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sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

A crise do Brasil e do mundo: tragédia ou drama?


 Leonardo Boff


Finalmente no Brasil estamos saindo de uma profunda crise que quase abalou os fundamentos não só de nossa democracia mas de nossa civilização em fazimento. Fomos tomados por uma barbárie cujos atores, em sua maioria, eram verdadeiros criminosos. Estamos respirando politicamente ares de decência, de vontade firme de garantir a democracia e o Estado de direito democrático. Que nunca mais aconteça a trágica e bizarra depredação dos três palácios sagrados que fazem funcionar o nosso governo.

Não menor e com viés de tragédia é a situação geral do mundo com a crescente degradação do planeta, o aumento já incontrolável do aquecimento global que inaugurou um novo regime climático para pior a ponto de o Secretário Geral da ONU, António Guterrez ter advertido na COP sobre o clima no Egito em janeiro deste ano:”Ou fechamos um pacto de solidariedade climática ou um pacto de suicídio coletivo”. Sérias palavras de um homem sério.

A crise planetária. não é apenas conjuntural mas estrutural, pois abala  nosso sentido de viver juntos. Ela pode representar uma tragédia cujo desfecho pode ser devastador, como no teatro grego ou um drama cujo termo pode ser bem-aventurado como na liturgia cristã. Depende de nós e de nossa capacidade de decidir, se ela será uma coisa ou outra. Mas cresce a consciência de que nos acercamos do momento em que temos que decidir, caso contrário, a crise deixará de ser drama para virar tragédia coletiva, como advertia sabiamente o Secretário Geral da ONU.

Desde o advento do existencialismo, especialmente com Sören Kierkegaard, a vida é entendida como processo permanente de crises e de superação de crises. Ortega y Gaset mostrou, num famoso ensaio de 1942, que a história,  por causa de suas rupturas e  retomadas, possui a estrutura da crise. Esta obedece à seguinte lógica:(1)a ordem dominante deixa de realizar um sentido evidente; (2) começa a crítica e a percepção de que um muro se levanta à nossa frente, por isso reinam dúvida e ceticismo; (3) urge uma decisão que cria novas certezas e um outro sentido; mas como decidir se não se vê claro? mas sem decisão não haverá saida para a crise;(4)tomada a decisão, mesmo sob risco, abre-se, então, novo caminho e outro espaço para a liberdade. Superou-se a crise. Nova  ordem começa.

A crise representa purificação e oportunidade de crescimento. Não precisamos recorrer ao diagrama chinês de crise para saber desta significação. Basta recordar sua origem mais ancestral  no sânscrito, matriz de nossa lingua. Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri vem crisol, elemento  com o qual limpamos ouro das gangas e acrisolar que quer dizer depurar. Então, a crise representa um processo critico, de depuração do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece. A partir do cerne se constrói uma outra ordem.

 

Mas todo processo de purificação não se faz sem cortes e rupturas. Dai a necessidade da decisão. A de-cisão opera uma cisão com o anterior e inaugura o novo. Aqui nos pode ajudar o sentido grego de crise. Em grego krisis, crise, significa a decisão tomada por um juiz ou um médico.  O juiz pesa e sopesa os prós e os contras e o médico conjuga os vários sintomas; então, ambos tomam a decisão pelo tipo de sentença ou pelo tipo de tratamento para a doença. Esse processo decisório é chamado crise. Tomada a decisão, desaparece a crise. O evangelho de São João usa 30 vezes a palavra crise no sentido de decisão. Jesus comparece como “a crise do mundo”, pois obriga as pessoas a se decidirem.

No Brasil sempre protelamos as crises que nos obrigarim a dar um salto de qualidade face às profundas injustiças sociais para com os pobres, a população negra, os quilombolas. os indígenas,como testemunhamos, há dias, tristemente o verdadeiro genocídio do povo yanomami.

Sempre se fazem conciliações a pretexto da governabilidade e assim se preservam os privilégios das elites. A crise do capitalismo é notória.É um sistema perverso que conseguiu tomar todo o planeta com seu industrialismo e o sonho ilusório de um crescimento ilimitado. Ele, não simplesmente a humanidade, é o fator principal da crise do sistema-vida e do sistema-Terra. Suas grandes corporações com seus CEOs e técnicos estão mais preocupadas em garantir seus ganhos do que tomar medidas para equilibrar o emissão de gases de efeito estufa e tirar o planeta de uma tragédia anunciada.

É um sistema tão azeitado que funciona por si mesmo como um robot, pondo em risco o  equilíbrio so planeta que deve garantir a base de sustentação de nossas vidas. Ou superamos este sistema de um industrialismo voraz ou ele tornará o planeta inabitável para eles e para todos.

Bem disse Platão em meio à crise da cultura grega: “as coisas grandes só acontecem no turbilhão”. Com a de-cisão, o turbilhão e a crise desaparecem e nasce uma nova esperança. Podemos esperar isso para a nossa geração submetida a tantas ameaças?

O esperançar de Paulo Freire nos pode inspirar: não apenas esperar que as coisas aconteçam para o bem por si mesmas, mas criar a condições objetivas para que a esperança se transforma numa nova ordem, na qual, ainda nas palavras do Mestre,”a sociedade não seja tão malvada e não seja tão difícil o amor”.

Leonardo Boff é filósofo e ecoteólogo ecreveu: A busca da justa medida: o pescador ambicioso e o pexie encantado,Vozes 2022.

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quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A DEMOCRACIA EM RISCO

Frei Betto


 

        Não nos iludamos de novo: nossa frágil democracia continua em risco. Recordo do governo João Goulart e suas propostas de reformas de base, ao início da década de 1960. As Ligas Camponeses levantavam os nordestinos. Os sindicatos defendiam com ardor os direitos adquiridos no período Vargas. A UNE era temida por seu poder de mobilização da juventude. 

        Era óbvia a inquietação da elite brasileira. Passou a conspirar articulada no IBAD, no IPES e outras organizações, até eclodir nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Contudo, o Partido Comunista Brasileiro tranquilizava os que sentiam cheiro de quartelada – acreditava-se que Jango se apoiava num esquema militar nacionalista. E, no entanto, em março de 1964 veio o golpe militar. Jango foi derrubado, a Constituição, rasgada; as instituições democráticas, silenciadas; e Castelo Branco empossado sem que os golpistas disparassem um único tiro. Onde andavam “as massas” comprometidas com a defesa da democracia?

        Conheço bem o estamento militar. Sou de família castrense pelo lado paterno. Bisavô almirante, avô coronel, dois tios generais e pai juiz do tribunal militar (felizmente se aposentou à raiz do golpe). 

        Essa gente vive em um mundo à parte. Sai de casa, mas não da caserna. Frequenta os mesmos clubes (militares), os mesmos restaurantes, as mesmas igrejas. Muitos se julgam superiores aos civis, embora nada produzam. Têm por paradigma as Forças Armadas nos EUA e, por ideologia, um ferrenho anticomunismo. Por isso, não respeitam o limite da Constituição, que lhes atribui a responsabilidade de defender a pátria de inimigos externos. Preocupam-se mais com os “inimigos internos”, os comunistas. 

        Embora a União Soviética tenha se desintegrado; o Muro de Berlim, desabado; a China, capitalizada; tudo que soa como pensamento crítico é suspeito de comunismo. Isso porque nas fileiras militares reina a mais despótica disciplina, não se admite senso crítico, e a autoridade encarna a verdade. 

        O Brasil cometeu o erro de não apurar os crimes da ditadura militar e punir com rigor os culpados de torturas, sequestros, desaparecimentos, assassinatos e atentados terroristas, ao contrário do que fizeram nossos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile. Assistam ao filme “Argentina,1985”, estrelado por Ricardo Darín e dirigido por Santiago Mitre. Ali está o que deveríamos ter feito. O resultado dessa grave omissão, carimbada de “anistia recíproca”, é essa impunidade e imunidade que desaguou no deletério governo Bolsonaro.

        Não concordo com a opinião de que só nos últimos anos a direita brasileira “saiu do armário”. Sem regredir ao período colonial, com mais de três séculos de escravatura e a dizimação de indígenas e da população paraguaia numa guerra injusta, há que recordar a ditadura de Vargas, o Estado Novo, o Integralismo, a TFP e o golpe de 1964. 

        O altissonante silêncio dos militares perante os atos terroristas perpetrados por golpistas a 8 de janeiro deve nos fazer refletir. Cumplicidade não se consuma apenas pela ação; também por omissão. Mas não faltaram ações, como os acampamentos acobertados pelos comandos militares em torno dos quartéis e a atitude do coronel da guarda presidencial que abriu as portas do Planalto aos vândalos e ainda recriminou os policiais militares que pretendiam contê-los. 

        “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, reza o aforismo que escuto desde a infância. Nós, defensores da democracia, não podemos baixar a guarda. O bolsonarismo disseminou uma cultura necrófila inflada de ódio que não dará trégua à democracia e ao governo Lula. 

        Nossa reação não deve ser responder com as mesmas moedas ou resguardar-nos no medo. Cabe-nos a tarefa de fortalecer a democracia, em especial os movimentos populares e sindicais, as pautas identitárias, a defesa da Constituição e das instituições, impedindo que as viúvas da ditadura tentem ressuscitá-la.

        O passado ainda não passou. A memória jamais haverá de sepultá-lo. Só quem pode fazê-lo é a Justiça.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

 

 

Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

PALAVRAS DE PEDRO

  Dom Pedro Casaldáliga



        Eu insisto cada vez mais nisto; para mim é como um dogma de fé: ou o índio se salva continentalmente, ou não se salva; como, por outra parte, a América Latina ou se transforma continentalmente, ou não se transforma. Não é um país, é a América Latina toda. A Pátria Grande não é só o folclore, o romantismo literário, os movimentos artísticos. Não. A Pátria Grande é uma realidade. Há esse sistema, que nos pisa a todos, e vai ser uma grande alegria quando surgir uma liberdade que reviva toda esta América Latina.

        Continentalmente, são mais de 50 milhões de índios. E estão sendo feitos pactos amazônicos a favor, não dos pequenos, mas dos grandes senhores, das multinacionais. A Amazônia está se transformando numa reserva multinacional; até as reservas indígenas estão passando para as empresas multinacionais. Os exemplos são muitos.

 

Pedro Casaldáliga, Na Procura do Reino

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#PereCasaldàliga

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

A Justiça e a reconciliação do Brasil

 Marcelo Barros


             No Brasil, mesmo se a maioria da população se manifestou a favor da Democracia, há uma fratura da sanidade social que nenhuma lei pode consertar. Ainda há pessoas que temem o Comunismo como fantasma que aparecesse à luz do sol e como se houvesse risco de nevar na Amazônia.

Essa epidemia de boatos, mentiras e de fabricação de medos e de antagonismos odiosos não é espontânea, nem será desmontada apenas com argumentos racionais. Foi planejada e fabricada para legitimar a destruição do processo social que, nas últimas décadas, a sociedade civil tem conquistado e fortalecido. Ela não será vencida enquanto o Brasil continuar sendo o terceiro país do mundo em desigualdade social.

 No dia 15 de janeiro, o mundo inteiro celebra a memória do nascimento de Martin-Luther King, o pastor negro que, nos anos 1960, nos Estados Unidos, coordenou a luta da população negra pela igualdade social e por seus direitos civis. Enquanto ele vivia, a grande mídia norte-americana tentou destruí-lo de todos os modos possíveis. Depois que foi assassinado, se tornou herói.

Mais de 50 anos depois dessa vitória legal do povo negro, tanto nos Estados Unidos, como na maioria dos países do mundo, a humanidade ainda não eliminou o apartheid social e econômico. Na América Latina, quase sempre, ser negro é sinônimo de ser pobre. A África do Sul superou o apartheid político, mas mantém uma imensa desigualdade racial, baseada na divisão econômica. Com relação a isso, ainda ressoam as palavras do pastor Martin-Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons. Mais do que a violência de poucos, me assusta a omissão de muitos”. Ele explicava: “Uma pessoa que não descobriu nada pela qual aceitaria morrer, não está ainda pronta para viver”.

A memória de profetas como o pastor Martin-Luther King nos assegura que, mesmo com todos os ataques do império, ninguém conseguirá destruir os melhores sonhos dos nossos povos. Mesmo se, infelizmente, nem sempre as religiões têm colaborado para que a humanidade possa realizar o sonho divino de paz e de justiça social, precisamos reforçar os grupos cristãos e de outras tradições espirituais que testemunhem Deus como Amor e não como legitimador do ódio e das violências.  Neste ano de 2023, teremos em julho em Rondonópolis, no Mato Grosso, o XV Encontro nacional das Comunidades Eclesiais de Base e no começo de novembro em Salvador o III Encontro de Juventudes e Espiritualidade Libertadora.

Essa espiritualidade, religiosa ou não, consiste na opção de viver como se estivéssemos ensaiando o futuro que desejamos e assim tornamos realidade o Bem-viver com o qual sonhamos. A Bíblia, outros livros sagrados e as tradições orais das espiritualidades negras e dos povos originários nos revelam um projeto divino de paz, justiça e comunhão entre os seres humanos e com a natureza e nos chamam a viver isso. O pastor Martin-Luther King nos recordava: “Lembremo-nos de que existe no mundo um poder de amor que é capaz de abrir caminho onde não há caminho e de transformar o ontem escuro em um amanhã luminoso”.   

 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Semelhança com Jesus* Morto

 Luiz Carlos Bezerra


 

 

Não é apenas uma semelhança

Entre o corpo de Cristo abandonado

E o povo yanomami sacrificado

Que estão nus da humanidade e da crença

 

A dor do abandono se estende a ambos

Eles  estão cadavéricos - rígidos

Trazem o semblante da dor sofridos

Pois estão putrefatos e  insepultos

 

Quedo-me parado sem natureza

De olhar a foto sem sentir tristeza

Ante a imagem do yanomami morto

 

Se alguém for indiferente aos abusos

E não vir no yanomami, Jesus

Não vera Cristo em nenhum sujeito

 

Rodiadouro - Bonito - PE, 22 de janeiro de 2023.

 

 

* Pensando com o profeta:

 

Isaías 53, 2-3

 

2 Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma terra seca; não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos.

3 Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum.

 

 

#Ajudayanomami

#Foragolpistas

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Merecemos ainda continuar sobre a Terra?

 Leonardo Boff


 

Reparando a situação da humanidade, da Terra viva, de seus ecossitemas, das relações entre as nações se guerreando militar ou economicamente, na África tribos se matando,cortando braços ou pernas, uma superpotência como a Rússia massacrando todo um povo parente, florestas sendo devastadas como na Amazônia e no Congo… Quando acompanho os relatórios científicos de climatólogos dizendo que já passamos o ponto crítico do aquecimento e que não haverá mais retorno e que nem a ciência a tecnologia não nos poderão mais salvar, apenas nos prevenir e finalmente dizem radicalizamos o anntropoceno (o ser humano é a grande ameaça à vida, estamos na sexta extinção de vidas), passamos pelo necroceno (morte em massa de organismos vivos) e chegamos agora ao piroceno (a era do fogo na Terra), talvez a fase mais perigosa para a nossa sobrevivência. Os solos perderam sua umidade, as pedras se superaqueceram e folhas secas e gravetos começam a deslanchar incêndios pavorosos como ocorreu em 2022 em toda a Europa, até na úmida Sibéria, na Austrália, na Califórnia e especialmente na Amazônia. E mais ainda, quando vejo que os chefes de estado e os dirigentes das grandes empresas (CEOs) ocultam tais dados ou não lhes dão importância para não prejudicar os negócios, estão cavando a sua própria sepultura. Pior ainda quando a OXFAM e outros organismos nos mostram que apenas 1% da população mundial controla praticamente todo o fluxo das finanças e que possuem mais riqueza que mais da metade da população mundial (4,7 bilhões) e que no Brasil, segundo a FORBES, 318 bilionários possuem grande parte da riqueza em fábricas, terras,investimentos, em holdings,em bancos etc num país no qual 33 milhões passam fome e 110 milhõe se encontram em insuficiência alimentar(comem hoje e não sabem o que comerão amanha ou depois) e milhões de desempregados ou na pura informalidade, nos vem logo a irrefreável interrogação: nós humanos, somos ainda humanos, ou vivemos na pré-história de nós mesmos, sem termos nos descoberto como co-iguais, habitantes na mesma Casa Comum.

Com todas estas desgraças das quais ele, em grande parte, se fez responsável, merece ainda viver sobre este planeta? Ou a Terra mesma, possui sua estratégia  interna, como o coronavírus revelou: quando uma espécie ameaça demasiadamente todas as outras, ela dá um jeito de diminuir o seu furor ou mesmo eliminá-la para que as outras possam continuar a se desenvolver sobre so solo terrestre.

É nesse contexto que lembro a frase de um dos maiores brasileiros de nossa história, o Betinho que muitas vezes em conferências dizia: o problema maior não é econômico, não é político, não é ideológicos, não é religioso. O problema maior é a falta de sensibilidade do ser humano com para com seu semelhante que está a seu lado. Perdemos a capacidade de termos com-paixão para com quem sofre, de estender a mão a quem pede um pedaço de pão ou um lugar para dormir em época de chuva torrencial.

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A cultura do capital nos fez  individualistas, consumidores e nunca próximos e cidadãos com direitos,muito menos nos concede sentir que somos irmãos e irmãs de fato por termos os mesmos componentes físico-químicos iguais em todos os seres vivos, também nos humanos.

Houve alguém que há mais de dois mil anos passou entre nós nos ensinando a viver o amor, a solidariedade, a compaixão, o respeito e a reverência face à Suprema Realidade, feita de misericórdia e perdão, e, por causa destas verdades radicalmente humanas foi considerado um inimigo das tradições religiosas, um subversivo da ordem ética do tempo e acabou assassinado e levantado no alto da cruz, fora da cidade que era símbolo de maldição e do abandono de Deus. Ele sofreu tudo isso em solidariedade com seus irmãos e irmãs.

Até hoje sua mensagem permanece. Em grande parte foi traída ou espiritualizada para desvitalizar  seu caráter transformador e  mantivesse o mundo assim como está com seus poderes e infernais desigualdades. Mas outros, poucos, seguiram e seguem seus exemplos, sua prática e seu amor incondicional. Muitos desses  por causa disso conhecem o mesmo destino dele: a calúnia, o desprezo e a eliminação física. Mas é por causa desses poucos, creio eu, que Deus ainda se segura e não nos faz desaparecer.

Mesmo com essa crença, diante deste quadro sombrio me vem à mente as palavras do livro do Gênesis:”O Senhor viu o quanto havia crescido a maldade dos seres humanos na terra e como todos os projetos de seus corações tendiam unicamente para o mal. Então o Senhor se arrependeu de ter criado os seres humanos na  terra e ficou com o coração magoado. Então o Senhor disse: vou exterminar da face da terra o ser humano que criei e com ele os animais, os répteis e até as aves do céu, pois estou arrependido de tê-los feito”(Gn 6,5-7).

Estas palavras escritas há mais de 3-4 mil anos atrás parecem descrever a nossa realidade. Colocados no jardim do Éden (a Terra viva) para guardá-lo e cuidá-lo, o ser humano se fez sua maior ameaça. Não bastava ser homicida como Caim, nem etnocida com a exterminação de povos inteiros nas Américas e na África. Fez-se ecocida, devastando e desertificando inteiros ecossistemas. E agora irrompe como biocida, pondo em risco a vida da biosfera e da própria vida humana.

Aqui cabe citar os relatórios cietíficos de uma grande jornalista norte-americana Elzabeth Kolbert. Após escrever o premiado livro “A Sexta Extinção em Massa:um história não natural”, acaba de publicar “O Céu branco:a a natureza do futuro”(ambos pela Intrínseca). Aqui descreve as tentativas desesperadas dos cientistas para evitar o desastre total como efeito do aquecimento global, pois cresce dia a dia; só em 2021 foram lançadas na atmosfera 40 bilhões de toneladas de CO2. Estes cientistas propõe com a geoengenharia bloquear em grande parte o sol para que deixe de aquescer o planeta. O céu ficará branco. Quais seriam tais consequências, especialmente para a biosfera, para a fotosíntese e de tudo o que depende do sol? Por isso essa tecnologia é questionada. Criaria amais problemas do que aquele que quer solucionar.

Termino com a observação de um dos maiores naturalistas Théodore Jacob que escreveu um livro inteiro  exatamente com esse título: “E se a aventura humana vier a falhar”(2000). A base de sua suposição é a terrificante capacidade destrutiva dos seres humanos, pois “eles são capazes de uma conduta insensata e demente; pode-se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniquilação da raça humana”(edição francesa, p.246).

Sou um pessimista esperançado. Pessimista face à realidade perversa sob a qual vivemos e sofremos. Esperançado porque creio que o ser humano pode mudar a partir de uma nova consciência e no Criador que desta crise e eventualmente de uma ruína pode construir ou tipo de seres  humanos, mais fraternos entre si e respeitosos da Casa Comum.

Leonardo Boff eco-teólogo escreveu Habitar a Terra, Vozes 2022 e com Jürgen Moltmann, Há esperança para a Terra ameaçada? Vozes 2014.

 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

RECONSTRUÇÃO SE FAZ COM MOBILIZAÇÃO

Frei Betto


 

       A vitória eleitoral de Lula sinaliza a derrota das forças destrutivas que se apoderaram da administração federal nos últimos quatro anos. Não sei se o lema do novo governo – “União e Reconstrução” – se transformará em fato. União nacional não é tarefa fácil. 

       A cultura bolsonarista, impregnada de ódio, contaminou inúmeras pessoas que se somaram aos 58 milhões de votos recebidos por Bolsonaro no segundo turno. E não há possibilidade de união nacional nessa sociedade injustamente marcada por gritante desigualdade social. 

       Contudo, reconstrução é viável. Lula tem plena consciência do que precisa ser feito. Seus discursos de posse expressam o caráter deste terceiro mandato, onde se destacam três prioridades: combater a fome e a insegurança alimentar; reduzir a desigualdade social; proteger nossos biomas e fortalecer as políticas socioambientais.

       Lula está atento ao que deveria ter sido feito em seus primeiros mandatos e, por força da conjuntura, não aconteceu. Sabe que, agora, é talvez sua última oportunidade de governar o Brasil. Na conversa privada que tivemos no Itamaraty, na noite de 1º de janeiro, eu disse a ele que este é o início de seu penúltimo mandato. Ele sorriu. Estou convencido de que será candidato à reeleição em 2026, aos 81 anos. A quem alega a idade avançada, lembro do cardeal Roncalli, eleito papa João XXIII com 77 anos, em 1958, e com 80 promoveu uma revolução na Igreja Católica ao convocar o Concílio Vaticano II.

       Nos mandatos anteriores, Lula assegurou sua governabilidade pelo modelo “saci-pererê”, apoiada em uma só perna: o Congresso Nacional. Agora sabe que a perna mais importante é a da mobilização popular. Espero que ministros e ministras se deem conta de que apoio popular não se confunde com os 60 milhões de votos recebidos por Lula. Depende de intenso trabalho pedagógico. Não brota do espontaneísmo nem resulta automaticamente das políticas de inclusão social. Feijão não muda automaticamente a razão. 

       Participação cidadã advém de consciência crítica, organização e mobilização. E o governo federal dispõe de amplos recursos para promovê-las, desde poderoso sistema de comunicação à seleção de livros didáticos. Sobretudo valorizar a capacitação política de seus representantes em contato direto com a população, como os 400 mil agentes comunitários de saúde.

       Sem povão não há solução!

 

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

  

Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

PALAVRAS DE PEDRO - VOZ x PLACAS

Dom Pedro Casaldáliga



As grandes Empresas 

já tem suas placas.

Meu canto deve gritar 

o silêncio dos Pobres.

 

Pedro Casaldáliga, Cantigas Menores

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#PereCasaldàliga

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

 


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

BENTO XVI: AS SURPRESAS DE UM PAPA

 

Maria Clara Bingemer


 

     Talvez seja um pouco tardia esta reflexão sobre o Papa Bento XVI já mais de dez dias após sua morte.  Outras preocupações tomam o lugar do tempo do luto mais próximo do falecimento do pontífice que governou a Igreja Católica por oito anos e depois permaneceu em Roma como Papa Emérito até o último dia 31 de dezembro de 2022.  O cenário nacional fervilha com as últimas ameaças à democracia e parece não haver outro assunto.  No entanto, me parece que a figura do falecido é por demais importante para não trazer alguma reflexão sobre sua pessoa. 

   Por isso mesmo, porque tantas coisas importantes – positivas e críticas – foram ditas e escritas, atenho-me ao que foi essencial de meu contato com o teólogo Ratzinger, em cujos livros li e estudei durante minha graduação em Teologia, e com aquele que se tornou sucessor de João Paulo II em 2005.  

    Quando foi anunciada sua eleição pelo cardeal camerlengo em 2005, confesso que tinha sentimentos não muito claros por dentro. Por um lado, compreendia que o conclave o tivesse eleito, era o colaborador mais próximo do papa polonês, o teólogo e pensador refinado, o homem culto que presidia a Pontifícia Comissão para a Doutrina da Fé.  No entanto, pude conhecer de perto igualmente sua atuação à frente desta comissão e minha impressão era de uma certa perplexidade diante de algumas punições e restrições impostas a teólogos que eu conhecia bem de perto e cuja fé profunda e o rigor teológico admirava. Os dois lados se fizeram sentir naquele momento em que a Igreja, após 26 anos do governo de João Paulo II, esperava ventos novos. 

Dos oito anos em  que reinou Bento XVI lembro-me de vários momentos em que surpreendeu positivamente : a reconciliação com a Companhia de Jesus, que havia recebido intervenção do antecessor João Paulo II, coisa que tanto fizera sofrer o querido padre Arrupe; o belo texto da primeira encíclica, Deus caritas est, onde o intelectual refinado que era Bento XVI não temia dialogar inclusive com Nietzche, o filósofo tão crítico do cristianismo; a oração pungente em Auschwitz que se lançava de encontro ao silêncio de Deus.  Haveria outras, muitas mais a mencionar. 

Desejo destacar duas ocasiões que me parecem centrais para compreender por que vejo Bento XVI como alguém surpreendente.

A primeira foi sua vinda ao Brasil para abrir a Conferência de Aparecida, em 2007.  Havia um ambiente de desconforto e temor entre muitos que trabalhavam e participavam do evento.  A Conferência de Santo Domingo, em 1992, havia sido difícil e penosa.  O documento final quase não foi escrito e divulgado.  Graças a circunstâncias várias, entre elas o gênio e a santidade de Dom Luciano Mendes de Almeida, houve um documento com pontos positivos, mas que parecia não levar em conta o sopro profético das conferências de Medellín e Puebla, como a centralidade da opção pelos pobres. Temia-se o que poderia dizer Bento XVI. Se o Papa, no discurso de abertura, pronunciasse uma clara condenação da teologia da libertação, que tinha como centro a opção pelos pobres, seria realmente muito triste para a caminhada da Igreja latino-americana. 

O Papa falou.  Declarou que a fé nos liberta do isolamento e nos conduz à comunhão com Deus e com os irmãos, implicando responsabilidade para com o outro.  E continuou.  Cito literalmente pela importância que reside nesta frase que mudou completamente o panorama da V Conferência, em Aparecida: “Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. 2 Co 8, 9).”

A partir daquele momento encerravam-se as discussões sobre se a opção pelos pobres seria realmente teológica ou, ao contrário, apenas um subproduto de um marxismo mal compreendido. 

A alguns não caiu bem a afirmação do Papa. Chegaram a retirar-se da conferência.   Para muitos de nós que ali estávamos foi uma lufada de ar fresco e uma injeção de ânimo. Aparecida retomou a questão dos pobres, dando-lhe a centralidade devida, e produziu um documento que voltava a trazer esperança para a Igreja do continente. 

Em 2012, encontrava-me em Chicago conversando com o grande amigo e teólogo maior David Tracy.  Meio abruptamente ele me perguntou: “Você acha que o Papa vai renunciar?”  Surpreendida, disse que jamais havia passado por minha cabeça esta ideia.  David me explicou o porquê de suas suspeitas e sua argumentação não me convenceu.   De Chicago viajei a Roma. Fora convidada a apresentar, ao lado do Cardeal Ravasi e de outros teólogos e editores, o livro de Bento XVI sobre a Infância de Jesus.  Após a apresentação, fomos todos  cumprimentar o autor.  Bento XVI nos recebeu sorridente e alegre com o lançamento do livro.  Ao cumprimentá-lo disse-lhe, referindo-me à Jornada Mundial da Juventude que teria lugar no Rio de Janeiro, em julho de 2013: “Nós o esperamos no próximo ano, no Rio.”  Ao que ele respondeu com um meio sorriso: “Se Deus me der saúde...”

No dia 8 de fevereiro de 2013, uma jornalista da Globo News me chamou ao telefone às 8 horas da manhã.  Era segunda feira de Carnaval.  Ouvi do outro lado a seguinte pergunta: “Professora, pode falar algo sobre a renúncia do Papa?” A notícia me deixou perplexa.  Pedi uma hora para inteirar-me e liguei a televisão.  Os olhos do mundo inteiro estavam voltados para Roma e o gesto histórico da renúncia do Pontífice.

O resto é história.  O papa Ratzinger explicou ao mundo as razões de sua renúncia.  À medida que o ouvia e lia, sentia crescendo em mim, juntamente com a surpresa,  admiração por ele.  É muito difícil retirar-se quando se vê que chegou o momento.  O papa bávaro o fez com elegância e firmeza. 

Seu corajoso gesto abriu o caminho para a primavera de Francisco, iniciada pouco mais de um mês depois, em 13 de março de 2013.   Este segue o caminho das surpresas, embora de forma bem diferente de seu antecessor.   Que o Papa Bento descanse em paz e Francisco continue nos surpreendendo ainda por bastante tempo. 

 

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Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de “Santidade: chamado à humanidade” (Editora Paulinas), entre outros livros.

 

Copyright 2023 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

 

Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Dia da “cagada”Nacional*: 08 de janeiro

 


Luis Carlos Bezerra


 

 

A bunda branca cagou na saída

Ao quebrarem o Palácio do Planalto

Na mímese ao Capitólio barato

Contra a democracia consagrada

 

Quando  a Classe média se acha elite

Pensa que é rica e não tem gratidão

Pois é bolsonista de coração

E tem ódio do novo presidente

 

O ódio ao pobre é marca registrada

Saiu das redes e foi a esplanada

Golpear o povo em plena Alvorada

 

Punição sem anistia, procede

Com apuração da atitude covarde

Do ataque terrorista da  manada

 

 

Recife, 08 de janeiro de 2023.

Luiz Carlos Bezerra

 

#Foraterrotistas

#Forabaonistas

#Vivademocracia

#Semaniatia

 

*Dia da cagada Nacional: 08 de janeiro.

Tentativa de golpe  no Brasil, cujo símbolo é a cagada de um terrorista no Planalto. Esta data deve permanecer  na nossa memória para que tentativas de golpear a nossa democracia não se repitam.

sábado, 14 de janeiro de 2023

Eles se recusam a viver juntos: o sentido do golpe demente

 Leonardo Boff


São muitas as interrogações que o golpe frustrado de 8 de janeiro em Brasília, suscita. Estarrecidos,nos perguntamos como podemos ter chegado a esse nível de barbárie a  ponto de destruir os símbolos do governo de uma nação: os três poderes, o executivo,o legislativo e o judiciário? Isso não acontece por acaso. É consequência de fatores histórico-sociais anteriores que se materializaram na vandalização dos três palácios.

Filosoficamente podemos dizer  que a dimensão de  demens (demência, excesso,ausência da justa medida) sufocou  a outra dimensão de sapiens (de racionalidade, de equilíbrio) que sempre a acompanha, pois esta é a condição humana. Ocorre que o demens prevaleceu sobre o sapiens e inundou a consciência de numerosos grupos humanos.

Tal fato mostra o lado perverso da cordialidade descrita por Sérgio Buarque de Holanda quando em Raízes do Brasil(1936) fala do brasileiro como homem cordial. A maioria dos analistas esquece a nota de rodapé que o autor faz ao explicar que cordialidade vem de coração. Neste coração há bondade,bem-querença,hospitalidade. Mas há também ódio, maldade e violência. Ambos tem sua sede no coração dos brasileiros.

O povo brasileiro mostrou a cordialidade nestas duas dimensões, a luminosa e a tenebrosa. Em Brasília desceu o espírito da demência pura, sem qualquer laivo de racionalidade, destruindo os órgãos que representavam a democracia e a república.

Por que irrompeu a demência? Ela é fruto de uma história demente que começou com o genocídio dos povos originários, se implantou a colônia, como uma feitoria, um empresa para fazer dinheiro e não para fundar uma nação. Agravou-se desmedidamente pelos 300 anos de escravismo quando pessoas arrancadas de África foram aqui feitas coisas, animais para o trabalho, escravos submetidos a todo tipo de exploração e violência a ponto que a idade média deles,segundo Darcy Ribeiro, não passar da 22 anos tal era a brutalidade que sofriam. A abolição os jogou ao deus-dará, na rua e na favela sem qualquer compensação. Essa dívida clama aos céus até os dias de hoje.

Terminada a colonização, o povo brasileiro, no dizer do grande historiador mulato Capistrano de Abreu, foi “capado e recapado, sangrado e ressangrado”. Essa lógica não foi abolida pois está presente nos 30 milhões de famintos, nos 110 milhões com insuficiência alimentar e com mais da metade de nossa população  (54% de ascendência africana) pobre vivendo nas periferias das cidades, nas favelas e em condições desumanas.

Os donos do poder, “a elite do atraso”como a denomina pertinentemente Jessé Souza, sempre controlaram o poder político mesmo nas várias fases da república e nos poucos períodos de democracia representativa. As classes endinheiradas fizeram entre si a política de conciliação, jamais de reformas e de inclusão. Logicamente se construíram várias constituições, mas quando foi que elas regularam e limitaram a ganância dos poderosos?

O nosso capitalismo é um dos mais selvagens do mundo, a ponto de Chomsky dizer::”O Brasil é uma espécie de caso especial; raramente vi um país onde elementos da elite têm tanto desprezo e ódio pelos pobres e pelo povo trabalhador”. Ele nunca se deixou civilizar. Mal houve luta de classes porque eles com violência (secundada pelo braço militar) a esmagou impiedosamente.

Tivemos e temos democracia, mas sempre foi frágil e foi e é continuamente  ameaçada, como se viu no vários golpes, contra Vargas, Jango,Dilma Rousseff e no dia 8 de janeiro do corrente ano. Mas ela sempre ressurgiu.

Tudo isso deve ser tomado em consideração para termos um quadro que nos faz entender o recente golpe demente e frustrado. Vale a observação de Veríssimo num twitter: o anti-petismo não é de agora, o anti-povo está no DNA da classe dominante. Ela nunca permitiu que alguém vindo do andar de baixo, subisse a outro,  ocupando o centro do poder, como ocorreu com Lula/Dilma e novamente com Lula em 2023. Fez-lhe todo tipo de oposição e manobras golpistas, apoiadas pelo braço ideológico da grande imprensa corporativa.

Há um outro ponto a ser considerado: a cultura do capital. Ela exacerbou o individualismo, a busca de bem-estar individual ou corporativo, nunca para todo um povo. Tal ethos impregnou a sociedade, os processos de socialização, as escolas, as mentes e os corações das pessoas menos críticas. Todos, de certa forma, somos reféns da cultura do capital pois nos obriga a consumir bens supérfluos se implantou no mundo inteiro, gerando a desgraça planetária, jogando grande parte da humanidade na marginalização e pondo em risco a vida sobre o planeta Terra. Ela criou consumidores e não cidadãos.

A ditadura deste individualismo levou a muitos, a milhares a não quererem viver juntos. Preferem suas Alfa Villes e seus bairros restritos a endinheirados e especuladores. Ora, uma sociedade não existe nem se sustenta sem um pacto social. Ele se expressa por certa ordem social, materializada numa Constituição e nas leis que todos se comprometem a aceitar. Mas tanto a Constituição quanto as leis são continuamente violadas, pois o individualismo solapou o sentido do respeito às leis, às pessoas e à ordem convencionada.

Os que estão por trás da intentona de Brasília, são tais tipos de pessoas que se consideram acima da ordem existente. Há pessoas de todas as classes, mas principalmente,representantes do grande capital. Não esqueçamos do último relatório da Forbes que dava os dados dos opulentos do Brasil: 315 bilionários, grande parte vivendo do rentismo e não da produção de bens de consumo.

O principal fator que criou as condições para este golpe frustrado, foi a atmosfera criada por Jair Bolsonaro que suscitou a dimensão demente em milhões,tomados por ódio, truculência, discriminações de todo tipo e desprezo covarde de pobres e marginalizados. A eles cabe a responsabilidade principal pelo envenenamento de nossa sociedade com traços de desumanidade, regressão a modelos sociais velhistas e não contemporâneos. Nem a religião escapou desta pestilência,especialmente em grupos de igrejas neopentecostais e também em grupo de católicos conservadores e reacionários.

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Graças a rápida determinação dos Ministros do STF e do TSE nomeadamente do ministro Moraes e no caso do golpe a atuação rápida e inteligente do Ministro da Justiça Flávio Dino que convenceu o presidente Lula, face à gravidade da questão, a ordenar uma intervenção federal em termos de segurança no Distrito Federal.Assim, de última hora, se conseguiu abortar um golpe. A estupidez dos invasores das três Casas do Governo e a destruição que lá perpetraram, freou a junta militar que, segundo o plano revelado do golpe, assumiria o poder na forma de uma ditadura com a prisão de todos os ministros, fechamento do Congresso e atos de repressão já conhecidos em nossa história.

Pode a democracia ter seus defeitos e limites,mas é ainda a melhor forma de nos permitir viver juntos, como cidadãos participativos e com garantia de direitos. Sem ela resvalamos fatalmente para a barbárie e a desumanização nas relações pessoais e sociais. Essa democracia tem que ser construída dia a dia, ser cotidiana, aberta a enriquecimentos e a se transformar numa verdadeira cultura permanente.

Leonardo Boff escreveu Brasil:concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018: Habitar a Terra:qual o caminho para a fraternidade universal,  Vozes 2022.