Por Maria Clara Bingemer
Nossa época vive
certamente uma crise religiosa. A sede por transcendência e espiritualidade que
se detecta hoje em dia, na contemporaneidade pós-moderna que vivemos, tem, no
entanto, contornos muito diferentes daquilo que seria o campo religioso pré-moderno.
A crise da modernidade e o advento da chamada própria ou impropriamente
pós-modernidade resgatou o absoluto que a modernidade pretendeu banir e
extinguir, com as profecias dos mestres da suspeita: Freud, Marx e Nietzche.
Mas trata-se de um absoluto sem rosto e sem contornos definidos e
precisos. Ou seja, sem a espessura da instituição.
O ser humano que viveu a
crise da modernidade, ou que já nasceu no seu clímax, e nada agora em águas
pós-modernas, é como um «peregrino» que caminha por entre os meandros das
diferentes propostas que compõem o campo religioso, não tendo problemas em
passar de uma para outra, ou mesmo de fazer a sua própria composição religiosa
com elementos de uma e outra proposta. Ou até mesmo de declarar-se sem
religião, mas não sem fé, como diz recente pesquisa sobre as novas formas
de crer ou mesmo o censo brasileiro de 2010. É diferente do adepto da religião
institucional, que adere a uma só religião e nela permanece, ou mesmo do ateu
ou agnóstico, que nega a pertença e a crença em qualquer religião.
Fica evidente que, para
muitas pessoas, o fato de não estar vinculados institucionalmente a uma
religião não significa descrença ou ausência de uma determinada religiosidade
ou contato com a Transcendência. Por outro lado, a simples não frequência à
Igreja faz com que os indivíduos se declarem sem religião. Muitas vezes, essas
pessoas mantêm ou preservam algumas práticas da sua religião anterior, embora
se afastem da instituição como um todo. Esse processo de autonomização, diante
da declaração de pertença, pode ser motivado pelo pluralismo religioso.
Desse modo, em um país
onde as pessoas se inserem em cada vez mais numerosas pertenças, parece ocorrer
uma pressão social que força o indivíduo a posicionar-se nesse campo.
Juntamente com isto, há um movimento simultâneo de rejeição e procura das
instituições religiosas, além de uma concepção geral de que a crença prescinde
da instituição e pode ser reformulada, com frequência, de acordo com o contexto
de vida de cada pessoa e das suas necessidades subjetivas. É possível constatar
que não há um necessário processo de descrença numa dimensão transcendental,
mas sim um movimento eruptivo de busca da experiência religiosa, que pode
ocorrer também por meio das instituições, mas não exclusivamente por meio
delas.
Ser sem religião não se
traduz necessariamente em descrença ou niilismo, mas muitas vezes na busca de
outras fontes promotoras de paz, bem-estar e equilíbrio, primando por valores
universais que são compartilhados pelas religiões, mas que as ultrapassam e
transpõem e não se reduzem às suas fronteiras e limites. Entre a configuração
dos motivos de ser religioso sem religião está a exacerbação do eu. Ou seja, a
necessidade existencial de procurar a própria fórmula do sentido para a vida,
sem conectá-la com um grupo, agremiação ou instituição. Parece haver cada vez
mais pessoas que creem em Deus, mas não se sentem à vontade na instituição,
buscando, então, o seu próprio caminho para encontrar a transcendência pela
qual aspiram.
Nessa busca por transcendência
e vivência espiritual, Deus é um conceito basilar de todos os sistemas
religiosos e não deixa de sê-lo nesta nossa época onde a religião sofre
radicais reconfigurações. A existência de um Ser Superior dá sentido ao
mundo em geral e, em particular, à vida humana. A autêntica questão
transcendente com a qual todo ser humano um dia se depara é a deste mistério
último e derradeiro que, por um lado, concede sentido à vida e, por outro,
coloca em crise todos os sentidos previamente dados ao existir.
Apesar de
todas as crises, Deus continua a ser a questão que remete ao mistério último e
ao sentido definitivo da vida e do ser, pela qual os seres humanos se sentem
atraídos ou pelo menos intrigados. E muitas vezes instigados.
Nossa época legou às novas
gerações muitas ruínas. Entre elas as das formas tradicionais de crer e
de celebrar a crença em Deus. Não se pode esquecer, porém, que foi em meio
aos escombros de diversas catástrofes na história da humanidade que místicos e
poetas de todas as tradições vivenciaram e captaram a presença amorosa que os
habita e impulsiona a anunciar e construir tempos novos.
Em meio à destruição
ocasionada pelas diversas crises, inclusive em meio às crises religiosas, o ser
humano é convidado e mesmo convocado a encontrar a Deus não “por causa” do
positivo que encontra no mundo e na existência. Mas “apesar” do absurdo
tenebroso e do caos que lhe encobre o horizonte de sentido e o faz duvidar do
princípio-esperança. É aí que se pode dar a busca autêntica por Deus.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de FINITUDE
E MISTÉRIO – MÍSTICA E LITERATURA MODERNA (coautoria - Editoras Mauad e
PUC-Rio)“O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de
descrença”, Editora Rocco e de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
Copyright 2015
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