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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

PAULO VI: UMA TESTEMUNHA EM TEMPOS TURBULENTOS



Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio


            A bondade adorável de João XXIII, o carisma de comunicador de João Paulo II, o refinamento cultural de Benedito XVI fazem esquecer, às vezes, uma figura discreta e grande que marcou o século XX: Giovanni Battista Montini, o Papa Paulo VI.

            Giovanni Montini, que escolheu o nome de Paulo para mostrar a sua missão de propagação da mensagem de Cristo, tornou-se papa em 21 de junho de 1963, tendo sido o primeiro líder da Igreja Católica a viajar pelos cinco continentes e o primeiro a conversar com o líder da Igreja Anglicana e com os dirigentes das diversas igrejas ortodoxas orientais. Os que acompanharam seus gestos não esquecem do momento em que ele beijou os pés do Atenágoras, em sinal de amor e unidade. Paulo VI faleceu em 6 de agosto de 1978.

            O papa Paulo VI foi beatificado no último dia 19 de outubro no Vaticano, como parte da cerimônia que encerrou a 3ª Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, cujo tema foi o papel da família. Paulo VI foi o 13º pontífice beatificado pela Igreja Católica.

            Em sua intervenção, o papa Francisco destacou Paulo VI como um homem que conduziu a Igreja com sabedoria e visão de futuro. "Paulo VI, em um momento em que estava surgindo uma sociedade secularizada e hostil, soube conduzir [a Igreja] com sabedoria e visão de futuro", ressaltou, durante a homilia da beatificação.

            Lembro-me de seu rosto angustiado e devorado pelo zelo e pela preocupação com a Igreja que conduzia.  Tocou-lhe o período mais difícil após o Concílio, quando as mudanças realizadas pelo evento conciliar sacudiam a Igreja e ocasionavam defecções entre o clero e crises na vida religiosa masculina e feminina. Os setores mais conservadores da Igreja insurgiam-se, clamavam.  Alguns rezavam pela conversão do Papa, crendo que estava louco.

            O Pontífice, em pé em meio ao vendaval que sacudia a barca de Pedro, sofria e rezava, buscando o rumo melhor a seguir. Mas permanecia fiel em meio à tormenta.  Fiel ao que o Concílio havia decidido. Fiel às novas orientações, necessárias para que acontecesse o indispensável diálogo entre a Igreja e a sociedade secularizada.  Fiel à missão que lhe havia sido confiada.

            Em meio a todas essas vicissitudes, pensou como ninguém a evangelização. São de sua autoria não apenas a encíclica “Humanae Vitae”, que provocou muita comoção entre os leigos e as famílias católicas, com suas orientações sobre os métodos anticoncepcionais, como “Evangelii Nuntiandi”, talvez o melhor documento pontifício jamais escrito sobre a evangelização dentro de um mundo secularizado e autônomo. 

            É dele, em seu parágrafo 4, a frase: “o homem de hoje não escuta mais os mestres.  Escuta as testemunhas.  E se escuta os mestres, é porque são testemunhas”. Ao dizer isso, falava por experiência própria. Pois soube viver sua missão não apenas como quem detém a posse da verdade e a ensina.  Mas como alguém que testemunha apaixonada e abertamente aquilo em que crê.

            O papa Francisco lembrou ainda como Paulo VI definiu o sínodo, uma forma de "adaptar os métodos de apostolado às múltiplas necessidades do tempo e das condições da sociedade".  Ainda segundo Francisco, "Paulo VI soube de verdade dar a Deus o que era de Deus, dedicando toda a sua vida à tarefa de dar continuidade à missão de Cristo na Terra".

            E nós acrescentamos: foi um Papa muito incompreendido em seu tempo, devido às situações ambíguas que devia enfrentar. Soube, porém, ganhar o respeito e a admiração dos fiéis devido à sua coragem e fidelidade.  Que seu exemplo possa inspirar-nos nos tempos turbulentos que vivemos.  A história faz justiça a Paulo VI.  A Igreja também.  Beato Paulo VI, rogai por nós!


   Maria Clara Bingemer é autora, em coautoria, de FINITUDE E MISTÉRIO – MÍSTICA E LITERATURA MODERNA (Editoras Mauad e PUC-Rio). 
 Copyright 2014 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DIA DOS MORTOS



Por Frei Betto
    
      Hoje é dia dos mortos ou finados, daqueles que findaram sua trajetória entre nós. Será, no futuro, o dia de cada um de nós. Quem ousa encarar este destino inelutável?

      O ideal de infinitude fomenta a cultura da imortalidade disseminada pela lucrativa indústria do elixir da eterna juventude: cosméticos, academias de ginástica, livros de autoajuda, cuidados nutricionais, drágeas e produtos naturais que prometem saúde e longevidade. Nada disso é contraindicado, exceto quando levado à obsessão.

      Conto sete amigos com câncer nos últimos anos. Um deles observou: “Outrora, era tabu falar de sexo. Hoje, é falar de morte.” Concordei. Antes, a morte era vista como um fenômeno natural, coroamento inevitável da existência. Hoje, é sinônimo de fracasso, quase vergonha social.

      A morte clandestinizou-se nessa sociedade que incensa a cultura da juventude perene. Sequer se tem o direito de ficar velho. Nós, que já temos acesso ao Estatuto do Idoso, somos tratados por eufemismos que visam a aplacar a “vergonha” da velhice: terceira idade, melhor idade etc. A usar eufemismos, sugiro o mais realista: turma da eterna idade, já que estamos próximos a ela...

      No tempo de meus avós, morria-se em casa, cercado de parentes e amigos. Hoje, morre-se no hospital, um lugar estranho, rodeado de profissionais cujos nomes ignoramos. A agonia é suprimida pelos avanços da ciência - o coma induzido, a medicação contra a dor. Não há choro nem vela nem fita amarela. O rito de passagem – unção dos enfermos, luto, missa de 7º dia, proclamas – está em extinção.

      “Morrer é fechar os olhos para enxergar melhor”, disse José Martí. As religiões têm respostas às situações limites da condição humana, em especial a morte. É um consolo e uma esperança para quem tem fé. Fora do âmbito religioso, entretanto, a morte é um acidente, não uma decorrência normal da condição humana.

      Morre-se abundantemente em filmes e telenovelas, mas não há velório nem enterro. Os personagens são seres descartáveis como as vítimas inclementes do narcotráfico. Ou as figuras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam crianças a matar sem culpa.

      A morte, frisou Sartre, é a mais solitária experiência humana, quebra definitiva do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego no seu contrário: o amor, a comunhão com Deus.

      A morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem adornos de condição social, sobrenomecracia, títulos, propriedades, importância ou conta bancária. É a ruptura de todos os vínculos que nos prendem ao acidental.

      Os místicos a encaram com tranquilidade por exercitarem o desapego frente aos os valores finitos. Cultivam valores infinitos. Fazem da vida dom de si – amor. Por isso, Teresa de Ávila suspirava: “Morro por não morrer.”

      Padre Vieira advertia no Sermão do 1º domingo do Advento, em 1650: “No nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, seremos filhos de nossas obras.” 

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.


terça-feira, 28 de outubro de 2014

PRIMEIRO, ARMAR. DEPOIS, BOMBARDEAR




por Marcelo Barros
 
É assim em nome da segurança. No entanto, parece que, quanto mais se reforça a segurança militar e armada, mais inseguro o mundo se torna. As grandes potências fabricam armas. Vendem-nas a quem oferece preço melhor. Depois, quando esses grupos, armados pelo Ocidente, vão contra os interesses dos governos que os armaram, esses os bombardeiam. Disso, o governo norte-americano tem uma longa experiência. Saddan Hussein, Osana Bin Laden e tantos outros foram armados e custeados pela CIA norte-americana. Depois, o mesmo governo os combateu e eliminou. Até pouco tempo, os EUA financiaram armas para rebeldes sírios. Agora, dizem ter de eliminar o chamado “Estado Islâmico”. Armas e dinheiro norte-americano sustentam o a guerra do Estado de Israel contra o povo palestino. No entanto, de vez em quando o presidente dos Estados Unidos deve fingir que promove a paz. 

É por conhecer tudo isso que, de 24 de outubro até o dia 31, a ONU propõe a humanidade a “semana do desarmamento”.  Conforme o “Termômetro dos Conflitos”, organismo internacional coordenado pela Universidade de Heideberg, no final de 2012, tinham sido registrados no mundo 396 situações de conflitos, dos quais 40 mereceram o nome de “guerras limitadas” e 30 recebem o nome de “guerras internacionais”. 

Existem os países em guerra e outros que se beneficiam economicamente com o mercado da guerra. Logo depois do narcotráfico e das drogas, o maior e mais lucrativo negócio do mundo é a guerra. O cálculo de despesas militares provocado pelo mercado de armas e pelas guerras chega a quase dois bilhões de dólares. O Instituto de Pesquisa para a Paz em Estocolmo calcula que, se os gastos militares em um ano fossem divididos pelo número de habitantes, 300 dólares teria sido a quantia que, durante o ano de 2013, cada habitante do planeta Terra teria destinado para despesas militares. Em função da indústria de armas, existe a ciência da guerra. Técnicos e cientistas devem, a cada dia, atualizar e sofisticar mais as armas químicas, biológicas e operacionais. Atualmente, o governo dos Estados Unidos já tem prontos os chamados “robôs assassinos”. Eles irão aos campos de guerra no lugar dos soldados americanos. Serão teleguiados por satélite. Poderão matar impunemente e não poderão ser presos. São máquinas dotadas de velocidade, perfeita visão da realidade e capacidade de matar. De acordo com notícias internacionais, a China, a Rússia, Israel e a Inglaterra já se candidatam para receberem esses soldados para as novas guerras do século XXI. Se a realidade dos combates é assim tão atualizado, as consequências humanas não mudam. Conforme a UNICEF, mais de um bilhão de crianças e adolescentes vivem em cenários de guerra. Entre esses, 300 milhões têm menos de cinco anos de idade. 

Quando pensamos nessa tragédia das guerras no mundo, um fato que pouca gente conhece e que deveria nos escandalizar mais do que qualquer outra coisa é que, segundo uma pesquisa feita por institutos europeus, publicada na revista Mosaico di Pace, dezembro de 2013, as atuais guerras têm como motivação primeira questões econômicas e em segundo lugar, divisões religiosas. Isso significa que, até hoje, as religiões que deveriam ser instrumentos de paz e canteiros de uma cultura de amor e diálogo ainda servem de pretexto e de justificativa para que povos e grupos humanos se combatam uns aos outros. 

Essa realidade deve levar todas as religiões e tradições espirituais a uma profunda revisão da forma como falam de Deus e como expressam o seu caminho de comunhão com a divindade.   

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.  

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

PARA ENTENDER A VITÓRIA DE DILMA ROUSSEFF



Por Leonardo Boff

Nestas eleições presidenciais, os brasileiros e brasileiras se confrontaram com uma cena bíblica, testemunhada no salmo número um: tinha que escolher entre dois caminhos: um que representa o acerto e a felicidade possível e outro, o desacerto e infelicidade evitável.

Criaram-se todas as condições para uma tempestade perfeita com distorções e difamações, difundidas na grande imprensa e nas redes sociais, especialmente uma revista que ofendeu gravemente a ética jornalística, social e pesssoal publicando falsidades para prejudicar a candidata Dilma Rousseff. Atrás dela se albergam as elites mais atrasadas que se empenham antes em defender seus privilégios que universalizar os direitos pessoais e sociais.

Face a estas adversidades, a Presidenta Dilma ao ter passado pelas torturas nos porões dos órgãos de repressão da ditadura militar, fortaleceu sua identidade, cresceu em determinação e acumulou energias para enfrentar qualquer embate. Mostrou-se como é: uma mulher corajosa e valente. Ela transmite confiança, virtude fundamental para um político. Mostra inteireza e não tolera malfeitos. Isso gera no eleitor ou eleitora o sentimento de “sentir firmeza”.

Sua vitória se deve em grande parte à militância que saiu às ruas e organizou grandes manifestações. O povo mostrou que amadureceu na sua consciência política e soube, biblicamente, escolher o caminho que lhe parecia mais acertado votando em Dilma. Ela saiu vitoriosa com mais de 51% dos votos.

Ele já conhecia os dois caminhos. Um, ensaiado por oito anos, fez crescer economicamente o Brasil mas transferiu a maior parte dos benefícios aos já beneficiados à custa do arrocho salarial, do desemprego e da pobreza das grandes maiorias. Fazia políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres. O Brasil fez-se um sócio menor e subalterno ao grande projeto global, hegemonizado pelos países opulentos e militaristas. Esse não era o projeto de um país soberano, ciente de suas riquezas humanas, culturais, ecológicas e digno de um povo que se orgulha de sua mestiçagem e que se enriquece com todas as diferenças.

O povo percorreu também o outro caminho, o do acerto e da felicidade posssível. Neste ele teve centralidade. Um de seus filhos, sobrevivente da grande tribulação, Luiz Inácio Lula da Silva, conseguiu com políticas públicas, voltadas aos humilhados e ofendidos de nossa história, que uma Argentina inteira fosse incluída na sociedade moderna. Dilma Rousseff levou avante, aprofundou e expandiu estas políticas com medidas democratizantes como o Pronatec, o Pro-Uni, as cotas nas universidades para os estudantes vindos da escola pública e não dos colégios particulares; as cotas para aqueles cujos avós vieram dos porões da escravidão assim como todos os programas sociais do Bolsa Família, o Luz para Todos, a Minha Casa, minha Vida, o Mais Médicos entre outros.

A questão de fundo de nosso país está sendo equacionada: garantir a todos mas principalmente aos pobres o acesso aos bens da vida, superar a espantosa desigualdade e criar mediante a educação oportunidades aos pequenos para que possam crescer, se desenvolver e se humanizar como cidadãos ativos.

Esse projeto despertou o senso de soberania do Brasil, projetou-o no cenário mundial como uma posição independente, cobrando uma nova ordem mundial, na qual a humanidade se descobrisse como humanidade, habitando a mesma Casa Comum.

O desafio para a Presidenta Dilma não é só consolidar o que já deu certo e corrigir defeitos mas inaugurar um novo ciclo de exercício do poder que signifique um salto de qualidade em todas as esferas da vida social. Pouco se conseguirá se não houver uma reforma política que elimine de vez as bases da corrupção e que permita um avanço da democracia representativa com a incorporação da democracia participativa, com conselhos, audiências públicas, com a consulta aos movimentos sociais e outras instituições da sociedade civil. É urgente uma reforma tributária para que tenha mais equidade e ajude a suplantar a abissal desigualdade social. Fundamentalmente a educação e a saúde estarão no centro das preocupações desse novo ciclo. Um povo ignorante e doente não pode dar nunca um salto rumo a um patamar mais alto de vida. A questão do saneamento básico, da mobilidade urbana (85% de população vive nas cidades) com transporte minimamente digno, a segurança e o combate à criminalidade são imperativos impostos pela sociedade e que a Presidenta se obrigará a atender.

Ela nos debates apresentou um leque significativo de transformações a que se propôs. Pela seriedade e sentido de eficácia que sempre mostrou, podemos confiar que acontecerão.

Há questões que mal foram acenadas nos debates: a importância da reforma agrária moderna que fixa o camponês no campo com todas as vantagens que a ciência propiciou. Importa ainda demarcar e homologar as terras indígenas, muitas ameaçadas pelo avanço do agronegócio.

Por último e talvez o maior dos desafios nos vem do campo da ecologia. Severas ameaças pairam sobre o futuro da vida e de nossa civilização, seja pela máquina de morte já criada que pode eliminar por várias vezes toda a vida e as consequências desastrosas do aquecimento global. Se chegar o aquecimento abrupto, como inteiras sociedades científicas alertam, a vida que conhecemos talvez não possa subsistir e grande parte da humanidade será letalmente afetada. O Brasil por sua riqueza ecológica é fundamental para o equilíbrio do planeta crucificado. Um novo governo Dilma não poderá adiar esta questão que é de vida ou morte para a nossa espécie humana.

Que o Espírito de sabedoria e de cuidado oriente as decisões difíceis que a Presidenta Dilma Rousseff deverá tomar.



Leonardo Boff escreveu Hospitalidade: direito e dever de todos, Vozes, Petrópolis 2005.

 É filósofo e teólogo, escritor, assessor do projeto Cultivando Agua Boa da Itaipu Binacional  e um dos co-redatores da Carta da Terra