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terça-feira, 30 de outubro de 2018

PARA UMA NOVA REFORMA DA IGREJA




Por Marcelo Barros

A cada 31 de outubro, as Igrejas evangélicas celebram o “Dia da Reforma” e a própria Igreja Católica recorda o princípio medieval invocado por Lutero em 1517: A Igreja deve sempre se renovar.

Atualmente, tanto na Igreja Católica, como em várias Igrejas evangélicas, muita gente sente a necessidade de uma renovação profunda na forma de compreender a fé cristã e também sobre a missão e o modo de organizar a própria Igreja. Em todas as Igrejas, se debatem questões de gêneros e o desafio do diálogo da Igreja com o mundo. Tanto na Igreja Católica, como mesmo nas Igrejas evangélicas que nasceram da Reforma do século XVI, muitos fieis e ministros estão convencidos de que toda a Igreja precisa de uma nova reforma.

Não sabemos qual a proporção de católicos e evangélicos favoráveis ao processo de renovação e quantos se posicionam contra quaisquer propostas de mudança. As Igrejas estão divididas e a divisão não é mais entre instituições. Ela acontece entre pastores e fieis dentro da mesma Igreja. Diz respeito à compreensão da fé, a missão e a postura diante do mundo e da Política.  No Brasil, nessas eleições  presidenciais, em todas as Igrejas e dentro de cada uma delas, fieis e ministros se colocaram em posições opostas  e antagônicas. 

Apesar de não ter se posicionado para o primeiro turno, ao menos para o segundo, a presidência da CNBB se pronunciou claramente pela Democracia e contra candidaturas que defendem violência e discriminações sociais. Já antes do primeiro turno, a presidência da CRB (Conferência dos Religiosos/as do Brasil) emitiu um pronunciamento claro na mesma direção.

Na Igreja Católica, a norma tradicional de que a Igreja não assume postura partidária foi totalmente desrespeitada. Apesar disso, alguns bispos, muitos padres e vários movimentos leigos desrespeitaram claramente a norma e fizeram campanha pelo candidato das elites empresariais, do mercado e da indústria de armas. Desses, muitos revelaram claramente o ódio à esquerda. Por que fizeram essa escolha, deve ser tema de um estudo mais profundo de como as Igrejas cristãs puderam chegar a esse ponto.

É triste que, no Brasil, a Igreja Católica que, em outros tempos tinha líderes como Dom Helder Camara, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Tomás Balduíno e tantos outros profetas, dê agora ao mundo o testemunho de que diversos bispos e muitos padres até um cardeal tomaram posição contrária aos direitos humanos e à Democracia.

Certamente alguns apoiaram o candidato da extrema direita porque não ligam fé e compromisso social e político. Ao mesmo tempo que se proclamam muito religiosos, essa espiritualidade parece não ter nada a ver com a postura social e política que tomam. No caso de bispos e pastores pentecostais, muitos fazem isso por interesses comerciais e institucionais a preservar. Nenhuma preocupação com o bem do povo. A questão única é qual candidato favorecerá mais a sua Igreja e aos interesses comerciais do próprio bispo. No entanto, será que um cardeal e vários bispos católicos também agem assim? Conforme a imprensa, ao menos alguns deles declararam que votam em qualquer candidato por pior que seja para o povo, desde que assuma o compromisso de não mudar as leis contra aborto e união gay. O candidato pode fazer guerra e praticar todo tipo de violência, mas é chamado de “defensor da vida”.

Até hoje, mais de 70 anos depois, os católicos da Alemanha sabem que, no tempo do Nazismo, muitos padres e bispos apoiaram Hitler e, ao menos no início, fizeram acordos com ele. Na França, a maioria do episcopado católico colaborou com as forças alemãs que ocuparam o país e o governo fantoche que presidiu a França naquele tempo. Na Alemanha, a Igreja que se colocou como “confessante” e na resistência era uma minoria.

O mais triste é que essa realidade da Igreja Católica no Brasil acontece em um momento no qual, no mundo todo, essa Igreja se debate com uma das maiores crises de sua história. Os escândalos morais chegaram até as cúpulas e exigem mudanças radicais. Bispos e até cardeais são destituídos dos seus cargos. Por outro lado, o próprio papa enfrenta uma oposição cerrada, como nenhum outro papa dos tempos contemporâneos sofreu. Repetidas vezes, Francisco tem afirmado que por trás dos abusos e do sistema que os favoreceu, está o Clericalismo, doença grave da fé.  

Provavelmente, é essa mesma doença que faz alguns bispos e muitos padres tomarem posição contra o próprio evangelho de Jesus. Eles não têm escrúpulos em ajudar o povo desinformado a votar contra si mesmo, escolhendo alguém que, de todas as formas, vai oprimi-lo. É o mesmo grupo eclesiástico que se coloca contra o papa Francisco e quer impedir qualquer reforma que ameace o poder sagrado que ostentam. Diante disso, o evangelho chama as pessoas mais conscientes à lucidez da profecia e da resistência.   

 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

A CRIAÇÃO DO BODE EXPIATÓRIO: O ANTI-PETISMO



por leonardo boff
René Girard (1923-2015), pensador e filósofo francês, o maior sábio que conheci na minha vida e esteve com teólogos da libertação no Brasil em 1990, dedicou grande parte de sua vasta obra a estudar a violência, especialmente a necessidade de uma sociedade, de criar um bode expiatório (ver O bode expiatório 1982).
Por esse mecanismo do bode expiatório, a população é levada a descarregar a corrupção que está difusa e concentrada nos grandes corruptos e corruptores nas costas de um só, do PT, com a finalidade de esconder a própria corrupção. Com isso, toda a sociedade passa a esquecer os reais corruptos e a pensar que que ela está somente no PT no qual se despeja toda a raiva e o ódio. É feito bode expiatório já testemunhado na Bíblia. Os hebreus punham em cima de um bode todos os pecados e malfeitos do povo e o enviavam para o deserto para lá expiar até morrer de fome. E assim quase todas as sociedades faziam algo semelhante.
Entre nós houve um tempo em que o bode expiatório eram os subversivos, depois os comunistas (continua ainda hoje), em seguida os jovens negros das favelas, supostamente ligados ao crime e às drogas, os gays e os da LBGT. Sobre eles se transfere a violência implícita na sociedade. Neste momento o bode expiatório é o PT e Lula. Neles se põe toda a corrupção, embora quase todos os partidos, alguns mais que o PT, participaram da corrupção.
Com o apoio do aparelho repressivo do Estado, de boa parte do Ministério Público, não excluída parte do próprio STF, da classe media e especialmente da mídia privada, fez-se essa seletividade quanto à corrupção. Ao PT se joga toda culpa pelos males atuais do Brasil, quando os principais causadores se escondem criando um bode expiatório.
Mas o que verdadeiramente está por trás do anti-petismo, sob pretexto de combate à corrupção é o ódio ao ex-presidente Lula, um operário que logrou chegar ao centro do poder. A classe dominante e as oligarquias tradicionais, herdeiras da mentalidade da Casa Grande, jamais aceitaram que alguém da Senzala chegasse ao Planalto. Cultivaram e cultivam ódio e desprezo aos pobres, antes jogado sobre os escravos. Como pode um pobre frequentar o mesmo espaço social que eles: na escola. na universidade, nos shoppings, nos aviões?
Estes eram espaços de exclusividade dos endinheirados que viveram sempre de privilégios, sem senso da igualdade de todos, base de qualquer democracia. Acresce ainda aqueles que nunca reconheceram humanidade e dignidade nos pobres e negros e negras sem falar dos indígenas e quilombolas.
Agora esse ódio, latente nas oligarquias e assumido, em parte, pela classe media assustada, contaminou, não sem ajuda das igrejas neo-pentecostais televisivas, parte da população pobre.
Aqui reside a raiz primeira do anti-petismo. Há ódio e raiva recalcados em pessoas que se dizem “de bem” e se confessam cristãs. É um cristianismo meramente cultural, de fachada, mas eticamente anti-cristão.
A mídia empresarial que nunca se deu bem com a democracia e que nutre um soberano desprezo pelo “povão” ou “povinho”, ou “ralé” na expressão técnico-provocativa de Jessé Souza, jogou um papel decisivo na difusão do anti-petismo e do ódio.
Para o anti-petismo valeram todos os meios. Basta ver os blogs. os twitters e os facebooks sem falar do incontrolável meio do WhatsApp que criou redes de difamação e fake news contra o PT e o candidato Haddad.
Agora sabemos que milhões de mensagens falsas, foram financiadas por empresas privadas que, segundo a nova legislação, é crime de caixa dois.
Mas esta é a lógica da política regida pelo conceito do bode expiatório, política de ódio e de agressão do outro. Assim como existe o bulling nas escolas, agora o bulling coletivo é contra PT. Mas há que resistir à essa ignomínia. A sociedade inteira deve fazer uma revisão de seus anti-valores, de sua corrupção cotidina.
O Sindicato dos Procuradores da Fazenda (SINPROFAZ) relata que até o dia 18/9/2018 cerca de 450 bilhões de reais foram sonegados, particularmente pelas grandes empresas. Nos últimos 10 anos elas deixaram de pagar 1,8 trilhões de reais. Essa não é a grande corrupção? Quem vai contra ela? Que faz o Ministério Público e o próprio STF?
Se parte desta dívida fosse cobrada, não se precisaria nenhuma reforma da Previdência É mais fácil e cômodo criar um bode expiatório, o PT, e destarte esconder a corrupção que grassa na sociedade, até no cotidiano do suborno a policiais de trânsito.
Rejeitamos esta lógica do bode expiatório por ser seletiva, injusta, desumana e profundamente anti-ética, como denunciava sempre René Girard.
Leonardo Boff, filosofo, teólogo e co-editor do livro René Girard com teólogos da libertação,Vozes 1991.


quinta-feira, 18 de outubro de 2018

PAULO VI E OSCAR ROMERO PROCLAMADOS SANTOS




Por Frei Betto

       O papa Francisco elevou aos altares da Igreja Católica dois novos santos, o papa Paulo VI, que ocupou a cátedra de Pedro por 15 anos (1963-1978), e monsenhor Oscar Ranulfo Romero, arcebispo de San Salvador assassinado a tiros pela ditadura de seu país, em 24 de março de 1980.

       Nutro gratidão pelos dois. Sob o pontificado de Paulo VI um grupo de frades dominicanos brasileiros foi preso, em 1969, pelo regime militar, conforme mostra o filme “Batismo de sangue”, dirigido por Helvécio Ratton, e baseado em livro de minha autoria editado pela Rocco.

       Alguns cardeais e bispos abraçaram a versão policial tão logo fomos detidos, acusados de “terroristas”. Não foi o caso de nossos superiores em Roma. Vieram nos visitar na prisão e, convencidos do arbítrio ditatorial, mantiveram informado o papa Paulo VI. Este nos presenteou com um rosário feito de sementes de azeitonas do Horto das Oliveiras, em Jerusalém, e um afetuoso cartão manuscrito. E leu minhas cartas da prisão, editadas na Itália antes mesmo de serem publicadas no Brasil.

       Contrariado com o fato de o cardeal Agnelo Rossi, de São Paulo, haver assumido a versão dos algozes e negar que houvesse torturas no Brasil, Paulo VI o removeu do país e, para o seu lugar, nomeou Dom Paulo Evaristo Arns. Este nos deu todo apoio, e se destacou com um dos mais corajosos defensores dos direitos humanos, como o comprovam sua atuação no caso Vladimir Herzog e na autoria, junto com o reverendo Jaime Wright, do clássico livro “Brasil, nunca mais” (Vozes), no qual são denunciados os métodos hediondos do regime militar.

       Paulo VI coleciona, entre outros méritos, os de ter dado continuidade ao Concílio Vaticano II, convocado por seu antecessor, João XXIII, e que impulsionou a renovação da Igreja Católica, e publicar a encíclica “Populorum progressio” (1967), documento pilar da teologia da libertação, que ressalta a dimensão política da fé cristã e acentua o conceito de pecado social.

       Conheci monsenhor Romero em janeiro de 1979, na cidade mexicana de Puebla, durante a conferência episcopal latino-americana, inaugurada pelo papa João Paulo II. Presenteei-lhe com minhas “Cartas da prisão” (Fontanar). Perseguido pelos militares que governavam El Salvador, ele agradeceu: “É possível que eu tenha de aprender a escrever cartas assim”, disse sorrindo.

       Não teve tempo. Foi assassinado, em plena celebração eucarística, por quem acreditava que a força das armas tem o poder de silenciar a força da verdade.

       Monsenhor Romero era um bispo conservador, vinculado à elite de seu país, e preconceituoso em relação à teologia da libertação. Desconfiado das aulas bíblicas de um sacerdote progressista, postou-se atrás da cortina do auditório para confirmar, de ouvido próprio, as heresias exegéticas do palestrante. O efeito resultou contrário. O arcebispo se convenceu de que a leitura da Bíblia pela ótica dos oprimidos aproxima a fé da essência da revelação divina. E se tornou vez e voz daqueles que, em El Salvador, foram privados de direitos, liberdade e vida.

       Canonizar um cristão, proclamar a sua dignidade de santo, não significa exaltá-lo à perfeição. Somos todos limitados e marcados pelo pecado. A Igreja considera santidade o fato de esses cristãos terem sido testemunhas dos valores evangélicos. Seguiram com ousadia o caminho indicado por Jesus. Assumiram virtudes heroicas, como a de enfrentar, sem temor, toda sorte de acusação e perseguição.

       São elevados aos altares não para serem adorados, e sim servir de exemplo a todos que, como Jesus, dão suas vidas “para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Anfiteatro), entre outros livros.



terça-feira, 16 de outubro de 2018

A SEGURANÇA ALIMENTAR E A DEMOCRACIA




por Marcelo Barros

Quando passamos pelas ruas e praças de nossas cidades, principalmente depois do golpe de 2016, vemos que se multiplicou o número de pessoas em condições de abandono. Famílias inteiras vivem em esquinas, praças ou debaixo de pontes e viadutos. Também muitas famílias pobres que moram nas periferias urbanas e rurais vivem o mesmo drama. Não sabem se terão algo para comer hoje e amanhã. Atualmente, no Brasil, milhões de pessoas não garantem ao menos uma refeição ao dia. Essa tragédia se espalha  por todo o continente latino-americano e mesmo em todo o mundo. 

Segurança Alimentar e Nutricional é direito básico de todo ser humano. Conforme a ONU, é dever do Estado garantir a todos o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. Isso supõe práticas alimentares que favoreçam a saúde e de acordo com a cultura e a sustentabilidade ecológica. Atualmente, pequenos agricultores e agricultoras, extrativistas, pescadores e pescadoras, entre outros grupos não têm assegurada sua segurança alimentar. 

A cada ano, no dia 16 de outubro, portanto, nessa terça-feira, a  Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) comemora o “Dia Mundial da Alimentação”. Nesse ano de 2018, a FAO criou um concurso que convocou crianças e adolescentes do mundo inteiro a expressar, em forma de desenho, como o mundo pode alcançar a meta de erradicar a fome até 2030. É um cartaz para a campanha mundial Fome Zero. Por meio desta atividade, se quer conscientizar a nova geração para o fato de que existem 815 milhões de pessoas passando fome no mundo. 

No calendário da ONU, o Dia Mundial da Alimentação consegue mobilizar e realizar eventos em mais de 150 países. Eles promovem conscientização e ação global para aqueles que sofrem com a fome e querem  garantir a segurança alimentar e dietas nutritivas para todos.

Uma saída para a Segurança Alimentar é retomarmos a agricultura familiar, incentivar as agroflorestas, proteger os povos indígenas, povos ribeirinhos e das matas. De fato, possibilitar às  pessoas terem independência alimentar impactaria muito menos o planeta, além de promover novas relações entre os povos. Uma reformulação na base de nossa educação formal também se faz necessária. É urgente ensinar as crianças as potencialidades nutricionais encontradas nos vegetais. Mas, o principal é mesmo rever o modelo capitalista-consumista. Esse modelo só subtrai da Terra toda a sua biodiversidade e promove a fome, doenças graves e a insustentabilidade geral do planeta. É hora de escolhermos governantes e representantes que cuidem da vida e da Terra. 

A fome e a pobreza não são elementos fatídicos de um destino cruel que cabe à maioria da humanidade. São consequência de um modo de organizar a sociedade e dependem quase unicamente de vontade política dos governantes e da sociedade que domina o país. De 2003 até 2016, de acordo com a Constituição e no diálogo com os outros poderes estabelecidos, os governos de Lula e Dilma mantiveram o sistema econômico e social vigente,  com todas as suas contradições. Mesmo assim, conforme dados da ONU, o conseguiram retirar mais de 32 milhões de pobres da extrema vulnerabilidade. Os programas sociais colocaram milhões de pessoas em melhores condições de vida. As pessoas tiveram acesso ao alimento necessário, a mais condições de trabalho e, portanto, um salário mais mínimo. No entanto, infelizmente, isso não foi acompanhado por uma educação para a cidadania e uma maior consciência social.  E as elites, mesmo ganhando cada vez mais, nunca se conformaram em dividir aeroportos e ambientes sociais com uma classe que até então era destinada às senzalas de hoje. A classe média sempre achou normal que um filho de família rica recebesse bolsa de mil dólares por mês para estudar na Europa, mas nunca que uma família pobre de cinco ou oito filhos ganhasse cem reais de bolsa-família para, ao menos, garantir a cesta básica. Por isso, a elite se aliou ao império norte-americano que vive sempre de golpes e os patrocina, sempre que pode. E o resultado, todos sabem. 

Agora, novamente, temos um momento decisivo de escolha. Infelizmente, os grandes meios de comunicação se especializaram em transformar a verdade em mentira e vendem a mentira como se fosse verdade.  Infelizmente, até o nome de Deus e a fé estão sendo manipuladas contra os interesses da maioria do povo. O que está em jogo é a Democracia no país, é a garantia de vida digna para todos. Nesse segundo turno, somos chamados a votar pela retomada do esforço de integração do continente latino-americano e, finalmente, saldarmos a dívida moral de toda a sociedade com todos os empobrecidos desse país. Temos de possibilitar ao nosso povo uma Segurança Alimentar que seja não apenas uma questão de comida e sim de vida digna e consciência de cidadania social. 
  MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

ELEIÇÕES NO BRASIL E RELIGIÃO



        por Maria Clara Lucchetti Bingemer

  
            Passou o primeiro turno das eleições, mas não a perplexidade.  Esta, ao contrário, aumentou. Por quê?  Primeiro, por causa da onda avassaladora que emergiu das urnas, transformando radicalmente a configuração política do Brasil em sua quase totalidade. Em seguida, pela percepção de um novo elemento que despontou como protagonista nos resultados dessas eleições: a religião.

             Os resultados desse primeiro turno trouxeram surpresa após surpresa. Vários candidatos que as pesquisas davam como favoritos em diferentes estados não apenas não ganharam sequer direito a um segundo turno, como ficaram em último lugar na votação.  Partidos até então líderes no cenário político brasileiro encolheram sua presença nos governos estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado. Outros até então pequenos e com parca representação cresceram exponencialmente. E a corrida presidencial, embora confirmando as previsões das pesquisas, superou-as consideravelmente. 

            Enquanto tentamos nos recuperar das surpresas, outro dado novo nos atropela: o protagonismo que a religião  passou a ter nas campanhas de tantos candidatos, especialmente em boa parte dos vitoriosos.  O discurso sobre Deus, a compreensão da própria candidatura como vocação dada por Deus, a Bíblia utilizada como epígrafe de entrevistas transmitidas pela mídia  se fazem sempre mais presentes na propaganda eleitoral e nos debates entre os candidatos. 

            Não se trata, porém, do discurso cristão que nos acostumamos a ouvir, característico das Igrejas históricas, católica ou protestante.  A ênfase é na afirmação da supremacia gloriosa de Deus sobre tudo e todos e a conexão disto com o patriotismo exacerbado: a pátria acima de tudo. Os versículos bíblicos – às vezes não citados corretamente – são isolados de seu contexto.  E apoiam as afirmações do candidato e não o contrário. 

             Se Deus está acima de todos, não parece estar acima daqueles que o citam a torto e a direito, em perigosa proximidade com o segundo mandamento que manda “não tomar seu Santo nome em vão”. Servem tais citações como respaldo e legitimação ao que os candidatos em questão querem propor ao público como ideias a assimilar e projetos aos quais aderir.  É a Bíblia a serviço do discurso eleitoral e não o contrário. É a Palavra de Deus utilizada como apoio para afirmações e declarações que andam  distantes daquilo que as Escrituras apresentam como sendo o permanente diálogo de amor e vida em plenitude do Deus da Aliança e da Promessa com seu povo. 

             Nessas declarações encontram-se incitações à violência e promessas de armar a população e militarizar as escolas.  Ouvem-se afirmações discriminatórias em relação a vários segmentos da população: merecem destaque os negros, as mulheres e os LGBT. Fala-se com desprezo dos direitos humanos e das conquistas duramente conseguidas pela humanidade e concretamente pelos brasileiros ao longo de décadas. Direitos laborais, políticos e sociais são definidos como males a extirpar. 

            Percebe-se, portanto, uma explicitação da fé cristã descolada dos valores que os candidatos em questão pretendem defender: a família, a moral, a segurança. Enquanto no Evangelho de Jesus Cristo o que se lê é a apologia do acolhimento ao outro, do perdão, da não violência, da inclusão de todos, os discursos políticos dessas eleições em nosso país vêm carregados de agressividade, eu diria até mesmo de morbosidade.  

             A ligação constitutiva do cristianismo entre a fé e o compromisso transformador com a justiça passa longe das eleições brasileiras.  O que se vê é o louvor como fim em si mesmo, a afirmação da fé em Deus apoiando e legitimando  propostas excludentes,  agressivas e discriminatórias. E, pior que tudo, a banalização da violência e da morte como preço necessário a pagar para trazer segurança a um povo cansado de ver a própria vida e de sua família permanentemente em risco.  

             Essa combinação explosiva de patriotismo ultramontano e religiosidade fundamentalista infelizmente não é nova.  Já foi vista em outras situações e mais ou menos recentemente na Europa do final dos anos 30, inicio dos 40. O espaço onde aconteceu foram os países cristãos.  Ali também Deus foi convocado para justificar um novo regime que parecia  empoderar países em crise.   Os resultados são bem conhecidos. A humanidade amargou o maior genocídio de todos os tempos, pelo qual até hoje paga as consequências. 

            Ninguém acreditava que líderes que se diziam tementes a Deus pudessem realizar suas enlouquecidas propostas.  Tiveram que pagar para ver.  E viram quando já era tarde. Às vésperas do segundo turno, acompanhamos com angústia o rumo que toma nosso país. Que nos ajude a esperança, virtude indispensável que a fé no verdadeiro Deus nos ajuda a não perder. 

 Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de  de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), sua mais recente obra, entre outros livros.

 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

terça-feira, 9 de outubro de 2018

UM MARTÍRIO POLÍTICO E O MOMENTO BRASILEIRO




por Por Marcelo Barros

No próximo domingo, 14 de outubro, em Roma, em uma mesma cerimônia, o papa Francisco vai proclamar como santos o papa Paulo VI e Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado em 1980, quando celebrava a eucaristia em uma capela de hospital. Sobre o processo de canonização e o seu estilo, podemos ter críticas e desejar uma renovação mais de acordo com o evangelho. Antes de tudo, devemos lembrar que São Paulo chama todos os batizados de santos, santificados pela graça. Por isso, é bom sempre repetir: o papa não torna ninguém santo. Apenas, proclama que tal pessoa (que já está no céu pela graça divina) tem seu nome na lista (no canon) dos santos,  por ser reconhecido/a como exemplo de santidade para o povo de Deus. Hoje, qualquer pessoa mais crítica contesta os critérios usados durante o processo e espera que o método se torne menos monárquico e, economicamente, mais acessível ao mundo dos pobres.Assim mesmo, para o mundo inteiro, as canonizações desse domingo são muito significativas.

Paulo VI foi o papa que continuou o Concílio Vaticano II e se tornou responsável pela renovação da Igreja que o Concílio propôs. Canonizá-lo é um modo claro de valorizar o esforço de renovação e retomá-lo nos ambientes eclesiais nos quais o antigo regime ainda domina. Proclamar Paulo VI como santo é deixar claro que quem opta por uma Igreja não renovada é alguém que se fecha à graça da santidade.

Quanto à canonização de Oscar Romero, o mundo inteiro sabe que alguns bispos de El Salvador e grupos dentro do Vaticano fizeram de tudo para evitar a canonização. Não vale a pena repetir as intrigas e maledicências inventadas para destruir a honra de Romero. No tempo da beaficação, o papa Francisco chegou a afirmar que ele foi mártir duas vezes: no dia em que perdeu a vida por seu amor aos pobres e depois quando, já morto, foi vítima de calúnias para manchar sua imagem e destruir sua profecia.Agora, ao colocar o nome de Romero na lista dos santos, o papa simplesmente reconhece o fato de que, desde 1980, os pobresda América Latina já chamam Romero de “São Romero de las Américas”.

Essa canonização, além de ter esse significado profundo para a América Latina, é o reconhecimento de um martírio de conteúdo profundamente social e político. O papa e todas as pessoas que conhecem a história sabem que Monsenhor Romero não foi um santo da caridade, no estilo de Madre Teresa de Calcutá, de Charles de Foulcaud ou de Santa Terezinha do Menino Jesus, figuras maravilhosas da Igreja. Romero testemunhou o reino de Deus e deu sua vida, ao tomar partido na luta de libertação do povo de El Salvador e ao enfrentar uma ditadura com a qual os outros bispos, em sua maioria,  eram condescendentes. Embora desarmado e sem nenhum vínculo direto com a guerrilha, foi profeta da justiça e do direito do povo e de sua libertação. Romero foi e é um mártir político.

A expressão não é minha. Um dos maiores teólogos cristãos da atualidade, Jungmann Moltmann, pastor evangélico alemão afirmou: “No antigo império romano, os mártiresque se negavam a prestar culto ao imperador, contribuíram a propagar a liberdade. (cometeram um ato de subversão política). Assim também em nossos tempos, as Igrejas que esquecem a seus mártires políticos estão em perigo de acomodar-se à religião política da sociedade em que vivem” (do livro La Iglesia, fuerzadelEspíritu, Salamanca, 1978, p. 118).

Atualmente, muitos cristãos se perguntam como foi possível que, apesar de uma minoria profética que denunciou isso, a maioria do clero e dos fieis católicos e evangélicos foram coniventes e até colaboradores com a escravidão dos índios e negros. Do mesmo modo, pode ser que, em um futuro próximo, cristãos se perguntem: Como se tornou possível que, no começo do século XXI, no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países, pastores e fieis, católicos e evangélicos, tenham escolhido votar na extrema direita?

Todos sabem que esses seus candidatos conservadores farão tudo para manter as desigualdades sociais. Sempre ficam do lado da elite rica contra os empobrecidos. São adeptos de guerras e violências. No entanto, bispos, pastores, padres e fieis, votam neles. Será porque, no terreno da moral sexual, esses fascistas, embora não vivam, defendem a moral tradicional? Certamente, além desses cristãos fundamentalistas, preocupados obsessivamente com os temas da moral sexual, muitos outros têm no seu DNA uma tendência de apoiar pessoas autoritárias e com tendência totalitária. Por que? As Igrejas assistem a essa tragédia e não se perguntam em que erraram na formação de seus ministros e fieis. E o mundo teria o direito de se perguntar o que, hoje, Jesus diria desse Cristianismo de direita.

Certamente, essa ala tradicional da Igreja, pouco ligará para a canonização de Oscar Romero. Na cerimônia de sua beatificação, um cardeal chegou a pregar que Monsenhor Romero é santo porque tinha uma profunda devoção a Virgem Maria, ao papa e ao Santíssimo Sacramento (nessa ordem). O mundo inteiro sabe que, nesse domingo, em Roma, ao canonizar Romero, não será essa a pregação do papa Francisco. Para usar um termo de Santo Inácio de Antioquia, no começo do Cristianismo, “a luta social e política de Monsenhor Romero junto a seu povo e o seu testemunho de amor aos pobres o torna para nós Palavra viva de Deus”. Santo Oscar Romero, rogai a Deus por nós e ajudai-nos no caminho da conversão nossa e de nossas Igrejas”.

 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br



sexta-feira, 5 de outubro de 2018

A URGÊNCIA DA PAZ E BEM DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS



por leonardo boff

No nosso país, dentro de um ambiente de muito ódio, destruição de biografias e mentiras de todo tipo, vale recorrer ao espírito de São Francisco de Assis, à sua famosa oração pela paz e à sua saudação de Paz e Bem. Era um ser que havia purificado seu coração de toda a dimensão de sombra , tornando-se “o coração universal…porque para ele qualquer criatura era uma irmã, unida a ela por laços de carinho” como escreveu o Papa Francisco em sua encíclica ecológica (n.10 e 11). Por onde quer que passasse, saudava as pessoas com o seu ”Paz e Bem”, saudação que ficou na história especialmente dos frades que começam suas cartas desejando Paz e Bem.
Construiu laços de paz e de fraternidade com o Senhor irmão Sol, e com a senhora Mãe Terra. Essa figura singular, seja talvez uma das mais luminosas que o Cristianismo e o próprio Ocidente já produziram. Há quem o chame de o “ultimo cristão” ou o “primeiro depois do Único” quer dizer, de Jesus Cristo.
Seguramente podemos dizer: quando o Cardeal Bergoglio escolheu nome de Francisco quis sinalizar um projeto de sociedade pacífica, de irmãos e irmãs, reconciliados com todos os irmãos e irmãs da natureza e de todos os povos. A mesmo tempo, pensou numa Igreja na linha do espírito de São Francisco. Este era o oposto do projeto de Igreja de seu tempo que se expressava pelo poder temporal sobre quase toda a Europa até a Rússia, por imensas catedrais, suntuosos palácios e grandes abadias.
São Francisco optou por viver o evangelho puro, ao pé da letra, na mais radical pobreza, numa simplicidade quase ingênua, numa humildade que o colocava junto à Terra, no nível dos mais desprezados da sociedade vivendo entre os hansenianos e comendo com eles da mesma escudela.
Para aquele tipo de Igreja e de sociedade, confessa explicitamente: “quero ser um ‘novellus pazzus’, um novo louco”: louco pelo Cristo pobre e pela “senhora dama” pobreza, como expressão de total liberdade: nada ser, nada ter, nada poder, nada pretender. Atribui-se a ele a frase: “desejo pouco e o pouco que desejo é pouco”. Na verdade era nada. Considerava-se “idiota, mesquinho, miserável e vil”.
A despeito de todas as pressões de Roma e as internas dos próprios confrades que queriam conventos e regras nunca renunciou ao eu sonho de seguir radicalmente o Jesus, pobre junto com os mais pobres.
A humildade ilimitada e a pobreza radical lhe permitiram uma experiência que vem ao encontro de nossas indagações: é possível resgatar o cuidado e o respeito para com a naturezaÉ possível uma sociedade sem ódios que inclua a todos, como ele o fez: com o sultão do Egito que encontrou na cruzada, com o bando de salteadores, como lobo feroz de Gúbbio e até com a irmã morte?
Francisco mostrou esta possibilidade e sua realização. ao fazer-se radicalmente humilde. Colocou-se no mesmo chão (húmus=humildade) e ao pé de cada criatura, considerando-a sua irmã. Inaugurou uma fraternidade sem fronteiras: para baixocom os últimos, para os lados com os demais semelhantes, independente se eram Papas ou servos da gleba, para cima com o sol, a lua e as estrelas, filhos e filhas do mesmo Pai bom.
A pobreza e a humildade assim praticadas não têm nada de beatice. Supõem algo prévio: o respeito ilimitado diante de cada ser. Cheio de devoção, tirava a minhoca do caminho para não ser pisada, enfaixava um galhinho quebrado para que se recuperasse, alimentava no inverno as abelhas que esvoaçam por aí, famintas.
Não negou o húmus original e as raízes obscuras de onde todos viemos. Ao renunciar a qualquer posse de bens ou de interesses ia ao encontro dos outros com as mãos vazias e o coracão puro, oferecendo-lhes apenas o Paz e Bem, a cortesia, e o amor cheio de e ternura.
A comunidade de paz universal surge quando nos colocamos com grande humildade no seio da criação, respeitando todas as formas de vida e cada um dos seres pois todos possuem um valor em si mesmo, antes de qualquer uso humano. Essa comunidade cósmica, fundada no respeito ilimitado, constitui o pressuposto necessário para fraternidade humana, hoje abalada pelo ódio e pela discriminação dos mais vulneráveis de nosso país. Sem esse respeito e essa fraternidade dificilmente a Constituição a Declaração dos Direitos Humanos terão eficácia. Haverá sempre violações, por razões étnicas, de gênero, de religião e outras.
Est espírito de paz e fraternidade, poderá animar nossa preocupação ecológica de salvaguarda de cada espécie, de cada animal ou planta, pois são nossos irmãos e irmãs. Sem a fraternidade real nunca chegaremos a formar a família humana que habita a “irmã e Mãe Terra”, nossa Casa Comum, com cuidado.
Essa fraternidade de paz é realizável. Todos somos sapiens e demens mas podemos fazer com que o sapiens em nós humanize nossa sociedade dividida que deverá repetir:”onde há ódio que eu leve o amor”.
Leonardo Boff teólogo, ex-frade e sempre franciscano e comentou “A oração de São Francisco pela paz”,Vozes 1999.


quinta-feira, 4 de outubro de 2018

UTOPIA E POLÍTICA




Frei Betto

       Tudo é política, mas a política não é tudo. Participar da vida política, ainda que apenas pelo voto, é exercício de cidadania. Porque a política tem a ver com todos os aspectos de nossas vidas, da qualidade dos serviços de saúde à segurança de nossas famílias. Quem anula o voto ou vota em branco favorece o poder vigente e fica de costas para o bem comum.

       Não há como erradicar a miséria, reduzir a criminalidade e a desigualdade social sem a atividade política. A política serve para oprimir e favorecer a corrupção, como também para libertar e punir os corruptos. Tudo depende do modo como é exercida.

       O Evangelho de Lucas (3, 1), ao contextualizar a missão de Jesus, a situa politicamente: “No décimo quinto ano do governo de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judeia; Herodes, tetrarca da Galileia; Filipe, seu irmão, tetrarca da região da Itureia e da Traconídite; e Lisânias, tetrarca de Abilene” etc. Até mesmo a Palavra de Deus tem a ver com política, embora não se deva confessionalizá-la.

       Jesus foi assassinado por razões políticas. Ousou anunciar, no reino de César, outro reino possível, o de Deus! Rechaçou a opressão, a doença e a pobreza como castigos divinos. Condenou a religião como legitimadora de preconceitos e discriminações. E propôs um novo projeto civilizatório baseado, nas relações pessoais, no amor e na compaixão; e nas relações sociais, na partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.

       Oito séculos antes de Cristo, o profeta Isaías já havia prefigurado a utopia de uma sociedade na qual a implantação da justiça assegurará o advento da paz: "Vejam! Vou criar novo céu e nova terra.

 As coisas antigas nunca mais serão lembradas, nem voltarão ao pensamento. Fiquem alegres! Exultarei com Jerusalém e me alegrarei com o meu povo. E nela nunca mais se ouvirá choro ou clamor. Aí não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não cheguem a completar seus  dias; pois será ainda jovem quem morrer com cem anos... Quem construir casa nela habitará, e quem  plantar vinhas comerá de seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, nem semeará para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricarem

Ninguém trabalhará inutilmente, nem gerará filhos para  morrerem antes do tempoporque todos serão a descendência  dos abençoados de Javéjuntamente com seus filhos

Antes que me invoquem eu respondereiquando começarem a falar, já estarei atendendo. O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o leão comerá capim junto com o boi... Em todo o meu monte santo ninguém causará danos ou estragosdiz Javé.” (65, 17-25).

       Na próxima semana, os brasileiros escolherão seus futuros governos estadual e federal. Eis um direito democrático de substancial importância. Os eleitos haverão de fazer o país avançar ou retroceder ainda mais. Deles dependerão o combate ao desemprego e às causas da criminalidade, a universalização da educação de qualidade e o fim das intermináveis filas nos postos de saúde.

       Os políticos são considerados autoridades. Ora, a rigor autoridades somos nós, o povo brasileiro, que os elegemos, pagamos seus salários e todos os gastos do exercício de seus mandatos, da conta de luz do Palácio da Alvorada ao combustível que move o avião presidencial.

       Sem utopia a política se apequena. Torna-se mero jogo de poder em função de ambições pessoais e interesses corporativos. É de suma importância votar de olho no projeto Brasil. No futuro das novas gerações. Na conquista de uma sociedade que espelhe a proposta do profeta Isaías, onde o lobo e o cordeiro, que são diferentes, não façam da diferença divergência, e possam conviver em harmonia e igualdade de condições.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Anfiteatro), entre outros livros.

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terça-feira, 2 de outubro de 2018

ESSAS ELEIÇÕES E A ESPIRITUALIDADE



Por Marcelo Barros

Estamos na semana de eleições presidenciais, eleições para o Congresso e também para o governo dos Estados e assembleias estaduais. Não são poucos os candidatos que recorrem a Igrejas para se elegerem e há grupos que pensam que cristão deve votar em cristão. Conforme o evangelho e a ética da fé, não deve ser esse o pensamento. Como diz Jesus no evangelho: “Não é quem diz Senhor, Senhor, que entra no reino dos céus, mas quem faz a vontade do Pai” (Mt 7, 21).

O critério para eleger alguém não pode ser se a pessoa é de tal Igreja ou religião e sim se, de fato, se propõe a servir às boas causas de todo o povo. Como vivemos em um país desigual e dividido, é importante que escolhamos pessoas que ajudem a tornar o Brasil mais justo, menos desigual e as classes empobrecidas possam ter sua cidadania reconhecida.

As eleições nada têm a ver com Igrejas, mas têm sim a ver com Espiritualidade. Não se pode dividir a vida em material e espiritual, nem reduzir a fé a algo íntimo e apenas religioso.  Se a Política e a Espiritualidade não se encontrarem, a Política vira politicagem e a espiritualidade se torna somente devoção privada e intimista. Temos de redescobrir e valorizar a dimensão política da espiritualidade, assim como redescobrir a base espiritual da Política. A nossa busca espiritual do Amor Divino tem de se manifestar no modo como exercemos nosso compromisso de cidadãos e cidadãs de uma pátria e de uma cidade.

Não é verdade que a Política é assunto que não se discute. Menos ainda é justo afirmar que nenhum político presta. É ingenuidade dizer: “Não gosto de Política”. Todos nós fazemos política quando convivemos em sociedade e exercemos alguma função social. De fato, muitos entram na Política profissional para se beneficiarem individualmente. Esses servem a interesses seus ou do grupo que os pagam e não às causas do povo. No entanto, existe, sim, uma minoria que pede os nossos votos para representar o povo e garantir o direito de todos.

No próximo dia 14, o papa Francisco vai canonizar Monsenhor Oscar Romero, arcebispo de El Salvador. Assim, o papa reconhece publicamente que Romero deu a vida para defender os pobres e lutou até o fim pelo que ele chamava de “dignidade da Política”, como serviço ao bem comum.

No Brasil, essas eleições estão muito polarizadas. Para votar com coerência espiritual, é preciso ser dócil ao Espírito de Deus em nós e não seguir critérios de interesse pessoal, de família ou votar apenas por relação de amizade. O nosso voto pode ajudar a construir uma sociedade mais justa. No entanto, ao contrário, pode também perpetuar os velhos vícios do sistema vigente. Não estamos em uma sociedade ideal e todos os partidos têm falhas. No entanto, é importante discernir entre as diversas escolhas possíveis, a escolha que nos parece ser a mais justa e adequada para o bem comum e as causas dos mais pobres. Quem tem fé em Deus ou simplesmente na Vida não deveria dar o seu voto a quem prega discriminações sociais, faz diferenças de direitos entre homens e mulheres e revela claramente intolerância contra minorias sexuais.

  Os Evangelhos contam que, ao entrar em Jerusalém, Jesus foi ao templo e ali, com um chicote em punho, expulsou os cambistas e vendedores de animais para os sacrifícios. Esse gesto anunciava que, a partir de Jesus, a nossa relação com Deus não precisa de templos nem de sacrifícios. No entanto, essa cena de Jesus expulsando do templo os comerciantes pode também servir como símbolo para a Política. A atividade política deve ser vista como novo templo divino, como espaço formador da dignidade coletiva de um povo. Por isso, é preciso sempre de novo expulsar dela os vendedores que a diminuem e a envergonham. Hoje, o chicote com o qual podem ser expulsos da política os que a reduzem a um negócio de interesse e mercado só pode ser o voto consciente e ético de cada cidadão/ã.  O evangelho diz que devemos julgar as pessoas e partidos conforme a prática e pelos seus resultados. “Pelos frutos bons, vocês podem discernir que a árvore é boa, assim como pelos maus frutos, verão que uma árvore é má. Pelos frutos, vocês podem discernir se a árvore é boa ou má” (Mt 7, 18). 

  MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br