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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

TURISMO EM CUBA

 Por Frei Betto


      Retornei a Cuba em meados de outubro para receber o título de DoutorHonoris Causa em Filosofia, da Universidade de Havana, fundada pelos frades dominicanos em 1728.

      Com o reatamento das relações diplomáticas entre EUA e Cuba, graças à mediação do papa Francisco, a ilha caribenha passa por mudanças significativas. 

      O país recebeu, ano passado, 3 milhões de turistas. Uma vergonha para o Brasil, se considerarmos que o nosso país, 64 vezes maior, dispõe de um potencial turístico equivalente ao seu tamanho e recebe apenas 6 milhões de turistas por ano.

      Cuba tem política turística, o que não temos. Nosso turismo gira em torno do lazer (praias e Carnaval). Lá, além do lazer, se exploram turismos científico, cultural e ecológico. E pensar que abrigamos a Amazônia...

      A previsão é de que a reaproximação dos EUA deverá dobrar o número de turistas nos próximos anos: 6 milhões. Metade virá dos EUA, que ainda hoje proíbe a seus cidadãos o turismo individual a Cuba. Por incrível que pareça, um estadunidense pode comprar, numa agência de viagens, um pacote turístico para ir a Coreia do Norte ou Irã. Não para Cuba. O bloqueio, que ainda vigora, impõe uma série de restrições aos ianques. Por enquanto, a eles só é permitido visitar Cuba em grupos de idosos ou por razões de tratamento médico e interesses cultural, científico ou religioso.

      Findo o bloqueio, acredita-se que haverá uma avalanche de estadunidenses na ilha caribenha. Sobretudo por razões de saúde. A ilha oferece tratamentos a baixo custo e tem expertises em ortopedia, oncologia, dermatologia e outras especialidades. Em 2012, o turismo de saúde atendeu 8.500 pacientes, o que representou uma arrecadação de US$ 24 milhões.

      O país está preparado para a avalanche estadunidense? Não. Precisa ampliar sua malha hoteleira, já melhorada por investimentos espanhóis, canadenses e ingleses. Toda propriedade de grande porte é em parceria público privada: 49% capital estrangeiro e 51% Estado cubano.

      Um dos entraves a resolver é a existência de duas moedas: o CUC para turistas e o CUP para cubanos. O primeiro vale 25 vezes mais do que o segundo. Esse foi um recurso para enxugar o mercado negro de dólares, já que entram no país, vindo de cubanos residentes nos EUA, US$ 1 bilhão ao ano.

      Porém, fez crescer a desigualdade social entre os cidadãos com acesso ao CUC, em especial os que trabalham no setor turístico, e os demais, embora tais diferenças ainda não produzam moradores de rua, máfias de drogas, crianças fora da escola e dificuldade de acesso à saúde e educação – que são gratuitas e de qualidade.

      O que será de Cuba quando for suspenso o bloqueio imposto pelo Congresso dos EUA? Para a maioria dos cubanos e a Igreja Católica presente no país, nem pensar em retornar ao capitalismo. Não querem que o futuro de Cuba seja o presente de Honduras ou Guatemala. Para a Revolução, o desafio é aprimorar o socialismo, flexibilizando a economia estatizada.

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens aos países socialistas” (Rocco), entre outros livros.
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terça-feira, 27 de outubro de 2015

SEMEAR RESSURREIÇÃO

Por Marcelo Barros


No calendário de comemorações da Igreja Católica, outubro é considerado mês das missões. Houve épocas em que a missão era compreendida como tarefa de conquistar novos adeptos. Atualmente, cada vez mais um número maior de cristãos compreende que a missão de toda Igreja, discípula de Jesus, é inserir-se na realidade do mundo para testemunhar o projeto divino. E uma Igreja inserida na vida do povo deve ajudar toda pessoa humana, religiosa ou não, cristã, budista ou do Candomblé a descobrir e aprofundar que está no mundo para uma missão de amor e de solidariedade. O Evangelho de Jesus é a boa notícia de que Deus tem um programa a ser realizado no mundo e esse projeto começa a acontecer através de toda pessoa de boa vontade. Nessa perspectiva, evangelizar não significa ensinar uma doutrina, menos ainda converter alguém a uma determinada Igreja. É colaborar para que o projeto divino (o reino) possa se manifestar em todas as ações de justiça, fraternidade e paz. O reinado divino não depende da ação humana, mas Deus quis manifestá-lo através de nós. Os cristãos não podem fazer isso como quem é dono da verdade e precisasse convencer o outro de uma doutrina religiosa. O importante é valorizar os sinais da presença e da atuação divina na vida das pessoas que encontramos, nas realidades concretas do mundo e no caminho das outras religiões com as quais somos chamados/as por Deus a conviver.  

Infelizmente, há cristãos que ainda pensam que têm o monopólio de Deus. Como se Deus tivesse assinado um contrato de exclusividade com algum grupo ou religião.  Para esses, é bom recordar as narrações dos  evangelhos: uma vez os discípulos contaram ao Mestre que tinham encontrado alguém que expulsava o mal das pessoas. Eles proibiram porque a tal pessoa não pertencia ao grupo deles. Jesus os repreendeu dizendo: “Não façam isso. Quem não está contra nós é porque está do nosso lado” (Cf. Lc 9, 49- 50). Os evangelhos mostram Jesus em diálogo com uma mulher samaritana. Dizem que ele curou o filho ou empregado de um oficial romano e a filha de uma cananeia, seguidora de outra religião. Nunca discriminou ou excluiu ninguém.

Atualmente, na sua encíclica sobre o cuidado com a Terra, nossa casa comum, o papa Francisco propõe que formemos uma aliança de toda a humanidade em favor da terra e do ambiente. Nessa caminhada em comum para salvar a Terra e a natureza, as religiões precisam se dar conta de que não basta proclamar que a natureza sinaliza a presença divina ou que a criação é contínua e tem sempre por trás de cada ser vivo um olhar carinhoso de Deus. É preciso mais do que tudo se organizar e se articular para defender essa visão contra um sistema social e econômico que é essencialmente depredador. Dentro da cultura e do modelo econômico capitalista, é impossível uma verdadeira Ecologia. Nesse sentido, foi um ganho fundamental, o papa Francisco ter centrado sua posição sobre a crise ambiental na crítica ao sistema econômico mundial e ter mostrado que somente uma Ecologia integral pode ser solução para a crise atual (Laudatum sii, cap. IV, n. 137 ss).

Para salvar a integridade da vida no planeta, é urgente deter esse modelo de desenvolvimento, essencialmente, antiecológico e, ao mesmo tempo, garantir à toda população pobre o acesso “à Terra, ao trabalho e ao teto”, como o papa reclamou nos seus dois encontros com os representantes dos movimentos sociais. Em um mundo que sofre a ameaça de profundos desequilíbrios climáticos e ambientais, a missão mais urgente de todas as religiões é se integrarem na caminhada da sociedade civil e dos movimentos e organizações sociais em uma ação combinada. Essa aliança em favor do planeta tem sido sugerida por diversos cientistas e atualmente pelo papa.

 Dentro desse caminho comum, cabe às religiões algumas tarefas próprias e importantes, como, por exemplo, restaurar a dignidade da Política. A maioria de nós concorda que “a hegemonia da Economia sobre a Política, no decorrer dos últimos 30 anos, foi uma catástrofe. Quando essa situação tornou-se incontrolável e sem saída, na crise de 2008, as empresas recorreram de novo à Política. Mas, que tipo de Política?”. É preciso unir todas as pessoas de boa vontade e grupos articulados da sociedade civil para “democratizar a democracia”, ou seja, possibilitar uma verdadeira participação das bases nos processos sociais e políticos. Monsenhor Oscar Romero, arcebispo mártir de El Salvador, afirmava que a verdadeira política tem de ser baseada no cuidado com o bem comum e contar com a participação de todos os cidadãos”.

Ao insistir que a Igreja deve sempre colocar “em saída”, isso é, em uma atitude de serviço ao mundo, o papa sabe que só essa postura de amor poderá trazer às comunidades cristãs uma nova vitalidade. Como disse Jesus no evangelho: “quem quiser poupar a sua vida, acaba perdendo-a e quem arrisca a perder a sua vida (na doação aos outros) a salvará” (Mt 16, 25). Há poucos dias, um amigo comum esteve em São Félix do Araguaia e visitou o nosso querido profeta, o bispo Pedro Casaldáliga. Na conversa em comum, lhe perguntou: Como os cristãos devem compreender sua missão, hoje, no mundo? O profeta Pedro respondeu: “A missão de quem é cristão e das Igrejas é semear ressurreição”.   

  Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.




segunda-feira, 26 de outubro de 2015

EM ENERGIA LIMPA O BRASIL BRILHA NA EXPO-MILÃO 2015


Por Leonardo Boff


Desde 1851 se fazem exposições internacionais sobre agricultura e alimentação com o propósito de demonstrar os avanços tecnológicos na área. Mas com a crise mundial do aquecimento global, com a  escassez de água doce e com os mais de 800 milhões de famintos no mundo, a atual exposição realizada em Milão de 1 de maio a 31 de outubro mudou de foco com o título Alimentar o planeta – Energia para a vida. Num imenso espaço com pavilhões diferenciados e tecnologicamente inovadores  estavam presente 145 países.

Sabemos que todo o sistema agroalimentar se move entre duas direções opostas: a dos grandes oligopólios que usam as tecnologias mais avançadas e agrotóxicos para a produção em massa que é posta como um objeto de mercado à mercê da especulação, o que exclui milhões sem capacidade financeira de acesso aos  alimentos. Estes continuam na fome, também naquela chamada ”fome oculta” que afeta dois bilhões de pessoas que é a falta de micro-nutrientes, vitaminas e minerais.

A outra tendência, bem menor mas crescente, é da agroecologia que busca a segurança alimentar a partir da agricultura familiar e das cooperativas ecológicas cuja produção se rege pela sintonia com a natureza, envolvendo milhares de movimentos como no Brasil os Sem Terra (MST) e a Via Campesina, fundada em 1993. Esta articula cerca de 150 organizações nacionais e internacionais envolvendo cerca de 200 milhões de sócios. Para estas, o alimento é um bem de vida e não uma mercadoria para o puro lucro das empresas.

A Expo-Milão 2015 se propôs reforçar esta segunda tendência ao apoiar  as culinárias tradicionais de cada país, novos estilos de alimentação saudável, garantindo a qualidade e a segurança alimentar. Isso signfica “alimentar o planeta”.

Outra magna questão é a da “Energia para a vida”,  pois sem energia se paralisam as sociedades. Usam-se todos os tipos de energia, grande parte poluente e não renovável. Neste campo, brilhou a apresentação do caso do Brasil. A situação foi apresentada magnificamente pelo diretor-geral da Itaipu Binacional que representava também o Ministério de Minas e Energia, Jorge Samek. 

Revelou que 66% da matriz elétrica brasileira, limpa e renovável, vem da hidreletricidade. Além da eólica crescente e da solar, destaca-se a geração de energia a partir da biomassa, passando de 4.193 MW em 2008 para 12.415 MW em 2015, um aumento de 196%.

Não menos brilhante foi a apresentação do projeto “Cultivando Água Boa” da própria Itaipu-Binacional, pelo seu diretor Nelton Friedrich com sua notória vivacidade que a todos encantou. Criado em 2003, o projeto não se baseia em investimentos da hidrelétrica mas na participação, nas parcerias com as comunidades, prefeituras e órgãos públicos dos 29 municípios que compõem a Bacia do Paraná 3 que abriga mais de um milhão de pessoas. Aplicou os princípios da Carta da Terra e das Metas do Milênio da ONU de forma a abranger toda a população, organizando mais de 20 programas e 65 ações que comportam desde o  plantio de milhões de mudas de plantas nativas, a manutenção das matas ciliares, o desenvolvimento rural sustentável, a produção de energia a partir da biomassa até a inclusão de todos os estratos sociais, acompanhados por milhares de educadores ambientais.

O projeto ganhou vários prêmios internacionais, especialmente aquele da ONU, em março de 2015, como “a melhor prática de gestão hídrica do mundo”. Outros países como Guatemala, República Dominicana, Bolívia, Argentina, Uruguai e Paraguai se dispõem a replicar  este projeto. Itaipu-Binacional não produz apenas energia elétrica mas também energia humana, civilizatória e antecipadora do novo.

Como assessor, coube-me comentar as apresentações. Afirmei com convicção que a hidrelétrica de Itaipu-Binacional se inscreve na vanguarda da reflexão e da prática ecológica mundial. Ao invés do globalismo, ela optou pelo bioregionalismo que significa criar um modo sustentável de vida para todos a partir dos bens e serviços do ecossistema regional. Libertou a categoria da “sustentabilidade” que havia sido sequestrada pelo desenvolvimento de viés capitalista, linear e criador de desigualdade e alargou a abrangência da categoria sustentabilidade para as áreas da natureza, da sociedade, da educação, da produção, da cultura e até da espiritualidade, gerando uma rede de relações harmoniosas. Ensaia uma prática orientada pelo novo paradigma contemporâneo que põe tudo em relação no interior do imenso processo da cosmogênese.

Feito notável do “Cultivando Água Boa” foi ter inaugurado um vasto processo de inclusão da população, resgatando indígenas e quilombolas com seus valores e tradições, incentivando as culinárias tradicionais, o cultivo de ervas medicianais, criando imensa reserva florestal, as escolas técnicas e um Centro de Saberes e Sabores e  uma Universidadade, UNILA, aberta a todos os latino-americanos, entre outras iniciativas que ultrapassam esse espaço.

Estamos no coração de uma profunda crise do sistema-vida e do sistema-Terra. Como enfatizou o diretor-geral Jorge Samek estamos fazendo o certo que evita o fim do mundo. Pode acabar este tipo de mundo anti-vida e anti-Terra, mas para dar lugar a uma outra forma de habitar a Casa Comum, gestar uma biocivilização e uma Terra da Boa Esperança. A Carta de Milão que esposa esses valores foi subscrita pela representação brasileira. Junto com a encíclica do Papa Francisco “o cuidado da Casa Comum” estará entre as  referências teóricas para o projeto “Cultivando Água Boa”.

Itaipu-Binacional mostra que o sonho de un novo mundo não é vazio mas já agora uma feliz e bem sucedida antecipação.


Leonardo Boff é colunista do JB on line teólogo, filósofo e escritor.

domingo, 25 de outubro de 2015

AS CRISES DA NOSSA ÉPOCA III


Por Maria Clara Bingemer 



Nossa época vive certamente uma crise religiosa. A sede por transcendência e espiritualidade que se detecta hoje em dia, na contemporaneidade pós-moderna que vivemos, tem, no entanto, contornos muito diferentes daquilo que seria o campo religioso pré-moderno. A crise da modernidade e o advento da chamada própria ou impropriamente pós-modernidade resgatou o absoluto que a modernidade pretendeu banir e extinguir, com as profecias dos mestres da suspeita: Freud, Marx e Nietzche. Mas trata-se de um absoluto sem rosto e sem contornos definidos e precisos.  Ou seja, sem a espessura da instituição.

O ser humano que viveu a crise da modernidade, ou que já nasceu no seu clímax, e nada agora em águas pós-modernas, é como um «peregrino» que caminha por entre os meandros das diferentes propostas que compõem o campo religioso, não tendo problemas em passar de uma para outra, ou mesmo de fazer a sua própria composição religiosa com elementos de uma e outra proposta. Ou até mesmo de declarar-se sem religião, mas não sem fé, como diz  recente pesquisa sobre as novas formas de crer ou mesmo o censo brasileiro de 2010. É diferente do adepto da religião institucional, que adere a uma só religião e nela permanece, ou mesmo do ateu ou agnóstico, que nega a pertença e a crença em qualquer religião.

Fica evidente que, para muitas pessoas, o fato de não estar vinculados institucionalmente a  uma religião não significa descrença ou ausência de uma determinada religiosidade ou contato com a Transcendência. Por outro lado, a simples não frequência à Igreja faz com que os indivíduos se declarem sem religião. Muitas vezes, essas pessoas mantêm ou preservam algumas práticas da sua religião anterior, embora se afastem da instituição como um todo. Esse processo de autonomização, diante da declaração de pertença, pode ser motivado pelo pluralismo religioso.

Desse modo, em um país onde as pessoas se inserem em cada vez mais numerosas pertenças, parece ocorrer uma pressão social que força o indivíduo a posicionar-se nesse campo. Juntamente com isto, há um movimento simultâneo de rejeição e procura das instituições religiosas, além de uma concepção geral de que a crença prescinde da instituição e pode ser reformulada, com frequência, de acordo com o contexto de vida de cada pessoa e das suas necessidades subjetivas. É possível constatar que não há um necessário processo de descrença numa dimensão transcendental, mas sim um movimento eruptivo de busca da experiência religiosa, que pode ocorrer também por meio das instituições, mas não exclusivamente por meio delas.

Ser sem religião não se traduz necessariamente em descrença ou niilismo, mas muitas vezes na busca de outras fontes promotoras de paz, bem-estar e equilíbrio, primando por valores universais que são compartilhados pelas religiões, mas que as ultrapassam e transpõem e não se reduzem às suas fronteiras e limites. Entre a configuração dos motivos de ser religioso sem religião está a exacerbação do eu. Ou seja, a necessidade existencial de procurar a própria fórmula do sentido para a vida, sem conectá-la com um grupo, agremiação ou instituição. Parece haver cada vez mais pessoas que creem em Deus, mas não se sentem à vontade na instituição, buscando, então, o seu próprio caminho para encontrar a transcendência pela qual aspiram.

Nessa busca por transcendência e vivência espiritual, Deus é um conceito basilar de todos os sistemas religiosos e não deixa de sê-lo nesta nossa época onde a religião sofre radicais reconfigurações.  A existência de um Ser Superior dá sentido ao mundo em geral e, em particular, à vida humana.  A autêntica questão transcendente com a qual todo ser humano um dia se depara é a deste mistério último e derradeiro que, por um lado, concede sentido à vida e, por outro, coloca em crise todos os sentidos previamente dados ao existir. 

 Apesar de todas as crises, Deus continua a ser a questão que remete ao mistério último e ao sentido definitivo da vida e do ser, pela qual os seres humanos se sentem atraídos ou pelo menos intrigados.  E muitas vezes instigados.

Nossa época legou às novas gerações muitas ruínas.  Entre elas as das formas tradicionais de crer e de celebrar a crença em Deus. Não se pode esquecer, porém, que foi em meio aos escombros de diversas catástrofes na história da humanidade que místicos e poetas de todas as tradições vivenciaram e captaram a presença amorosa que os habita e impulsiona a anunciar e construir tempos novos.
Em meio à destruição ocasionada pelas diversas crises, inclusive em meio às crises religiosas, o ser humano é convidado e mesmo convocado a encontrar a Deus não “por causa” do positivo que encontra no mundo e na existência.  Mas “apesar” do absurdo tenebroso e do caos que lhe encobre o horizonte de sentido e o faz duvidar do princípio-esperança.  É aí que se pode dar a busca autêntica por Deus.

  Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

A teóloga é autora de FINITUDE E MISTÉRIO – MÍSTICA E LITERATURA MODERNA (coautoria - Editoras Mauad e PUC-Rio)“O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco e de  “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 



  Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 22 de outubro de 2015

TENSÕES NO SÍNODO DA FAMÍLIA

Por Frei Betto



       Não se devem esperar grandes avanços na doutrina católica por parte do Sínodo da Família, que se encerra no próximo domingo. O tema central, a família, é espinhoso para os 270 padres sinodais reunidos em Roma, pois engloba questões consideradas, há séculos, tabus para a cúpula da Igreja Católica: divórcio, homossexualidade, uso de preservativo etc.

       O papa Francisco difere de seus dois últimos antecessores por ter a coragem de pôr o dedo na ferida. E o faz com um olhar misericordioso para com os gays e aqueles que, fracassados no matrimônio, contraem segundas núpcias.

       Sua atitude suscita, no seio da Igreja, fortes reações contrárias. Ouvi de um bispo que “enquanto Bento XVI estiver vivo, meu papa é ele”. Na Espanha, católicos conservadores se atrevem a fazer por Francisco esta oração: “Senhor, ilumina-o ou elimina-o”.

       Na véspera da abertura do sínodo, 13 cardeais (7 europeus, 3 estadunidenses, 2 africanos e 1 da Oceania) expressaram, em carta ao papa, agora vazada por um vaticanista conservador, temer que ele manipule os trabalhos de modo a produzir um documento final, sem levar em conta a opinião da maioria dos padres sinodais.

       Francisco é um monarca absoluto. Juridicamente não está sujeito a nenhuma instância, exceto o juízo divino. Poderia impor normas e doutrinas aos católicos sem consultar senão a sua consciência, como fizeram papas anteriores. No entanto, decidiu adotar um comportamento que pode ser considerado democrático. Por isso convocou o sínodo. Quer ouvir as bases.

       Em reação à carta dos 13 conservadores, na abertura do evento o papa se referiu “à hermenêutica conspiratória”, denunciando-a como “sociologicamente mais frágil” e “teologicamente mais fragmentadora”. Deu um basta à mentalidade que enxerga tramas e complôs por toda parte.

       Conceder aos católicos divorciados e recasados o direito de receber a comunhão ou eucaristia foi o tema que prevaleceu nos debates sinodais. Reinhard Marx, cardeal de Munique, se posicionou favorável. “Quando a vida conjugal em um casamento canonicamente válido fracassou definitivamente, e o matrimônio não pode ser anulado (...), mas existe a vontade de viver a segunda relação na fé, educando os filhos na fé, então se deve permitir o acesso à eucaristia”, disse ele. Questionou também se as relações sexuais na nova união podem ser consideradas adultério, como reza o preceito vigente na Igreja Católica.

       Um prelado mexicano, cujo nome não foi divulgado, manifestou-se a favor do cardeal Marx ao contar o caso do menino que, filho de casal separado, comparecia toda semana à catequese levado pelo pai ou pela mãe. No dia da Primeira Eucaristia, o garoto, ao receber a hóstia em mãos, repartiu-a em três e, após tirar um pedaço para si, deu metade para a mãe e a outra ao pai.

       O sínodo reflete a tensão crucial da Igreja, a contradição entre o peso das leis canônicas e as exigências dos preceitos evangélicos. Como considerar adúltero o novo casamento, se o próprio Jesus perdoou a mulher acusada de adultério? Como banir da comunidade de fé alguém que, sendo homossexual, sinceramente se abre ao amor infinito de Deus?

       O sínodo tratou também do “martírio silencioso” sofrido pelas vítimas de violência no interior do núcleo familiar, incesto e abusos sexuais. Francisco tem manifestado o mea-culpa da Igreja diante dos casos de pedofilia, bem como exigido rigorosa punição dos criminosos.

       O fato é que a Igreja se encontra frente a um dilema: ceder à moral burguesa que dissocia sexo e amor, e enquadrar o primeiro no moralismo farisaico, ou focar a sexualidade como expressão do amor  que une Pai, Filho e Espírito Santo e, portanto, prioriza a espiritualidade e relega a genitalidade a segundo plano.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
      


terça-feira, 20 de outubro de 2015

NA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA POLÍTICA

Por Marcelo Barros


Nesses dias, o Brasil se debate em uma violenta onda de ódio. A elite nacional e os grandes meios de comunicação tudo fazem para que, além de derrubarem um governo frágil e autista, o próprio exercício da Política caia em descrédito geral. Enquanto isso, a ONU celebra o 70o aniversário de sua fundação (24 de outubro de 1965), com atividades contra o armamentismo e em favor da paz. A ONU cumpre a importante missão de zelar para que a sociedade internacional seja impregnada de valores fundamentais como o respeito à dignidade de todos os seres humanos, a supremacia da justiça, a consciência ecológica e a abertura à diversidade cultural e religiosa. Grande parte da humanidade apoia a ONU, mas sonha com um organismo mundial que abranja não somente governos, mas também uma representação legítima da sociedade civil internacional. Só uma organização internacional que reúna Estados e representantes das organizações civis terá força para exigir das grandes potências respeito pelas leis e decisões internacionais. Somente um organismo assim poderá intervir para que o governo de Israel pare de massacrar o povo palestino. E proíba os países ricos de estabelecer leis agrícolas protecionistas que destroem a economia dos países africanos. Através da FAO, a ONU reconheceu que a Venezuela superou o analfabetismo e em todo o país está superada a fome e a desnutrição. Por que, então, não se coloca decididamente a favor dos governos e dos povos da Bolívia, Venezuela e Equador que enfrentam o imperialismo e refazem o sonho da integração e da libertação?

Os organismos da ONU mostram que, se os alimentos produzidos no mundo e a riqueza que existe, fossem repartidos de forma mais justa, daria para alimentar toda a humanidade e garantir saúde e vida digna para todos. No entanto, a riqueza está cada vez mais concentrada nas mãos de uma pequena elite e a sobrevivência da imensa maioria de pobres tem sido, cada dia, mais difícil e exigente.

A UNICEF adverte que, por causa dessa organização injusta da sociedade, a cada ano, 40 a 60 milhões de pessoas morrem de fome ou de doenças ligadas à desnutrição. Mais de um bilhão de crianças vive abaixo do nível da pobreza. Mesmo o Brasil que, em 12 anos, conseguiu tirar milhões de pessoas da miséria, a realidade das aldeias indígenas e das comunidades remanescentes de Quilombo é dramática e terrível. Conforme cálculos do Banco Mundial, com 40 bilhões de dólares, se poderia resolver todo o problema da fome e da saúde dos pobres do mundo. Ora somente, em um ano, os Estados Unidos gastam mais de um bilhão de dólares em armas para as guerras que mantêm no mundo. Ao mesmo tempo, a sociedade dominante que provoca as guerras contra os povos pobres, fecha suas fronteiras aos migrantes que tentam sobreviver ao extermínio e decreta que o destino deles deve ser a morte em seus países ou o fundo do mar nas portas das ilhas de luxo do primeiro mundo. 

A maioria das pessoas que pensam percebe que a hegemonia e o controle exercido pela Economia sobre a Política, no decorrer dos últimos 30 anos, foi uma catástrofe para o mundo. Quando, na crise de 2008, a situação tornou-se incontrolável e sem saída, as empresas recorreram de novo à Política. Mas, que tipo de Política?”. Na encíclica sobre o cuidado com a Terra, nossa casa comum, o papa Francisco pondera: “A política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje, precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente a serviço da vida, especialmente da vida humana” (L. S., 189).

É preciso unir todas as pessoas de boa vontade e grupos articulados da sociedade civil para “democratizar a democracia”, ou seja, elaborar um novo modelo de Política, efetivamente, centrado no bem comum. Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, martirizado em 1980, propunha um retorno ao que ele chamava  de “grande Política”. Em meio à crise política em que estamos mergulhados, as pessoas que creem em Deus e em seu projeto para o mundo devem ser testemunhas de que todo sofrimento e decepção podem se transformar em dores de parto através das quais podemos gerar uma realidade nova que nos ajude a viver o projeto divino de paz e justiça para esse mundo.
  
 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

CUIDAR E RESPEITAR O VALOR INTRÍNSECO DE CADA SER


Por Leonardo Boff


A esplêndida encíclica do Papa Francisco “sobre o cuidado da Casa Comum” insiste  continuamente que cada ser, por menor que seja, possui valor intrínseco e tem algo a nos dizer, ademais de estar sempre interconectado com todos os demais seres. Por isso merece respeito e cuidado de nossa parte.

Estes pensamentos nos remetem ao pensador que melhor no Ocidente pensou o ilimitado respeito a tudo o que existe e vive: o médico suíço Albert Schweitzer (1875-1965). Era oriundo da Alsácia. Desde cedo apresentou traços de genialidade. Tornou-se famoso exegeta bíblico com vasta obra especialmente sobre questões ligadas à possibilidade ou não de se fazer uma biografia científica de Jesus. Era também um exímio organista e concertista das obras de Bach e compositor. Foi grande a minha emoção quando visitei a sua casa e o órgão que tocava em Kaysersberg.

Em consequência de seus estudos sobre a mensagem de Jesus, especialmente do Sermão da Montanha, com sua centralidade no pobre e no oprimido, resolveu abandonar tudo e estudar medicina. Em 1913 foi para a África como médico em Lambarene, no atual Gabun, exatamente para aquelas regiões que foram dominadas e exploradas furiosamente pelos colonizadores europeus. Diz explicitamente, numa carta, que “o que precisamos não é enviar para lá missionários que queiram converter os africanos, mas pessoas que se disponham a fazer para os pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuam algum valor. Se o Cristianismo não realizar isso, perdeu seu sentido”.

E continua: “depois de ter refletido muito, isso ficou claro para mim: minha vida não é nem a ciência nem a arte, mas tornar-me um simples ser humano que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena que seja”(A. Schweitzer, Wie wir überleben können, 1994 p. 25-26).

Em seu hospital no interior da floresta tropical, entre um atendimento e outro de doentes, tinha tempo para refletir sobre os destinos da cultura e da humanidade. Considerava a falta de uma ética humanitária como a crise maior da cultura moderna. Dedicou anos no estudo das questões éticas que ganharam corpo em vários livros, sendo o principal deles O respeito diante da vida (Ehrfurcht vor dem LebenI edição de 1996).

Tudo em sua ética gira ao redor do respeito, da veneração, da compaixão, da responsabilidade e do cuidado para com todos os seres, especialmente, com aqueles que mais sofrem.

Ponto de partida para Schweitzer é o dado primário de nossa existência, a vontade de viver que se expressa:”Eu sou vida que quer viver no meio de vidas que querem viver”(Wie wir überleben können: 73). À vontade de poder (Wille zur Macht) de Nietzsche, Schweitzer contrapõe a vontade de viver (Wille zum Leben). E continua :”A ideia-chave do bem consiste em conservar a vida, desenvolvê-la e elevá-la ao seu máximo valor; o mal consiste em destruir a vida, prejudicá-la e impedi-la de se desenvolver. Este é o princípio necessário, universal e absoluto da ética”(op. cit. p. 52 e 73).

Para Schweitzer, as éticas vigentes são incompletas porque tratam apenas dos comportamentos dos seres humanos face a outros seres humanos e esquecem de incluir todas as formas de vida que se nos apresentam. O Papa em sua encíclica faz uma rigorosa crítica a este antropocentrismo (nn. 115-121). O respeito que devemos à vida “engloba tudo o que significa amor, doação, compaixão, solidariedade e partilha”(op. cit. 53).

Numa palavra: “a ética é a responsabilidade ilimitada por tudo  que existe e vive” (Wie wir überleben, p. 52 e Was sollen wir tun p. 29).
Como a nossa vida é vida com outras vidas, a ética do respeito à vida deverá ser sempre um con-viver e um con-sofrer (miterleben und miterleiden) com os outros. Numa formulação suscinta afirma :”Tu deves viver convivendo e conservando a vida, este é o maior dos mandamentos na sua forma mais elementar”(Was sollen wir tun?.op. cit. p. 26).

Dai derivam comportamentos de grande compaixão e cuidado. Interpelando cada ouvinte numa homilia conclama: “Mantenha teus olhos abertos para não perder a ocasião de ser um salvador. Não passe ao largo, inconsciente, do pequeno inseto que se debate na água e corre risco de se afogar. Tome um pauzinho e retire-o da água, enxugue-lhe as asinhas e experimente a maravilha de ter salvo uma vida e a felicidade de ter agido a cargo e em nome do Todo-poderoso. O verme que se perdeu na estrada dura e seca e que não pode fazer o seu buraco, retire-o e coloque-o no meio da grama. ‘O que fizerdes a um desses mais pequenos foi a mim que o fizestes’. Esta palavra de Jesus não vale apenas para nós humanos mas também para as mais pequenas das criaturas”(Was sollen wir tun, op.cit. p. 55).

A ética do respeito e do cuidado de Albert Schweitzer une inteligência emocional, cordial e inteligência racional, num esforço de tornar a ética um caminho de salvaguarda de todas as coisas e de resgate do valor que elas possuem em si mesmas. O maior inimigo desta ética é o embotamento da sensibilidade, a inconsciência e a ignorância que fazem perder  de vista o dom da existência e a excelência da vida em todas as suas formas.

O ser humano é chamado a ser o guardião de cada ser vivo. Ao realizar esta missão, ele alcança o grau maior de sua humanidade. E se sentirá pertencendo a um Todo maior, superando a falta de enraizamento e a solidão dos filhos da modernidade.

Leonardo Boff é colunista do JB on line teólogo, filósofo e escritor.


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

AS CRISES DA NOSSA ÉPOCA II


Por Maria Clara Lucchetti 



Há outra crise da nossa época que parece aumentar e bate à nossa porta todos os dias.  Trata-se de uma profunda crise ética. Embora a palavra seja uma das mais usadas hoje em dia e encontremos comitês de ética em todas as instâncias das instituições públicas e privadas, trata-se de uma ética que não obedece ao paradigma que acompanha a humanidade desde a Antiguidade, aquela que propõe um sistema de valores que configura a vida.

Nas épocas pré-modernas, a Moral era teológica, ou seja, a Moral era Deus, sendo a fé atribuidora da virtude. Assim, o homem estava a serviço de Deus, e não da humanidade, a qual ficava em segundo plano. Com a chegada da Modernidade, foi desencadeado um processo de desvinculação moral da religião, constituindo-se como um ponto marcante no desenvolvimento secularizador. O indivíduo passa a ser o valor soberano da Ética laica secularizada. Nesse contexto, o direito, e não o dever, encontra-se na posição absoluta e preponderante.

Na chamada pós ou tardo-modernidade, com a crise produzida pela razão moderna e suas consequências, há uma mudança do papel do dever, com o seu gradual enfraquecimento impositivo. O filósofo francês Gilles Lipovetsky reflete sobre isso, procurando mostrar a passagem para uma sociedade pós-moralista na contemporaneidade:

Na era pós-moralista, o que campeia é uma demanda social por justos limites, um senso calculista do dever, algumas leis específicas para defender os direitos de cada um - jamais, o espírito de fundamentalismo moral. Pleiteamos, claro, o respeito à ética, contanto que isso não demande a imolação de nós mesmos ou um encargo de execução árdua. Espírito de responsabilidade, sim; dever incondicional, não! Após o ritual mágico do dever demiúrgico, eis a fase do minimalismo ético.

Neste contexto de «crepúsculo do dever» e da «ética indolor» - conceitos que G. Lipovetsky desenvolve - apresentam-se fatores éticos de contraposição ao pós-dever, incrustado na tendência pós-moralista, preponderantemente de busca de prazer a qualquer preço. Isso foi levantado, em meados do século xx, pela ideologia consumista e o seu incentivo à  prevalência da identificação do consumo com o sentimento de felicidade. Estamos perante uma sociedade hedonista em que «a época da felicidade narcisista não se equipara à da máxima "é proibido proibir", mas sim a uma "moral sem obrigaç ;ões nem sanções".

A moral, entendida como extremamente individual, constitui-se em deveres para consigo mesmo. Ou seja, visa ao aperfeiçoamento pessoal, realçando a autonomia individual. Não autoriza atitudes sem restrições, pois isso implicaria a colisão com restrições éticas outras, restabelecidas sob a égide da normatização da ética individualista. O autor fundamenta  suas afirmações discutindo questões abertas e candentes do mundo de hoje, como a exaltação do direito à eutanásia, ao não limite da vivência da sexualidade, ao comércio de órgãos e do corpo, à higiene e à est ética do corpo, que atingem proporções desmedidas e inusitadas, ao desempenho desportivo que se converte de esforço competitivo sadio em obsessão mercantilizada, pelo qual passam somas de dinheiro de níveis absurdos ao uso de produtos nocivos à comunidade, à pluralidade de parceiros sexuais e à fragilidade dos vínculos e dos compromissos afetivos.

O trabalho deixou de ser dever moral para com a sociedade e encontra-se ligado à satisfação pessoal, ao reconhecimento profissional de um plano de carreira para o futuro. Os efeitos do neoindividualismo estão presentes no campo do trabalho com sentimento de mais direitos e menos deveres. Por conseguinte, um mínimo considerável de trabalhadores falta ao emprego sem justificativa ou com atestados médicos forjados. Trabalha com os olhos postos na aposentadoria, a qual, quando é tocada para que a integração das novas gerações possa dar-se, provoca protestos os mais exaltados e sem fundamentação. Não existe a mística do trabalho que enobrece e transforma o mundo. Aí existe o confronto entre o individualismo responsável, incutidor de regras morais, e o irresponsável, aquele que busca fugir às regras responsabilizantes.

O poder não é mais encarado como serviço, mas como ocasião de adquirir benefícios e privilégios muitas vezes em detrimento da comunidade.  O triste panorama do Brasil de hoje desvela diante de nossos olhos o melancólico panorama de uma classe política que perdeu totalmente a credibilidade porque perdeu a ética.  Com raras e honrosas exceções, usa a política como um trampolim para engordar seus cofres e suas próprias contas bancárias, preferentemente em paraísos fiscais. 

Os mandatários das grandes potências fecham ciumenta e freneticamente suas fronteiras para não ter que receber em seus territórios os milhares de refugiados que, em desespero, fogem do Oriente Médio, de países de extrema pobreza, e da morte certa, a fim de reencontrar a vida no continente europeu ou nos Estados Unidos, para si e para seus filhos.

Diante desta crise estamos todos convocados e interpelados.  Diante de um mundo onde a ética afunda em crise absoluta como ainda viver valores e parâmetros que façam a vida humana mais digna desse nome?  Certamente é uma interpelação central da qual ninguém pode desentender-se ou afastar-se.

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de "O  mistério e o mundo -  Paixão por  Deus em tempo de descrença", Editora  Rocco. 

  Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

FREI BETTO RECEBE TÍTULO DE DOUTOR "HONORIS CAUSA" PELA UNIVERSIDADE DE HAVANA

DISCURSO DE FREI BETTO AO RECEBER O TÍTULO DE DOUTOR “HONORIS CAUSA” CONCEDIDO PELA UNIVERSIDADE DE HAVANA
12 DE OUTUBRO DE 2015.

      Sinto-me muito honrado por receber o título de Doutor “Honoris Causa”, a mim concedido pela cátedra de Filosofia desta Universidade. Tenho muitas razões por me sentir assim. E também para agradecer a esta Universidade e ao heroico povo cubano, com quem convivo há 35 anos, desde que estive, pela primeira vez, com o querido amigo e Comandante Fidel Castro, em Manágua, na noite de 19 de Julho de 1980, por ocasião do 1º aniversário da Revolução Sandinista.

      A razão inicial de minha alegria é que, após 173 anos, é a primeira vez que um frade dominicano retorna aos quadros desta Universidade. E em pleno socialismo cubano.

      Esta Universidade e a Ordem Dominicana – que em 2016 completa 800 anos de fundação -, estão intimamente vinculadas. Os primeiros dominicanos pisaram solo cubano, por breve período, em 1511. Em 1514, o mais revolucionário de todos os dominicanos da história da América Latina, frei Bartolomeu de las Casas, proferiu em Sancti Spiritus o celebre “Sermão do arrependimento”. Devo informar que a família dominicana no Brasil é conhecida como Província Bartolomeu de las Casas. Já em 1515 os dominicanos ministraram em Havana suas primeiras aulas.

      Foi em 1670 que frei Diego Romero fez as gestões iniciais para fundar uma universidade em Havana. Porém, os dominicanos só obtiveram autorização do papa Inocêncio III em 1721. O bispo de Cuba, Jerónimo Valdés, manifestou seu apoio à iniciativa e doou aos frades igreja e casas, para que organizassem um colégio com cátedras de Gramática, Filosofia e Teologia. Contudo, impôs dez condições que não foram aceitas por meus confrades. Sobretudo pesou na hostilidade entre frades e bispo o fato deste insistir que a Universidade funcionasse no bairro periférico de San Isidro, enquanto os dominicanos insistiam que ela abrisse suas portas junto ao convento de San Juan de Létran, no centro de Havana.

      Tendo em mãos a autorização do papa e a aprovação do rei Felipe V, da Espanha, a Universidade foi fundada por frei José Poveda, a 5 de janeiro de 1728, junto ao convento de San Juan de Létran. Todas as autoridades estavam presentes, exceto o bispo Valdés. Nem o fato de os frades batizarem a Universidade com o nome de Real e Pontifícia Universidade de San Gerónimo de La Habana, aplacou os ânimos de Jerónimo Valdés.

      No modo como a Universidade foi fundada há que ressaltar dois aspectos: já nasceu com caráter independente, como deve ser toda universidade, pois o pensamento humano jamais pode ser aprisionado. Outro aspecto curioso é que esta Universidade congrega em sua história três Jerónimos.

O primeiro é São Jerônimo, que figurava em seu nome primitivo de Real e Pontifícia Universidade de San Gerónimo de La Habana. Entre os séculos IV e V, São Jerônimo traduziu a Bíblia do grego para o latim, e fez duras críticas ao aburguesamento da Igreja que, após três séculos de perseguições do Império Romano, foi cooptada pelo imperador Constantino. Em suas cartas, São Jerônimo denuncia padres e bispos que preferiam os luxos da nobreza romana ao serviço aos mais pobres.

      A presença dos dominicanos na Universidade de Havana vai de Jerónimo Valdés, bispo, em 1728, a Jerónimo Valdés, o capitão-geral, que laiciza a Universidade em 1842, após um período de 114 anos sob a orientação dos frades dominicanos.

      Desta Universidade foram alunos os mais destacados cubanos, de Félix Varela a Fidel Castro. Se o padre Varela é sempre lembrado como “aquele que, primeiro, ensinou os cubanos a pensar”, creio que não exagero em reivindicar para os dominicanos o título de “aqueles que, primeiro, ensinaram Varela a pensar”.
      Mas quem ensinou os dominicanos a pensar? Foi um pagão de origem grega, conhecido pelo nome de Aristóteles. Em base à sua filosofia, Santo Tomás de Aquino, frade dominicano do século XIII, ergueu sua monumental catedral teológica, ainda hoje considerada alicerce da teologia oficial da Igreja Católica. E, no entanto, há quem, hoje, se escandalize quando dominicanos, como Gustavo Gutiérrez, considerado o pai da Teologia da Libertação - título que divide com Leonardo Boff -, utiliza em seu clássico livro “Teologia da Libertação”, elogiado por Fidel, categorias marxistas ao analisar o sistema capitalista.

      Séculos antes, Tomás de Aquino foi duramente criticado por basear sua teologia no pensamento filosófico de um pagão! Ora, só um cristão de fé débil pode temer Aristóteles ou Marx. Ou um cristão equivocado, que considerada o cristianismo uma ideologia ou o marxismo uma religião.

      Outro aluno desta Universidade que merece destaque é José Antonio Saco, que combateu a pretensão estadunidense de anexar Cuba à soberania da Casa Branca e batalhou pela universalização do ensino público e gratuito, antecipando-se ao que mais tarde faria a Revolução.

           Nos bancos escolares desta Universidade se forjaram também o pensamento e os ideais dos generais e altos oficiais do Exército Libertador, entre os quais o líder da Guerra dos Dez Anos, Carlos Manuel de Céspedes, com cujo tataraneto, o padre Carlos Manuel de Céspedes, convivi em Havana e estabeleci vínculos de amizade.

      É curioso constatar que, nos primórdios do século XIX, os dominicanos favoreceram que, nesta Universidade, se consolidasse um pensamento revolucionário e independentista, do qual são expressão José de la Luz y Caballero e tantos luminares da Ilustração Escravagista Cubana.

      Em 1842, a administração colonial tratou de secularizar esta Universidade, não exatamente para livrá-la da influência religiosa, e sim para tentar impedir que aqui se semeassem ideias revolucionárias. 

      Curioso que os dominicanos não marcam a história de Cuba apenas por terem aberto as portas da primeira e mais importante de suas universidades. Marcam também pelo espírito empreendedor. Foi frei Antonio Bermúdez que, em 1593, propôs que se implantasse uma indústria açucareira em Cuba. E em 1720, a Ordem Dominicana financiou a instalação da primeira gráfica de Cuba, dirigida pelo belga Carlos Habré, que imprimia textos religiosos e teses universitárias.

      Devo dizer que esta imerecida homenagem que recebo de Cuba representa, para mim, uma reparação ao modo como a ditadura militar do Brasil subverteu minha carreira acadêmica. Talvez muitos aqui não saibam: como Raúl Castro, a quem tanto admiro e me comparo apenas neste aspecto, formalmente não tenho nenhum diploma universitário, razão pela qual jamais me foi possível aceitar tantos convites, no Brasil, para participar de bancas acadêmicas para a concessão de títulos de mestrado e doutorado.

      Ingressei pela primeira vez na universidade em março de 1964, na Escola de Jornalismo da Universidade do Brasil, no Rio. Um mês depois ocorreu o golpe militar, e o Brasil ficou submetido a uma ditadura que durou 21 anos. Como desde os 13 anos eu militava na Ação Católica, da qual me tornei um dos dirigentes nacionais entre 1962 e 1964, em junho de 1964 sofri minha primeira prisão, por quinze dias. No fim daquele ano, decidido a ingressar na Ordem Dominicana, interrompi meu curso de Jornalismo e, em 1965, fiz o noviciado religioso.

      Entre 1966 e 1968, cursei Filosofia, em São Paulo, na Escola Dominicana de Teologia, e Antropologia, na Universidade de São Paulo. A ditadura não concedeu à Escola Dominicana reconhecimento oficial, o que me impediu de obter um diploma válido, embora tenha concluído o curso, e a perseguição policial me obrigou a transferir-me para o Rio Grande do Sul, interrompendo o curso de Antropologia, jamais concluído.

      Em 1969, iniciei meus estudos de Teologia no seminário dos jesuítas, em São Leopoldo. Dali eu prosseguia minha participação na luta revolucionária no Brasil, em especial na tarefa de facilitar a fuga, pela fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina, de companheiros e companheiras perseguidos pela ditadura. Por dar liberdade a tantos, caí prisioneiro. Em quatro anos de cárcere, em São Paulo, me foi possível completar, de modo informal porém intenso, o curso de Teologia, e ainda me iniciar em Cosmologia e Astrofísica.

      Nos últimos 35 anos, sou testemunha da história de Cuba. Aqui cheguei pela primeira vez, em 1981, convidado pela Casa das Américas, de cujos eventos participei inúmeras vezes, e graças aos quais me tornei amigo de intelectuais e artistas conceituados, como Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Mario Benedetti. Aqui mantive intenso contato com o Departamento de América e, sobretudo, cultivei profunda amizade com o Comandante Manuel Piñeiro. Aqui promovi, com o apoio de Fidel, três encontros latino-americanos de Educação Popular, o que tornou possível difundir, em Cuba, a obra pedagógica de Paulo Freire, e fundar o Centro Memorial Martin Luther King, dedicado à Educação Popular e acolhido pelo pastor Raúl Suárez e seu Filho Joel Suárez. Aqui participei dos encontros sobre a dívida externa convocados por Fidel, e fiz a entrevista que resultou no livro “Fidel e a religião”, que tanta influência teve na vida de fé do povo cubano. Aqui eu me encontrava quando se iniciaram as transmissões da rádio pirata mercenariamente chamada José Martí e no dia em que o Brasil decidiu reatar relações diplomáticas com Cuba. Aqui estive durante a queda do Muro de Berlim e aqui retornei no Voo da Solidariedade durante o Período Especial. Aqui e em tantas viagens pelo mundo me uni à nação cubana na luta pelo fim do criminoso bloqueio, pelo retorno de Elián à pátria e pela libertação dos cinco heróis. Aqui acompanhei as visitas dos três papas – João Paulo II, em 1998; Bento XVI, em 2012; e Francisco, no mês passado.

      Termino prestando uma homenagem ao mais notório aluno desta instituição: Fidel Castro Ruz. Neste ano de 2015 se completam 70 anos de seu ingresso no curso de Direito da Universidade de Havana. Enquanto tantas universidades pelo mundo afora formaram os homens e mulheres que construíram as bombas de Hiroshima e Nagasaki, os mais hediondos atentados terroristas de toda a história; o napalm da Guerra do Vietnã; os instrumentos de torturas utilizados por inúmeras polícias; e os modelos econômicos que tornam os ricos cada vez mais ricos e os pobres sempre mais pobres; a Universidade de Havana formou homens como Varela e Fidel, e homens e mulheres que lutaram nas guerras de independência, combateram pela vitória da Revolução e consolidaram em Cuba um sistema socialista de partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.

      Nesta tarde em que recebo o título, o mérito maior é de Cuba e dos cubanos, por terem dado à América Latina e ao mundo homens e mulheres que, no modo de pensar e com seus exemplos de vida, encarnam os mais profundos e valiosos valores humanos. E os verdadeiros valores humanos são também valores evangélicos.

      Muito obrigado.