelos senhores do mundo? 

Como saber que cada um/uma de nós mesmos assumimos nossa missão humana de pensar e não aceitamos ser simplesmente repetidores de fórmulas feitas e macaquinhos de gestos ensaiados? É claro que, de alguma maneira, todo ser humano pensa. Processa o que acontece em redor de si e o compreende, mas isso pode ser feito de modo superficial e até irresponsável. Todos nós vivemos sob a cultura da notícia imediatizada e produzida em pílulas. Os instrumentos da internet e recursos virtuais de comunicação são valiosos e úteis, mas algumas vezes, criam uma onda de sensações que substituem o verdadeiro pensar crítico e autônomo. Sem dúvida, não é fácil nem cômodo o compromisso de pensar quando se trata de procurar compreender profundamente o que acontece e tomar uma posição verdadeiramente crítica e responsável. Na história da Filosofia, alguns reduziram o pensar a uma operação racional que ocupa apenas  parte do intelecto humano. Para alguns filósofos modernos, como Heidegger, pensar é caminhar. Só pode dizer que realmente pensa quem aceita percorrer uma estrada pessoal de busca e com o espírito aberto. E não é fácil rever nossas certezas adquiridas e colocar em questão nossos dogmas culturais, religiosos ou políticos.  

Sobre a tragédia do não pensar, Hannah Arendt escreveu o seu livro mais importante: “A banalidade do mal”. Para a filósofa judia, a verdadeira tragédia é que o mal se origina no não pensar. O carrasco nazista Adolf Eichmann exterminou multidões nos campos de concentração não porque fosse um monstro sádico. Era um homem normal e bom pai de família. Mas, tinha renunciado a pensar e apenas cumpria ordens dos superiores. Do mesmo modo, até hoje, a publicidade enganosa, o doutrinamento ideológico e o impacto sensacionalista nascem quando a pessoa renuncia a pensar criticamente e simplesmente se deixa levar por uma onda que acaba conduzindo a alguma forma de totalitarismo.

Às vezes, para instituições como o Exército, a Escola e mesmo a Igreja, é mais fácil ter pessoas que seguem normas e obedecem mecanicamente do que aceitar pessoas que pensam. O militar que, para cumprir o seu dever, usa violência ou agride pessoas, o funcionário que não é capaz de ir além de sua estrita obrigação e o religioso que repete fórmulas de crenças acabam colaborando para a cultura da indiferença geral que domina a sociedade.  O papa Francisco tem denunciado que essa indiferença está na base do sofrimento de tantas pessoas.

A revista Le Monde des Religions, em seu número atual (janeiro-fevereiro 2016) tem uma página com um mapa de todas as guerras e conflitos provocados pela religião. Pude contar 17 regiões do mundo nas quais cristãos extremistas combatem outras religiões, hindus lutam contra muçulmanos, judeus perseguem muçulmanos e assim por diante. No Brasil, que não consta desse mapa de guerras declaradas, a cada dia acontecem ataques e atos de discriminação contra cultos de matriz afrodescendente. Um amigo italiano repete um filósofo ao dizer: “A diferença não é entre quem é religioso e quem não é. A diferença está entre quem pensa e quem não pensa”.

No caminho das religiões, todas contaram com figuras proféticas que procuraram ser fieis à sua tradição, mas ao mesmo tempo apontaram para a responsabilidade do pensar de forma pessoal e amoroso. Nos evangelhos, Jesus diz: “Eu não vim destruir a lei ou os profetas. Ao contrário, vim para levá-los à sua plenitude. Nem um j desaparecerá da lei até que tudo seja realizado” (Mt 5, 17- 18). No entanto, afirmou também: “A lei e o sábado foram feitos para o ser humano e não o ser humano para a lei e o sábado” (Mc 2, 27).  


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 



segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

OS EQUÍVOCOS DO PT E O SONHO DE LULA


Por Leonardo Boff



 Durante quatro a cinco décadas houve vigorosa movimentação das bases populares da sociedade discutindo que “Brasil queremos”, diferente daquele que herdamos. Ele deveria nascer de baixo para cima e de dentro para fora, democrático, participativo e libertário. Mas consideremos um pouco os antecedentes histórico-sociais para entendermos por quê esse projeto não conseguiu prosperar.

É do conhecimento dos historiadores, mas muito pouco da população, como foi cruenta a nossa história tanto na Colônia, na Independência como no reinado de Dom Pedro I, sob a Regência e nos inícios do reinado de Dom Pedro II. As revoltas populares, de mamelucos, negros, colonos e de outros foram exterminadas a ferro e fogo, a maioria fuzilada ou enforcada. Sempre vigorou espantoso divórcio entre o Poder e a Sociedade. Os dois principais partidos, o Conservador e o Liberal, se digladiavam por pífias reformas eleitorais e jurídicas, porém jamais abordaram as questões sociais e econômicas.

O que predominou foi a Política de Conciliação entre os partidos e as oligarquias mas sempre sem o povo. Para o povo não havia conciliação mas submissão. Esta estrutura histórico-social excludente predominou até aos nossos dias.

No entanto, pela primeira vez, uma coligação de forças progressistas e populares, hegemonizadas pelo PT, vindo de baixo, chegou ao poder central. Ninguém pode negar o fato de que se conseguiu a inclusão de milhões que sempre foram postos à margem. Far-se-iam em fim as reformas de base?

Um governo ou governa sustentado por uma sólida base parlamentar ou assentado no poder social dos movimentos populares organizados.

Aqui se impunha uma decisão. Na Bolívia, Evo Morales Ayma buscou apoio na vasta rede de movimentos sociais, de onde ele veio como forte líder. Conseguiu, lutando contra os partidos. Depois de anos, construiu uma base de sustentação popular, de indígenas, de mulheres e de jovens a ponto de dar um rumo social ao Estado e lograr que mais da metade do Senado seja hoje composta por mulheres. Agora os principais partidos o apoiam e a Bolívia goza do maior crescimento econômico do Continente.

Lula abraçou a outra alternativa: optou pelo Parlamento no ilusório pressuposto de que seria o atalho mais curto para as reformas que pretendia. Assumiu o Presidencialismo de Coalizão. Líderes dos movimentos sociais foram chamados a ocupar cargos no governo, enfraquecendo, em parte, a força popular.

Para Lula, mesmo mantendo ligação com os movimentos de onde veio, não via neles o sustentáculo de seu poder, mas a coalizão pluriforme de partidos. Se tivesse observado um pouco a história, teria sabido do risco desta política de Coalização que atualiza a política de Conciliação do passado.

A Coalizão se faz à base de interesses, com negociações, troca de favores e concessão de cargos e de verbas. A maioria dos parlamentares não representa o povo mas os interesses dos grupos que lhes financiam as campanhas. Todos, com raras exceções, falam do bem comum, mas é pura hipocrisia. Na prática tratam da defesa dos bens particulares e corporativos. Crer no atalho foi o sonho de Lula que não pode se realizar.

Por isso, em seus oito anos, não conseguiu fazer passar nenhuma reforma, nem a política, nem a econômica, nem a tributária e muito menos a reforma agrária. Não havia base.

A “Carta aos Brasileiros” que na verdade era uma Carta aos Banqueiros, obrigou Lula a alinhar-se aos ditames da macroeconomia mundial. Ela deixava pouco espaço para as políticas sociais que foram aproveitadas tirando da miséria 36 milhões de pessoas. Nessa economia, o mercado dita as normas e tudo tem seu preço. Assim parte da cúpula do PT, metida nessa Coalizão, perdeu o contato orgânico com as bases, sempre terapêutico contra a corrupção. Boa parte do PT traiu sua bandeira principal que era a ética e a transparência.

E o pior, traiu as esperanças de 500 anos do povo. E nós que tanta confiança depositávamos no novo, com as milhares comunidades de base, as pastorais sociais e os grupos emergentes… Elas aprenderam articular fé e política. A mensagem originária de Jesus de um Reino de justiça a partir dos últimos e da fraternidade viável, apontava de que lado deveríamos estar: dos oprimidos. A política seria uma mediação para alcançar tais bens para todos. Por isso, as centenas de CEBs não entraram no PT; fundaram células dele e grupos, como instrumento para a realização deste sonho.

O partido cometeu um equívoco fatal: aceitou, sem mais, a opção de Lula pelo problemático presidencialismo de coalizão. Deixou de se articular com as bases, de formar politicamente seus membros e de suscitar novas lideranças.

E aí veio a corrupção do “mensalão” sobre o qual se aplicou uma justiça duvidosa que a história um dia tirará ainda a limpo. O “petrolão” pelos números altíssimos da corrupção, inegável, condenável e vergonhosa, desmoralizou parte do PT e parte das lideranças, atingindo o coração do partido.

O PT deve ao povo brasileiro uma autocrítica nunca feita integralmente. Para se transformar numa fênix que ressurge das cinzas, deverá voltar às bases e junto com o povo reaprender a lição de uma nova democracia participativa, popular e justa que poderá resgatar a dívida histórica que os milhões de oprimidos ainda esperam desde a colônia e da escravidão.

Apesar de tudo, e quer queiramos ou não, o PT representa, como disse o ex-presidente uruguaio Mujica, quando esteve entre nós, a alma das grandes maiorias empobrecidas e marginalizadas do Brasil. Essa alma luta por sua libertação e o PT redimido continua sendo seu mais imediato instrumento.

Quem cai sempre pode se levantar. Quem erra sempre pode aprender dos erros. Caso queira permanecer e cumprir sua missão histórica, o PT faria bem em seguir este percurso redentor.

*Leonardo Boff, escreveu: Depois de 500 anos que Brasil queremos, Vozes. Petrópolis 2000.