O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

domingo, 25 de outubro de 2015

AS CRISES DA NOSSA ÉPOCA III


Por Maria Clara Bingemer 



Nossa época vive certamente uma crise religiosa. A sede por transcendência e espiritualidade que se detecta hoje em dia, na contemporaneidade pós-moderna que vivemos, tem, no entanto, contornos muito diferentes daquilo que seria o campo religioso pré-moderno. A crise da modernidade e o advento da chamada própria ou impropriamente pós-modernidade resgatou o absoluto que a modernidade pretendeu banir e extinguir, com as profecias dos mestres da suspeita: Freud, Marx e Nietzche. Mas trata-se de um absoluto sem rosto e sem contornos definidos e precisos.  Ou seja, sem a espessura da instituição.

O ser humano que viveu a crise da modernidade, ou que já nasceu no seu clímax, e nada agora em águas pós-modernas, é como um «peregrino» que caminha por entre os meandros das diferentes propostas que compõem o campo religioso, não tendo problemas em passar de uma para outra, ou mesmo de fazer a sua própria composição religiosa com elementos de uma e outra proposta. Ou até mesmo de declarar-se sem religião, mas não sem fé, como diz  recente pesquisa sobre as novas formas de crer ou mesmo o censo brasileiro de 2010. É diferente do adepto da religião institucional, que adere a uma só religião e nela permanece, ou mesmo do ateu ou agnóstico, que nega a pertença e a crença em qualquer religião.

Fica evidente que, para muitas pessoas, o fato de não estar vinculados institucionalmente a  uma religião não significa descrença ou ausência de uma determinada religiosidade ou contato com a Transcendência. Por outro lado, a simples não frequência à Igreja faz com que os indivíduos se declarem sem religião. Muitas vezes, essas pessoas mantêm ou preservam algumas práticas da sua religião anterior, embora se afastem da instituição como um todo. Esse processo de autonomização, diante da declaração de pertença, pode ser motivado pelo pluralismo religioso.

Desse modo, em um país onde as pessoas se inserem em cada vez mais numerosas pertenças, parece ocorrer uma pressão social que força o indivíduo a posicionar-se nesse campo. Juntamente com isto, há um movimento simultâneo de rejeição e procura das instituições religiosas, além de uma concepção geral de que a crença prescinde da instituição e pode ser reformulada, com frequência, de acordo com o contexto de vida de cada pessoa e das suas necessidades subjetivas. É possível constatar que não há um necessário processo de descrença numa dimensão transcendental, mas sim um movimento eruptivo de busca da experiência religiosa, que pode ocorrer também por meio das instituições, mas não exclusivamente por meio delas.

Ser sem religião não se traduz necessariamente em descrença ou niilismo, mas muitas vezes na busca de outras fontes promotoras de paz, bem-estar e equilíbrio, primando por valores universais que são compartilhados pelas religiões, mas que as ultrapassam e transpõem e não se reduzem às suas fronteiras e limites. Entre a configuração dos motivos de ser religioso sem religião está a exacerbação do eu. Ou seja, a necessidade existencial de procurar a própria fórmula do sentido para a vida, sem conectá-la com um grupo, agremiação ou instituição. Parece haver cada vez mais pessoas que creem em Deus, mas não se sentem à vontade na instituição, buscando, então, o seu próprio caminho para encontrar a transcendência pela qual aspiram.

Nessa busca por transcendência e vivência espiritual, Deus é um conceito basilar de todos os sistemas religiosos e não deixa de sê-lo nesta nossa época onde a religião sofre radicais reconfigurações.  A existência de um Ser Superior dá sentido ao mundo em geral e, em particular, à vida humana.  A autêntica questão transcendente com a qual todo ser humano um dia se depara é a deste mistério último e derradeiro que, por um lado, concede sentido à vida e, por outro, coloca em crise todos os sentidos previamente dados ao existir. 

 Apesar de todas as crises, Deus continua a ser a questão que remete ao mistério último e ao sentido definitivo da vida e do ser, pela qual os seres humanos se sentem atraídos ou pelo menos intrigados.  E muitas vezes instigados.

Nossa época legou às novas gerações muitas ruínas.  Entre elas as das formas tradicionais de crer e de celebrar a crença em Deus. Não se pode esquecer, porém, que foi em meio aos escombros de diversas catástrofes na história da humanidade que místicos e poetas de todas as tradições vivenciaram e captaram a presença amorosa que os habita e impulsiona a anunciar e construir tempos novos.
Em meio à destruição ocasionada pelas diversas crises, inclusive em meio às crises religiosas, o ser humano é convidado e mesmo convocado a encontrar a Deus não “por causa” do positivo que encontra no mundo e na existência.  Mas “apesar” do absurdo tenebroso e do caos que lhe encobre o horizonte de sentido e o faz duvidar do princípio-esperança.  É aí que se pode dar a busca autêntica por Deus.

  Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

A teóloga é autora de FINITUDE E MISTÉRIO – MÍSTICA E LITERATURA MODERNA (coautoria - Editoras Mauad e PUC-Rio)“O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco e de  “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 



  Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


Nenhum comentário:

Postar um comentário