Por Leonardo Boff
Durante quatro a
cinco décadas houve vigorosa movimentação das bases populares da sociedade
discutindo que “Brasil queremos”, diferente daquele que herdamos. Ele deveria
nascer de baixo para cima e de dentro para fora, democrático, participativo e
libertário. Mas consideremos um pouco os antecedentes histórico-sociais para
entendermos por quê esse projeto não conseguiu prosperar.
É do conhecimento dos
historiadores, mas muito pouco da população, como foi cruenta a nossa história
tanto na Colônia, na Independência como no reinado de Dom Pedro I, sob a
Regência e nos inícios do reinado de Dom Pedro II. As revoltas populares, de
mamelucos, negros, colonos e de outros foram exterminadas a ferro e fogo, a
maioria fuzilada ou enforcada. Sempre vigorou espantoso divórcio entre o Poder
e a Sociedade. Os dois principais partidos, o Conservador e o Liberal, se
digladiavam por pífias reformas eleitorais e jurídicas, porém jamais abordaram
as questões sociais e econômicas.
O que predominou foi a
Política de Conciliação entre os partidos e as oligarquias mas sempre sem
o povo. Para o povo não havia conciliação mas submissão. Esta estrutura
histórico-social excludente predominou até aos nossos dias.
No entanto, pela primeira
vez, uma coligação de forças progressistas e populares, hegemonizadas pelo PT,
vindo de baixo, chegou ao poder central. Ninguém pode negar o fato de que se
conseguiu a inclusão de milhões que sempre foram postos à margem. Far-se-iam em
fim as reformas de base?
Um governo ou governa
sustentado por uma sólida base parlamentar ou assentado no poder social dos
movimentos populares organizados.
Aqui se impunha uma
decisão. Na Bolívia, Evo Morales Ayma buscou apoio na vasta rede de movimentos
sociais, de onde ele veio como forte líder. Conseguiu, lutando contra os
partidos. Depois de anos, construiu uma base de sustentação popular, de
indígenas, de mulheres e de jovens a ponto de dar um rumo social ao Estado e
lograr que mais da metade do Senado seja hoje composta por mulheres. Agora os
principais partidos o apoiam e a Bolívia goza do maior crescimento econômico do
Continente.
Lula abraçou a outra
alternativa: optou pelo Parlamento no ilusório pressuposto de que seria o
atalho mais curto para as reformas que pretendia. Assumiu o
Presidencialismo de Coalizão. Líderes dos movimentos sociais foram chamados a
ocupar cargos no governo, enfraquecendo, em parte, a força popular.
Para Lula, mesmo mantendo
ligação com os movimentos de onde veio, não via neles o sustentáculo de seu
poder, mas a coalizão pluriforme de partidos. Se tivesse observado um pouco a
história, teria sabido do risco desta política de Coalização que atualiza a política
de Conciliação do passado.
A Coalizão se faz à base
de interesses, com negociações, troca de favores e concessão de cargos e de
verbas. A maioria dos parlamentares não representa o povo mas os interesses dos
grupos que lhes financiam as campanhas. Todos, com raras exceções, falam do bem
comum, mas é pura hipocrisia. Na prática tratam da defesa dos bens particulares
e corporativos. Crer no atalho foi o sonho de Lula que não pode se
realizar.
Por isso, em seus oito
anos, não conseguiu fazer passar nenhuma reforma, nem a política, nem a
econômica, nem a tributária e muito menos a reforma agrária. Não havia base.
A “Carta aos Brasileiros”
que na verdade era uma Carta aos Banqueiros, obrigou Lula a alinhar-se aos
ditames da macroeconomia mundial. Ela deixava pouco espaço para as políticas
sociais que foram aproveitadas tirando da miséria 36 milhões de pessoas. Nessa
economia, o mercado dita as normas e tudo tem seu preço. Assim parte da cúpula
do PT, metida nessa Coalizão, perdeu o contato orgânico com as bases, sempre
terapêutico contra a corrupção. Boa parte do PT traiu sua bandeira principal
que era a ética e a transparência.
E o pior, traiu as
esperanças de 500 anos do povo. E nós que tanta confiança depositávamos no
novo, com as milhares comunidades de base, as pastorais sociais e os grupos
emergentes… Elas aprenderam articular fé e política. A mensagem originária de
Jesus de um Reino de justiça a partir dos últimos e da fraternidade viável,
apontava de que lado deveríamos estar: dos oprimidos. A política seria uma
mediação para alcançar tais bens para todos. Por isso, as centenas de CEBs não
entraram no PT; fundaram células dele e grupos, como instrumento para a
realização deste sonho.
O partido cometeu um
equívoco fatal: aceitou, sem mais, a opção de Lula pelo problemático
presidencialismo de coalizão. Deixou de se articular com as bases, de formar
politicamente seus membros e de suscitar novas lideranças.
E aí veio a corrupção do
“mensalão” sobre o qual se aplicou uma justiça duvidosa que a história um dia
tirará ainda a limpo. O “petrolão” pelos números altíssimos da corrupção,
inegável, condenável e vergonhosa, desmoralizou parte do PT e parte das
lideranças, atingindo o coração do partido.
O PT deve ao povo
brasileiro uma autocrítica nunca feita integralmente. Para se transformar numa
fênix que ressurge das cinzas, deverá voltar às bases e junto com o povo
reaprender a lição de uma nova democracia participativa, popular e justa que
poderá resgatar a dívida histórica que os milhões de oprimidos ainda esperam
desde a colônia e da escravidão.
Apesar de tudo, e quer
queiramos ou não, o PT representa, como disse o ex-presidente uruguaio Mujica,
quando esteve entre nós, a alma das grandes maiorias empobrecidas e
marginalizadas do Brasil. Essa alma luta por sua libertação e o PT redimido
continua sendo seu mais imediato instrumento.
Quem cai sempre pode se
levantar. Quem erra sempre pode aprender dos erros. Caso queira permanecer e
cumprir sua missão histórica, o PT faria bem em seguir este percurso redentor.
*Leonardo Boff, escreveu: Depois
de 500 anos que Brasil queremos, Vozes. Petrópolis 2000.
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