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sexta-feira, 24 de março de 2017

A HUMANIDADE AMEAÇADA POR GUERRAS LETAIS





Por Leonardo Boff

Nós no Brasil conhecemos grande violência social, com um número de assassinatos dos mais altos do mundo. Não gozamos de paz pois há muita raiva, ódio, discriminação e perversa desigualdade social.
No entanto, estamos à margem dos grandes conflitos bélicos que se travam em 40 lugares no mundo, alguns que podem degenerar numa guerra nuclear como na Ucrânia e na Síria ameaçando o futuro da espécie humana. Estamos em plena nova guerra fria entre os USA, China e Rússia. Reintroduziu-se uma retomada na corrida armamentista na Rússia sob Putin e nos USA sob Trump com a produção de armas nucleares ainda mais potentes como se as já existentes não pudessem destruir toda a vida do planeta.

O mais grave é que a potência hegemônica, os USA, se transformou num Estado terrorista, levando uma guerra impiedosa contra todo tipo de terrorismo, exteriormente invadindo países do Oriente Médio e interiormente caçando imigrantes ilegais e prendendo suspeitos sem respeito aos direitos fundamentais, em consequência do “ato patriótico” imposto por Bush Jr que suspendeu o habeas corpus, ato não abolido por Obama como havia prometido.

Francisco, o bispo de Roma, retornando da Polônia disse no avião no dia 12 de julho de 2016: ”há guerra de interesses, há guerra por dinheiro, há guerra por recursos naturais, há guerra pelo domínio dos povos: esta é a guerra. Alguém poderia pensar: “está falando de guerra de religiões. Não. Todas as religiões querem a paz. As guerras querem-nas os outros. Capito”? É uma crítica direta à atual ordem mundial, da acumulação ilimitada à custa dos bens e serviços escassos da Terra e dos países explorados. Todos falam de liberdade, mas sem justiça social mundial. Ironicamente poder-se-ia dizer: é a liberdade das raposas livres num galinheiro de galinhas livres.

Comentaristas da situação mundial, pouco referidos em nossa imprensa, falam de um real risco de uma guerra nuclear seja entre a Rússia e os USA ou entre a China e os USA.

Trump no dizer do intelectual francês Bernard-Henri Lévy (O Globo 5/3/216) afirma que “Trump é uma catástrofe para os EUA e para o mundo. E também uma ameaça”. De Putin, no mesmo jornal, afirma: ”é uma ameaça explícita. Sabemos que quer desestabilizar a Europa, acentuar a crise das democracias e que apoia e financia todos os partidos de extrema direita. Sabemos também que em todos os lugares em que se trava a batalha entre a barbárie e a civilização, como na Síria e na Ucrânia, está do lado errado. Aí está uma verdadeira e grande ameaça”.

Segundo Moniz Bandeira em seu grandioso “A desordem mundial”, Putin quer se vingar da humilhação que o Ocidente e os USA submeteram seu país no final da guerra fria. Alimenta pretensões claramente expansionistas, não no sentido de refazer a antiga URSS mas os limites da Rússia histórica. O risco de um confronto nuclear com o Ocidente não é excluído.

Estamos perdendo a consciência dos apelos dos grande nomes dos meados dos século passado como os de Bertrand Russel junto com Albert Einstein de 10 de julho de 1955 e uns dias após a 15 de julho de 1955 secundado por 18 prêmios Nobeis entre os quais Otto Hahn e Werner Heisenberg que afirmaram: ”com horror vemos que este tipo de ciência atômica colocou nas mãos da humanidade, o instrumento de sua própria destruição”. O mesmo afirmaram 85 Nobeis presentes na cúpula dos povos durante a Rio -92.

Se naquele tempo a situação se apresentava grave, hoje ela é dramática. Pois além das armas nucleares, estão disponíveis armas químicas e biológicas que também podem dizimar a espécie humana.

Supõem alguns analistas dos conflitos mundiais que o próximo passo do terrorismo não seria mais com bombas e homens-bomba mas com armas químicas e biológicas, algumas tomadas da reserva bélica deixada por Kadaphi.

Na raíz deste sistema de violência está o paradigma ocidental da vontade de potência , vale dizer, uma forma de organizar a sociedade e a relação para com a natureza na base da força, da violência e da subjugação. Esse paradigma privilegia a força no lugar do diálogo e a concorrência à custa da solidariedade. Ao invés de fazer dos cidadãos sócios, os faz rivais e até inimigos entre si.

A esse paradigma do punho cerrado se impõe a mão estendida em função de uma aliança para a salvaguarda da vida; ao poder-dominação, há que prevalecer o cuidado que pertence à essência do ser humano e de todo o vivente. Ou fazemos esta travessia, ou assistiremos cenários dramáticos, fruto da irracionalidade e da prepotência dos chefes de Estado e de seus falcões.

Leonardo Boff é articulista do JB online e escereu: A grande transformação, Vozes 2014.

quinta-feira, 23 de março de 2017

E AGORA, JOSÉ?




Por Frei Betto



     São José merece duas festas no ano litúrgico: 19 ou 20 de março, dependendo do lugar, e 1º de maio, celebração de São José Operário. Pouco se sabe do homem que criou Jesus. Evangelhos e textos apócrifos registram que ele exercia a profissão de operário da construção civil, era viúvo e pai de vários filhos antes de se unir a Maria.

      No português, seu ofício foi resumido para carpinteiro. Ora, José não trabalhava apenas com madeira. Também com cantaria, pedras. Sabia construir uma casa feita dos dois materiais.

      Há indícios de que José trabalhou em Séforis, antiga capital da Galileia, distante a apenas 7km de Nazaré, onde morava. Talvez tenha também participado da edificação da nova capital, Tiberíades, às margens do lago de Genesaré. Foi construída por ordem do governador Herodes Antipas, o mesmo que degolou João Batista e a quem Jesus qualificou de “raposa” (Lucas 13, 32). Recebeu o nome de Tiberíades em homenagem ao imperador Tibério César, sob cujo reinado Jesus nasceu, viveu e morreu executado na cruz.

      Detalhe curioso é que os evangelhos registram o périplo de Jesus e seus discípulos por cidades e povoados às margens do lago também conhecido como Mar da Galileia, e nenhuma vez se noticia que ele teria entrado em Tiberíades. No entanto, esteve várias vezes em cidades muito próximas, como Cafarnaum e Magdala. Supõe-se que rejeitava a cidade por ter, quando jovem, ajudado seu pai nas edificações suntuosas da nova capital.

      De José, sabemos que namorou Maria, que apareceu grávida quando ainda não se haviam casados. E agora, José? Foi sofrido para ele suportar tamanha surpresa. Poderia tê-la denunciado por adultério. Se o fizesse, Maria não teria como se defender. Tal direito era negado às mulheres, e ela poderia receber sentença de morte por apedrejamento, como a adúltera cuja vida Jesus salvou no momento extremo (João 8, 1-11).

      Por amor a Maria, José preferiu abandoná-la. Porém, Deus o fez entender, na fé, que a gravidez era obra do Espírito Santo.
      Deus entrou na história humana pela porta dos fundos. Escolheu uma simples camponesa e um operário como sua família. Habitavam uma aldeia tão insignificante, Nazaré, que jamais é citada no Antigo Testamento. Não abrigava mais de 400 habitantes.

      José descendia “da casa de Davi” (Lucas 1, 27), ou seja, tinha família em Belém. Segundo os relatos evangélicos, um recenseamento o fez subir de Nazaré a Belém para ali se inscrever. Seus familiares o rejeitaram. Como aceitá-lo, se não estava casado conforme as leis judaicas e se fazia acompanhar por uma jovem grávida?

      Na iminência do parto, o casal buscou abrigo ao ocupar uma propriedade rural. Tomou uma choça como casa e um cocho como berço, cercado de animais e estrume.

      Deus se insere na história humana pela via dos oprimidos. Não conhecemos a reação do dono da propriedade, se fez vista grossa ou se deixou de enxotar o casal ao constatar que a moça tinha o ventre muito dilatado.

      Ali nasceu Jesus, como hoje nascem crianças em acampamentos de sem-terra, campos de refugiados, abrigos de moradores de rua, prisões e localidades bombardeadas pela guerra.

      O rei Herodes, que governava a Palestina, conhecia a profecia de Isaías de que o Messias, esperado pelos judeus, haveria de nascer em Belém. E chegou-lhe aos ouvidos que isso acabara de ocorrer. Tratou de enviar uma tropa a Belém e, segundo o evangelista Mateus, todos os bebês da cidade de Davi foram passados ao fio da espada. Contudo, José e Maria já haviam partido com o menino para o exílio no Egito, de onde retornaram após a morte de Herodes.

      Sem exageros, a Jesus, Deus feito homem no qual nós cristãos cremos e procuramos seguir, se aplicam atributos que envergonham abastados e presunçosos: filho de uma suposta adúltera; de um casal de trabalhadores manuais; de vítimas da tirania; de excluídos do núcleo familiar; de refugiados e exilados.
      Alguma dúvida de que Deus, como enfatiza o papa Francisco, fez opção pelos condenados da Terra?

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
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quarta-feira, 22 de março de 2017

A LEITURA BÍBLICA NA IMINÊNCIA DE TSUNAMIS



por Eduardo Hoornaert



Neste momento estão se formando, no alto oceano das tendências históricas, diversos tsumanis que sacudirão fortemente as praias da leitura bíblica num futuro ainda não definido. Desde já constituem uma ameaça à leitura tradicional da Bíblia, tal qual é praticada em inúmeras comunidades cristãs ao redor do mundo. São agitações de diversos tipos, como aquelas provenientes da exacerbação de um tipo de leitura bíblica longamente praticado pelas igrejas históricas: a leitura fundamentalista. Há igualmente agitações que provêm de estudos bíblicos científicos e são essas que pretendo comentar aqui. De qualquer modo, a curto ou médio prazo, a questão de uma leitura bíblica em consonância com os tempos em que vivemos há de figurar na agenda daquelas igrejas que se preocupam com o modo em que seus fiéis leem a Bíblia.

Proponho apresentar aqui duas ‘ondas’ do ‘tsunami científico’, uma que atinge os campos da leitura do Antigo Testamento e outra que toca as praias do Novo Testamento. Ambas são formadas pela conjugação de duas ciências que tiveram intensa evolução nos últimos cinquenta anos (do Concílio Vaticano II para cá): a ‘nova arqueologia bíblica’ e a ciência linguística (veja Manfredo de Oliveira, Reviravolta linguística, Loyola, São Paulo, 1996) que está reformulando nossos conhecimentos sobre Jesus de Nazaré, por exemplo. Vejamos esses dois pontos.

1. O Antigo Testamento: Israel é realmente o Povo Eleito de Deus?

Até uns cinquenta anos atrás, as escavações realizadas em sítios mencionados na Bíblia serviam basicamente para provar que ‘a Bíblia tinha razão’ (como reza o título do famoso livro de Werner Keller, 1956). Elas costumavam ser financiadas por instituições religiosas ou pelo Estado de Israel. Mas nos últimos anos, a arqueologia bíblica ganhou autonomia: é a chamada ‘nova arqueologia’, que encontra uma de suas expressões mais conhecidas no livro ‘A Bíblia não tinha razão’, do arqueólogo judeu Israel Finkelstein (Editora Girafa de São Paulo, 2003). O título original do livro reza: ‘A Bíblia desenterrada’. A terra, exaustivamente escavada (por vezes em mais de dez estratos, como no caso dos sítios arqueológicos em Jericó, por exemplo), nos ensina a história dos povos bíblicos. Sua autoridade excede a dos textos escritos por não ficar sujeita a imaginações. Há de se acrescentar a capacidade sempre maior de se entender línguas antigas desde muito desaparecidas. Quando se encontram ‘óstracos’ (pedaços de antigos vasos ou jarros quebrados) com palavras gravadas, a agitação em todos os campos de escavação é geral. Esses pequenos pedaços de barro ganham uma autoridade impressionante. Essa nova autoridade ‘arqueológica’ é um tsunami, pois em muitos casos contradiz o que se lê na Bíblia e isso faz com que Finkelstein chega a declarar: ‘a Bíblia é um magnífico produto da imaginação humana’. Não tem nada a ver com a história real.

Dou uns exemplos.  A Bíblia conta, no Livro Êxodo, que, numa data indeterminada entre os séculos XV e XIII aC, um contingente enorme de hebreus fugitivos da escravidão no Egito (aproximadamente 600.000 pessoas) teria cruzado o deserto do Sinai durante quarenta anos, para finalmente alcançar a Terra que lhes fora prometida por Ihwh, a terra de Canaã. Os canaanitas, antigos habitantes, teriam sido exterminados ou subjugados, a cidade de Jericó conquistada, assim como povoados mencionados na Bíblia, como Bersheba e Edom. Ora, entre os documentos (escritos ou gravados em pedra) do Egito, não se encontra nenhuma referência a alguma transmigração populacional dessa amplitude. E vale lembrar que as crônicas do antigo Egito são renomadas pela cobertura exaustiva de sua história. Como não se encontrou no deserto do Sinai nenhum traço da passagem de uma multidão tão grande (restos de acampamentos, etc.)? E como entender que as terras escavadas em Jericó, Besheba e Edom (jarros, vasos, ‘óstracos’, estatuetas, objetos de uso doméstico e agrário) só revelam sinais de épocas posteriores àquelas assinaladas em textos bíblicos?

O que acabo de escrever é particularmente importante em relação aos relatos bíblicos acerca dos reinados de Davi e Salomão, que costumam ser datados por volta do ano 1000. Ora, os primeiros testemunhos arqueológicos de uma grande monarquia se referem aos anos 900 a 800, pelo menos cem anos depois. No tempo de Davi, Jerusalém era uma pequena aldeia sem importância e seu modesto santuário era igual a muitos outros da época. A grandeza vem mais tarde, durante a dinastia dos Anri e particularmente no tempo de Ezequias (726-697). Não se trata aqui de duvidar da existência de Davi e Salomão, mas de investigar suas reais jurisdições. Ora, a crer os resultados de escavações, elas foram provavelmente muito restritas. Em vez de um grande reino unido (o Israel dos textos), havia dois reinos, um no Norte (chamado Israel) e um no Sul (chamado Judá). A exaltação de um Israel unido e poderoso, com seu Templo em Jerusalém, no reinado de Davi, é uma construção ao mesmo tempo teológica (Ihwh reina) e política (Davi reina), uma construção literária dirigida contra o poder estrangeiro, notadamente o poder da Assíria. Na medida em que a saga de Davi foi se espalhando, muitos vieram morar em Jerusalém para viver perto do grande santuário, mas tiveram de pagar um preço alto: aceitar a dinastia davídica autoritária e a soberania sacerdotal do Templo de Jerusalém.

Seria possível multiplicar os exemplos. Basta dizer que, com a nova arqueologia, cai o mito do ‘povo eleito’, de um ‘povo de Deus’ diferente dos demais, guiado por Ihwh. Cai o mito de Abraão e dos patriarcas, a história da conquista de Canaã pelos Israelitas. Aparece um povo hebreu comum, cuja história é igual à dos demais povos da região e da época. Os israelitas não vieram de fora, sempre viveram na Palestina, não são um povo imigrante, liderado por Ihwh. Como os demais povos, sua história é feita do chão de cada dia, da luta pela sobrevivência. Com isso estamos fora do ‘grande relato’, que se inicia com a história de Adão e Eva e só termina com a ‘consumação dos séculos’, fora do universo das ‘grandes verdades’.

Eis como um estudioso insuspeito, o jesuíta francês Joseph Moingt, se expressa: ‘obras muito recentes colocaram em questão o conjunto da historiografia bíblica e autores muito sérios falam abertamente da invenção da Bíblia, incluso do povo judeu’ (Moingt, J., Croire quand même, Temps Présent, Paris, 2011. Veja também, do mesmo escritor : Faire bouger l'Église catholique, Desclée de Brouwer, Paris, 2012).

2. O Novo Testamento: Jesus de Nazaré é realmente o Ungido de Deus?

Eu mesmo trabalhei em detalhes uma análise da figura de Jesus em meu livro ‘Em busca de Jesus de Nazaré: uma análise literária’, publicado pela Editora Paulus de São Paulo em 2016. Aqui apenas assinalo o contraste entre o Jesus que nos é apresentado tradicionalmente e o Jesus que nos vem, ‘como um tsunami’, a derrubar verdades longamente aceitas. Recorro ao artigo ‘Un nuevo paradigma em arqueologia?’, da autoria de José Maria Vigil (Revista Alternativas, Manágua, 22, n. 49, janeiro-junho 2016, 61-90). 

O Jesus tradicional é ‘Deus mesmo em pessoa, que, na plenitude dos tempos, se encarnou no povo eleito por Deus desde Abraão, para levar à plenitude a revelação realizada na Primeira Aliança entre Deus e seu povo. Ao longo de sua vida pública, esse Messias, Ungido por Deus, pregou o evangelho da salvação e fundou pessoalmente a Igreja, estabelecendo-a sobre Pedro e os apóstolos. Executado pelos romanos, ressuscitou no terceiro dia, conforme as Escrituras, como tinha predito, e depois subiu ao céu, de onde enviou o Espírito Santo em Pentecostes, que cuida da veracidade e do crescimento da Igreja, que goza da promessa que as portas do inferno não prevalecerão sobre ela, até o final dos tempos’ (art. cit. 74).

Que contraste com o que uma análise literária dos evangelhos nos informa acerca de Jesus! Podemos resumir a nova imagem de Jesus nas seguintes palavras: ‘Jesus não se proclamou a si mesmo como Messias (Cristo) e até recusou que o chamassem como tal. Nunca pensou ser Deus, igual ao Pai do Céu, da forma em que o Evangelho tardio de João (por volta do ano 100) o apresenta. Jesus não pregou a si mesmo, mas falou do Reino de Deus e do empoderamento concedido por Deus aos menos afortunados, os empobrecidos, os impuros, os que eram social e religiosamente marginalizados. Conclamou a uma conversão radical no sentido de uma vida de justiça e misericórdia’ (art. cit. 69).   

3. Esse tsunami científico é maléfico ou benéfico?


O impacto do tsunami científico sobre a leitura bíblica só pode ser avaliado corretamente quando se toma em conta o tsunami fundamentalista. É contra esse último tsunami que as igrejas têm de erguer urgentemente um dique seguro, pois ele ameaça inundar completamente os campos cristãos. Em contraste, o tsunami científico pode ser benéfico e até saudável. Claro, a leitura científica da Bíblia é de difícil assimilação, pois ela dá a impressão de derrubar santuários onde nos sentíamos tão bem (seguindo o exemplo de nossos pais) e de passar por cima de ideias que nos foram transmitidas com tanto carinho. Quando a ciência nos diz que a Bíblia ‘não tem razão’, temos de recordar que aqui não se trata de ‘ter razão’, mas de ‘ter alma, ter espírito’. Uma boa reação diante do tsunami científico me parece ser formulada por Joseph Moingt quando escreve ‘crer mesmo assim’ (‘croire quand même’). É verdade: a Bíblia é uma construção imaginária, a maior e a mais longeva de todas as construções imaginárias da cultura ocidental. Atravessou os séculos e perdura até hoje, não por causa de seu valor histórico, mas pelos valores éticos que expressa: o amor ao próximo, o perdão, o acolhimento, a fraternidade, a misericórdia, a fé, a esperança, o universalismo, a sensibilidade pelos marginalizados e doentes. Há, decerto, passagens na Bíblia que contradizem essas posturas. Pois a Bíblia não é palavra de Deus, mas palavra humana acerca de Deus (Schillebeeckx). Ela participa da incongruência e provisoriedade inerentes a toda palavra humana. Mas não se pode deixar de admirar a fé consistente que perpassa a literatura bíblica. Há quem situa a redação da Bíblia numa época (o século VII aC) em que o mundo inteiro parecia sacudido por impulsos humanitários, agitado por um fermento espiritual poderoso. É impressionante verificar que figuras como Confúcio na China (550-480 aC), Buda na Índia (560-480), Zaratustra no Irã (final do século VIII), os filósofos iônios na Grécia e os grandes profetas hebreus (Ezequiel, Isaías, Jeremias) surgem aproximadamente na mesma época. Há quem fala aqui em ‘época axial’ e sugere que nós estejamos atualmente passando por uma nova ‘época axial’, em que todas as verdades recebidas são questionadas e aparecem novos impulsos (veja Zygmunt Bauman com o conceito de ‘liquidez’). Não podemos senão ficar impressionadas(os) pela criatividade espiritual do povo hebreu que conseguiu expressar por narrativas originais questões e desafios que nos atingem hoje e dar-lhes um cunho ético inconfundível, diferente da literatura dinástica, guerreira e violenta, endêmica em tantas culturas. Nenhuma literatura fala dos pobres como fala a Bíblia. Isso, por si só, já basta para ‘crer apesar de tudo’. 

terça-feira, 21 de março de 2017

"UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA"



Por Marcelo Barros

No Rio de Janeiro, a Portela, escola de samba, campeã do Carnaval de 2017, ganhou o troféu de vencedora com o samba-enredo "Foi um rio que passou em minha vida. O meu coração se deixou levar". A partir dessa homenagem a Paulinho da Viola, autor do samba clássico que tem esse título, a escola falou dos rios do Brasil e do encanto de suas águas e da necessidade de defendermos as bacias hídricas, hoje ameaçadas. De fato, a imagem usada pelo clássico samba-canção pode se tornar uma verdade literal a ser dita por brasileiros de norte a sul do país: Se não fizermos algo para mudar a realidade, os rios brasileiros passarão. Deixarão de ser reais. Segundo se conta, há 300 anos, pescadores encontraram uma imagem de Nossa Senhora Aparecida no fundo do rio Pa raíba do Sul. Hoje esse rio está tão seco e esquecido que não tem pescadores e nem fundo para esconder nenhuma imagem sagrada. O Rio São Francisco, antigamente rio da integração nacional, hoje está moribundo e resistindo com dificuldade a mais de cinco anos de seca. Desse modo, estão praticamente todos os rios brasileiros.
Nessa quarta-feira, 22, a ONU celebra mais um dia internacional da água. Em vários países, devido à urgência do problema, as reflexões e eventos sobre esse dia ocupam toda essa semana. De fato, estamos em situação de risco. O sistema de vida no planeta Terra está ameaçado e a água se torna o bem mais precioso. Hoje, 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável, e 2,4 bilhão de pessoas não contam com saneamento básico. Cada ano, seis milhões de pobres, dos quais quatro milhões de crianças, morrem de enfermidades ligadas a águas contaminadas. Até o ano 2025, conforme um estudo da ONU, esse problema afetará metade da humanidade.
Há diversos motivos para esta crise. O planeta Terra tem 75% de sua superfície ocupada por oceanos, mas a água doce representa apenas 2,5% deste total. No último século, a população mundial aumentou muito e na maioria dos países, a urbanização se fez de modo descontrolado. Toda a população da humanidade se concentra ao redor das 217 bacias fluviais internacionais que irrigam o planeta. Por causa do crescimento demográfico e da poluição, nos últimos 30 anos, os recursos hídricos foram reduzidos em 40%. Da água disponível que tínhamos, a humanidade acabou com 5000 Km2. E muitos, ainda se comportam como se a água fosse um bem inesgotável. Usam os recursos hídricos de modo irresponsável e injusto.
A água é um recurso natural limitado e pode acabar. Tem valor econômico e competitivo no mercado. Não pode ser desperdiçada (cada vez que se toma um banho com chuveiro aberto durante todo o tempo desperdiça-se mais água do que se usa). Quase todos os países atualizam legislações sobre a água. Em vários lugares, por causa da água, há conflitos entre povos. Há quem diga que as guerras do futuro serão provocadas pela carência ou pelo domínio da água. Organizações não Governamentais e movimentos populares defendem que a água não deve ser mercantilizada – ela é mais do que uma mercadoria. Mais grave ainda seria privatizá-la, o que está ocorrendo em vários países, inclusive em várias regiões do Brasil.
A Pastoral da Terra declara: “A água é constitutiva do ser humano. É necessária à vida como um todo e ao meio ambiente. Por isso, ela é um direito natural, patrimônio da humanidade, dádiva divina e não obra humana. Por isso, ela não pode ser reduzida a uma mercadoria e a um bem particular. Nenhum ser humano pode arrogar a si o poder de negar a qualquer semelhante ou ser vivo este bem essencial à vida”.
O cuidado com a água tem, então, motivos sociais e econômicos. Mas, a nossa relação com a água só mudará se aprendermos com as culturas religiosas antigas a nos relacionarmos com a terra e com a água de forma amorosa e espiritual. A Bíblia fala da água como símbolo do Espírito de Deus que derrama sobre o universo uma vida nova. Cuidar bem da água e defender os rios e fontes é uma forma de reconhecer a presença divina no universo, defender a vida e participar da Páscoa pela qual Deus “renova todas as coisas” (Ap 21, 5)[1]. No sul do Chile, Dom Luiz Infanti, bispo de Iassen, escreveu uma carta cujo título, nós todos podemos orar parafraseando o Pai Nosso: "A água nossa de cada dia, nos dai hoje".

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.    








[1] - Quem quiser aprofundar mais este assunto, leia o livro: MARCELO BARROS, O Espírito vem pelas Águas, Ed. Loyola, Rede, 2003.