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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

BALANÇO DO SÍNODO DA AMAZÔNIA



 Por Frei Betto

       Termina amanhã o sínodo convocado pelo papa Francisco para debater a presença da Igreja Católica na Amazônia. Além de bispos, foram convocados teólogos, líderes indígenas e assessores de movimentos pastorais e sociais.
       Na abertura do evento (6/10), o papa norteou-o em seu discurso: “Deus nos preserve da ganância dos novos colonialismos. O fogo ateado por interesses que destroem, como o que devastou recentemente a Amazônia, não é o do Evangelho. O fogo de Deus alimenta-se com a partilha, não com os lucros”.
       O Documento de Trabalho preparatório causou polêmica, dentro e fora da Igreja, pelo conteúdo avançado. Como os povos indígenas não aceitam adultos solteiros, cogitou-se a possibilidade de ordenar sacerdotes indígenas casados, o que provocou forte reação dos setores conservadores. A proposta não obteve aprovação do Sínodo, embora se tenha reforçado o protagonismo indígena na atividade evangelizadora.
       Bolsonaro temia que o Sínodo desacreditasse mundialmente seu governo ao denunciar as políticas anti-indigenistas e antiambientalistas adotadas pelo Planalto. Chegou a mobilizar a Abin para tentar neutralizar a pauta vaticana. Ora, não foi preciso o Sínodo denunciar como o Planalto trata os temas amazônicos. As recentes queimadas e os múltiplos discursos de nossas autoridades sobre a questão indígena, inclusive com ofensas ao cacique Raoni, foram suficientes para a opinião pública mundial se dar conta dos descasos do governo.
       O papa Francisco não surpreendeu nenhum dos nove governos amazônicos. Sua única encíclica, Laudato Si (Louvado Seja – Sobre o cuidado da casa comum), divulgada em maio de 2015, que trata da questão socioambiental, é de tal contundência que levou Edgar Morin a admitir que não há, na história da ecologia, documento mais ousado do que este, pois todos focam os efeitos da devastação socioambiental, mas Francisco vai além ao denunciar as causas.
       As sementes lançadas pelo Sínodo, assim como ocorreu com o Concílio Vaticano II, vão demorar a dar frutos. Mas virão. Ao dar voz, dentro do Vaticano, a indígenas, pescadores, seringueiros e outros representantes do povo amazônico, Francisco abriu um precedente que, sem dúvida, incomodou os conservadores, mas aproximou ainda mais a Igreja de suas raízes evangélicas.
       O documento final do Sínodo foi monitorado pela Cúria Romana, cuja tendência era ignorar o conteúdo formulado pelos participantes repartidos em 12 grupos sinodais, e impor suas próprias ideias. Apresentado na terça, 22/10, a assembleia sinodal reagiu descontente diante de um texto que lhe pareceu abstrato, o que levou à suspensão das sessões de quarta e quinta, de modo que as contribuições dos participantes fossem incorporadas ao texto. A primeira versão ignorou o caráter holístico da realidade amazônica, onde tudo e todos estão interconectados, como frisa Francisco em sua encíclica, bem como o ministério pastoral das mulheres e a presença da Igreja na defesa dos povos e do bioma amazônicos.
       Porém, os 185 delegados oficiais do Sínodo, quase todos bispos, foram unânimes quanto à devastação ecológica da Amazônia por empresas extrativas (petróleo, minérios e madeira), pecuaristas, monocultura e hidrelétricas.
       Os participantes propuseram, para todas as nações, um estilo de vida sustentável, de respeito à Mãe Terra, a exemplo dos povos indígenas. “É indispensável a conversão ecológica para uma vida sóbria. Isso implica mudanças de mentalidade, estilo de vida, modos de produção, práticas de acumulação, de consumo e de desperdício”, propôs o grupo sinodal integrado pelos que falam português. Já os de idioma espanhol acrescentaram que essa conversão deve levar a Igreja a “assumir o seu papel profético e denunciar a violação dos direitos humanos das comunidades indígenas e a destruição do território amazônico.”
       Agora, as deliberações do Sínodo pautam a ação da Igreja Católica, não apenas na Amazônia, mas no mundo todo.

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terça-feira, 29 de outubro de 2019

ACABOU O SÍNODO, CONTINUA O PROCESSO SINODAL




por Marcelo Barros

Nesse domingo, 27, se encerrou no Vaticano a assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia. Durante três semanas quase 200 bispos católicos do mundo todo, dos quais mais de cem  vindos da região amazônica, escutaram representantes de povos indígenas e dialogaram com missionários e missionárias que vivem na região. Ouviram peritos/as e conversaram sobre os grandes desafios que a terra e os povos da Amazônia enfrentam. A região pan-amazônica, com seus oito milhões de quilômetros quadrados, situados em nove países da América do Sul, foi o assunto principal em Roma e em toda a Igreja Católica no mundo. A partir disso, o Sínodo teve como tema: A Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia integral.

Foi a primeira vez em que, oficialmente, a Igreja Católica assumiu como missão a tarefa de escutar e principalmente ouvir positivamente e valorizar a realidade e as culturas ancestrais dos povos indígenas, principalmente sua sabedoria religiosa. Até agora, alguns setores católicos veem as tradições religiosas indígenas e afrodescendentes como idolátricas e nocivas. Desde que, há dois anos, esse sínodo começou a ser preparado, os bispos e missionários/as que conduziram a consulta prévia às comunidades descobriram e afirmaram que as culturas indígenas representam uma expressão da relação harmoniosa entre o Deus criador, os seres humanos e a natureza. Descobriram também que o Capitalismo e o tipo de desenvolvimento que as empresas e governos trouxeram à região tem rompido com esse equilíbrio religioso e ecológico. Principalmente, o extrativismo praticado pelas grandes multinacionais mineradoras e a pressão dos grandes interesses econômicos com madeireiras e o latifúndio destroem a floresta, poluem os rios e ameaçam o futuro da vida no planeta Terra. Põem também em risco a vida e a segurança de milhões de pessoas humanas. 

Durante séculos, de forma consciente ou ingênua, a Igreja Católica e outras Igrejas colaboraram com as diversas formas de colonialismo. Por isso, o Cristianismo têm uma dívida histórica e moral com os povos indígenas e as comunidades afrodescendentes. Desde a segunda metade do século XX, tanto a Igreja Católica, como as Igrejas evangélicas, ligadas ao Conselho Mundial de Igrejas, têm procurado defender os direitos dos povos originários e concebem a missão cristã como diálogo e respeito às culturas diferentes e não como conquista e imposição de crenças. Agora, esse Sínodo veio completar esse caminho e tirar as consequências dessa postura de parceria e comunhão com os povos originários e com a mãe Terra.

No domingo, 20 de outubro, muitos bispos da Amazônia celebraram juntos e assinaram um novo Pacto das Catacumbas, documento no qual se comprometeram em se inserir como irmãos na caminhada dos povos amazonenses e na defesa da Amazônia e da Terra, nossa casa comum.

Assim as Igrejas continuam a missão de Jesus. Ele, enviado do Pai ao mundo, se fez carne, isso é, assumiu a realidade humana em tudo, menos no pecado, isso é, no que é opressão humana e desamor. Não pregou sobre si mesmo e sim sobre o projeto divino no mundo. Ensinou aos discípulos o respeito ao diferente e o diálogo. Como têm afirmado nossos bispos: a fé se propaga por atração, ou seja, por sua força de encantar e não por qualquer imposição ou propaganda.   

Nesses dias, as conclusões do Sínodo e as propostas dos bispos reunidos em Roma foram entregues ao papa. Também passaram às mãos do papa Francisco, as milhares de respostas dadas pelas comunidades amazonenses consultadas sobre os desafios da vida na Amazônia e a missão da Igreja. Com esse material, depois de orar, oportunamente, o papa Francisco vai dirigir ao mundo uma exortação pós-sinodal sobre o cuidado com a Amazônia e a missão da Igreja com relação à Ecologia Integral.

Enquanto isso, na região amazônica e em toda a América Latina, esse Sínodo vai continuar através de um processo de diálogo e de construção juntos de uma missão profética que consiste em escutar o diferente, acolher as diversas tradições das comunidades e junto com elas irmos construindo o projeto divino da justiça e da paz no mundo. Como afirmava o papa Francisco, sínodo significa “caminhar juntos”. Em todas as dioceses e paróquias, temos de viver um processo sinodal permanente. Esse deve ser o jeito normal da Igreja ser e cumprir sua missão.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br   






quinta-feira, 24 de outubro de 2019

BAHIA ACOLHE A SANTA DOS POBRES





Por Frei Betto 

A Bahia, e todo o Brasil, recepcionam a primeira santa genuinamente brasileira, Santa Dulce dos Pobres, como a qualificou o papa Francisco. 

Elevar aos altares uma mulher que dedicou a sua vida aos excluídos é ligar o alarme à consciência de uma sociedade acomodada que, infelizmente, aprendeu a viver com a desigualdade social como se fosse natural. Herança de 350 anos de escravatura, a mais longa das três Américas.

Em 2018, o rendimento da fatia mais rica da população subiu 8,4%, enquanto os mais pobres sofreram uma redução de 3,2%. Brasileiros que estão no 1% mais rico ganharam 33,8 vezes mais que o total dos 50% mais pobres, segundo dados divulgados pelo IBGE na última quarta-feira (16/10).

Ora, ninguém escolhe ser pobre. Todo pobre foi levado, involuntariamente, à privação de acesso à vida digna. E este direito é central na mensagem de Jesus, que afirmou “vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10,10).

Por isso, ele curou doentes, repartiu pães e peixes, denunciou opressores (Mateus 23) e adotou como símbolo de sua missão o mais elementar e universal alimento humano: o pão, a ponto de proclamar “eu sou o pão da vida”. Ou seja, aquele que veio quebrar as barreiras que instalam a desigualdade e promovem a exclusão.

Irmã Dulce é a santa de todos, porém realçada como aquela que merece veneração e devoção universal por dedicar a sua vida para que outros tivessem vida. 

Ela é exemplo de como devemos imprimir às nossas existências um sentido solidário. E, sobretudo, atacar as causas da pobreza.

Em futuro próximo, se Deus quiser, teremos outro santo nordestino, Dom Helder Camara, que a ditadura militar chamava de “bispo vermelho “. Quando perguntado, em suas viagens ao exterior, o motivo de tal epíteto, ele respondia: “Quando falo dos pobres, todos me chamam de cristão. Quando denuncio as causas da pobreza, me chamam de comunista”.

Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros.


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quarta-feira, 23 de outubro de 2019

SÍNODO PARA A AMAZÔNIA E CRISE CIVILIZATÓRIA



Por Dom Mauro Morelli

Sendo a Fé em Cristo a mesma em Osaka, New York, Roma ou no Rio de Janeiro, é a realidade que determina e diferencia o jeito de ser Igreja e configura caminhos e prioridades da evangelização. Na realidade local, regional e planetária, a Igreja deve estar inserida como testemunha e servidora da Vida em Comunhão.

Vivemos, em verdade, uma crise civilizatória. Esta é a Hora da Graça da Libertação! Escolhamos a vida como pessoa, família, nação e povos. A Igreja, como pitada de sal e fermento, participa com a família humana e com toda a criação da busca de um tempo novo ou de um novo ciclo em que tudo se revista da sabedoria e da beleza de Cristo, que segundo Isaías 40, caminha conosco como “pastor apascentando o rebanho, reunindo as ovelhas dispersas e carregando no colo as feridas”.

Desde a primeira hora, na manhã de Pentecostes, e por dois séculos, a Igreja viveu a unidade no pluralismo cultural, eclesiológico, litúrgico e ministerial. O serviço do Evangelho foi confiado ao Colégio Apostólico e à Igreja; sendo o pastoreio exercido sem feudos, com participação da Comunidade através escuta da Palavra, do discernimento orante e do processo decisório.

Consciente das heranças históricas decorrentes do abraço de Constantino, o Papa Francisco, na esteira de João XXIII e de Paulo VI, conclama a Igreja a cultivar a colegialidade e a sinodalidade, em todos os seus níveis e dimensões, desde a comunidade local até a dimensão católica ou universal.

Vida em Comunhão, segundo a ecologia integral, abrange todas as dimensões das relações do ser humano na Casa Comum, ou seja, ambientais, sociais, econômicas, culturais e políticas no dia a dia de nossa existência.

Assim, pois, a própria Igreja, à luz da ecologia integral, deve passar por profundo questionamento e conversão sobre o modo de viver, testemunhar, celebrar, anunciar e servir o Evangelho da Vida em Comunhão. Com uma nova ecoclesiologia, todas as relações na Igreja, congeladas ou/e bloqueadas por leis e rubricas, devem ser avaliadas e transformadas para que, em todos os níveis, sem subserviência ou independência, a Igreja seja regida pelo princípio da autonomia em comunhão, inserida na rede de solidariedade da Casa Comum. 

Em Cristo não há mais sagrado e profano, judeu ou pagão, grego ou romano, homem e mulher; sendo Deus louvado não somente em Sião ou no Monte Garizim, segundo nossas tradições e reduções, mas no Espirito que sopra em todo lugar, superando dicotomias, barreiras, preconceitos e esquizofrenias.
Belo exemplo, o processo de convocação do Sínodo para a Amazônia. As tensões do processo sempre inevitáveis, sejam superadas com paciência e mansidão, desde a Cúria Romana até a Paróquia de São Roque de Minas, na Serra da Canastra, onde vivo a solicitude pela Igreja, como Bispo emérito, em comunhão com o pároco e com o bispo desta Diocese de Luz, no Estado de Minas Gerais.

Não fechemos o coração, pois a crise é tempo da graça que nos liberta do clericalismo, ou seja, do ministério transformado em poder e até em tirania sobre o Povo de Deus submetido aos nossos humores e caprichos. O pastoreio da Igreja deve ser confiado a pessoas comprovadamente eminentes na Fé e excelentes na Caridade. Da mesma forma, chega de procurar uma paróquia para um padre e uma Diocese para um Bispo, deixando nas mãos solitárias e diplomáticas do Núncio Apostólico a coordenação do processo de formação de Dioceses e de eleição/transferência de bispos.  

Sejamos de fato Igreja em saída, como na manhã de Pentecostes, rumo aos porões e às periferias existenciais ou geográficas, onde o ser humano subsistindo aviltado e esmagado, a Mãe Terra chora e geme pela degradação ecocídia.

Honremos a memória e o legado de mulheres e homens eminentes na Fé que deram suas vidas para resgatar e promover a dignidade humana, a justiça e a paz, como Dom Hélder Câmara, fundador da CNBB com Monsenhor Giovanni Baptista Montini, Dom Antônio Batista Fragoso, Zilda Arns, Padre Penido Burnier, Irmã Dulce e Madre Tereza.   

No contexto atual, em que a Nação Brasileira se encontra dominada pelo ódio e pelo atraso (cf.Jeremias14,18; Amós 6.1-7; 8,4-8.11-13), como não recordar o franciscano Paulo Evaristo Arns, saudoso Arcebispo Profeta de São Paulo e mártir da Cúria Romana, baluarte da democracia brasileira e promotor da colegialidade e da sinodalidade na vida e na missão da Igreja. Incentivado pelo Papa Paulo VI, sonhou e abriu caminhos para a presença e a missão da Igreja na megalópole sem esquartejá-la, dividindo-a por ruas e riachos, mas articulada em regime de Autonomia em Comunhão, priorizando a cidadania do povo das periferias geográficas e existenciais. Sonho, convertido em anos de trabalho sério, ignorado e descartado pela Cúria Romana. Até a sua morte, como Maria, em silêncio guardava tudo no coração. Não apenas para a Amazônia, urgente um Sínodo para as metrópoles e as megalópoles.

Ouso afirmar que, mais do que nunca, urge separar definitivamente Igreja e Estado, confiando às Comissões de Justiça e Paz, em âmbito nacional e internacional, o diálogo com Governos, Agências Internacionais e Organismos da ONU. Uma nova Constituição ou “Motu Proprio” pode confiar à Comissão Internacional de Justiça e Paz as entidades internacionais denominadas Santa Sé e Cidade do Vaticano. A Cúria Romana e Conferências Episcopais, livres da diplomacia, possam efetivamente promover a colegialidade de cada Bispo na solicitude pela Igreja e a sinodalidade, ou seja, a participação efetiva de cada batizado na vida e na missão da Igreja a serviço do Reino de Deus.

Ao amanhecer do novo, vislumbro a CNBB, livre do poder e de ânsia de conquistas e privilégios, reintegrando em seus quadros os Bispos eméritos, como animadora da Igreja profética e pastora, comprometida com a preservação das fontes da vida e com os povos originários, com os desvalidos e discriminados das periferias e grotões desse país continental, quer agrade ou desagrade a governantes e poderosos.

Em sintonia com o Sínodo para a Amazônia, no cuidado com a Casa Comum, sejamos atentos à exortação do Papa Francisco: “a extinção de uma cultura é tão ou mais grave do que a extinção de uma espécie” (LS 145).

Caminhemos de esperança em esperança, em comunhão com tudo o que existe e vive nesta Casa Comum, de forma solidária e participativa, como pitada de sal e fermento na massa, pois “ tudo o que é bom é nosso, nós somos de Cristo, Cristo é de Deus e Deus será tudo em todos” (cfr.1 Coríntios 3,22- 23; 15, 20-29). Vem, Senhor Jesus! Ap 22,20 .

Dom Mauro Morelli é  bispo emérito e fundador da Diocese de Duque de Caxias. – é atualmente  missionário na Serra da Canastra, numa área pastoral com 2500kms2 , com 16 comunidades esparsas na área conflituosa  do Parque Nacional da Serra da Canastra.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

A ONU E A OMHU NA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA POLÍTICA




Por Marcelo Barros

No dia 24 de outubro, a ONU celebra mais um aniversário de sua fundação, ao publicar a Carta das Nações Unidas, em 1945. Embora frágil e com muitos desafios a superar, esse organismo internacional tem sido útil a conduzir a humanidade nos caminhos do diálogo e da paz. A ONU cumpre uma importante missão. Deve zelar para que a sociedade internacional seja impregnada de valores como o respeito à dignidade de todos os humanos, a supremacia da justiça, a consciência ecológica e a abertura à transcendência. No entanto, é organismo de governos. Seus membros são Estados nacionais e governantes. Já há mais de uma década, através da FAO, a ONU reconheceu que a Venezuela superou o analfabetismo e em todo o país estava superada a fome e a desnutrição. No entanto, o império norte-americano armou um bloqueio internacional. Isolou o país que não pode receber de fora nem medicamentos. Além disso, incentivou os comerciantes a boicotarem os gêneros alimentícios. Por isso, a população sofre a ausência de bens necessários para o consumo.

Cada vez mais fica claro que a hegemonia e o controle exercidos pela Economia sobre a Política, no decorrer dos últimos 30 anos, foi uma catástrofe para o mundo. É preciso unir todas as pessoas de boa vontade e grupos da sociedade civil para “democratizar a democracia”. Isso significa elaborar novo estilo modelo de Política, efetivamente, centrado no bem comum. Dom Oscar Romero, o santo arcebispo de El Salvador, martirizado em 1980, propunha o retorno ao que ele chamava  de “grande Política”.

O Banco Mundial afirma que 20% da população mundial, pouco menos de um bilhão de pessoas, consomem sozinhos 83% dos recursos disponíveis na terra. Metade da humanidade, mais de três bilhões de pessoas, devem viver com dois dólares por dia. A UNICEF adverte que mais de um bilhão de crianças vive abaixo da pobreza. Por causa disso, a cada ano morrem de fome de 40 a 60 milhões de pessoas. Conforme cálculos do Banco Mundial, com 40 bilhões de dólares, se poderia resolver o problema da fome e da saúde dos pobres do mundo. Ora somente, em um ano, um país como os Estados Unidos gastam mais de um bilhão de dólares em armas para as guerras que mantêm no mundo. Ao mesmo tempo, a sociedade dominante que provoca as guerras contra os povos pobres, fecha suas fronteiras aos migrantes que tentam sobreviver ao extermínio. Decreta que o destino deles deve ser a morte em seus países ou o fundo do mar nas portas das ilhas de luxo do primeiro mundo. 

Por isso, grande parte da humanidade sonha com um organismo mundial que abranja não somente governos, mas também uma representação legítima da sociedade civil internacional. Só uma organização internacional que, além de Estados, reúna também representantes das organizações civis terá força para exigir do governo das grandes potências respeito pelas leis e decisões internacionais. Só um organismo assim poderá intervir para que o governo de Israel pare de massacrar o povo palestino e proíba os países ricos de estabelecer leis agrícolas protecionistas que destroem a economia dos países africanos.

A humanidade não pode mais aceitar a fome e a miséria como condições normais no mundo. Não basta garantir o cumprimento das leis. É preciso e urgente estimular uma nova cultura que não permita mais a insensibilidade vigente com o que se passa com milhões de seres humanos. O papa Francisco pede que superemos “a cultura da indiferença”.

É preciso que a ONU, as organizações internacionais e cada grupo humano tenha um coração que opte pela vida e nos faça amar. A humanidade está descobrindo a espiritualidade social e política da paz e da justiça.  Organismos internacionais da sociedade civil estão propondo a criação de uma OMHU, Organização Mundial da Humanidade. Não se trata de substituir a ONU e sim de assessorá-la e ajudá-la em sua missão pela paz e pela justiça eco-social. Para isso, no mundo inteiro, as pessoas e grupos estão se organizando em Ágora dos/das Habitantes da Terra. Essa organização se propõe falar em nome da humanidade e defender a vida ameaçada no planeta. Esse tipo de projeto não é apenas importante no plano social e político. É objetivo da fé e da espiritualidade. O evangelho diz que Jesus deu a sua vida para reunir na unidade todos os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo (Jo 11, 52).

 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br  

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

IRMÃ DULCE, A SANTA BAIANA



 por  Maria Clara Lucchetti Bingemer


O Brasil recebeu da Igreja liderada pelo Papa Francisco um presente notável. Foi canonizada a primeira santa brasileira, Irmã Dulce, o anjo bom da Bahia.

Maria Rita Lopes Pontes – que após entrar na vida religiosa, passou a se chamar Irmã Dulce – é uma baiana que se distinguiu pelo amor caritativo e gratuito pelos pobres e desvalidos de todo tipo.  Essa paixão pelos menores e necessitados data da sua juventude e se encontra na raiz de sua consagração religiosa. Desde os treze anos de idade, depois de visitar áreas carentes, acompanhada por uma tia, ela começou a manifestar o desejo de se dedicar à vida religiosa. Começou a ajudar mendigos, enfermos e desvalidos.

            Com o consentimento da família e o apoio de sua irmã, Dulcinha, a menina foi transformando a casa da família, na rua da Independência, 61, bairro de Nazaré, num centro de atendimento a pessoas necessitadas. A casa ficou conhecida como "a portaria de São Francisco", tal o número de carentes que se aglomeravam à sua porta.

            Assim prosseguiu a jovem Dulce após sua entrada no convento.  Fundou diversas obras de caridade dedicadas à assistência aos mais pobres: escolas, hospitais, albergues.  Em situações onde não encontrava lugar para abrigar seus assistidos, chegou a invadir casas para protegê-los e dar-lhes o atendimento necessário. Construiu e manteve uma das mais respeitadas instituições filantrópicas do país:  as Obras Sociais Irmã Dulce. 

A proclamação oficial da santidade desta baiana é forte e simbólica em muitos aspectos.

Em primeiro lugar, Irmã Dulce é a encarnação de tudo que a Igreja da América Latina vem vivendo e propondo há mais de 50 anos. Em 1968, os bispos reunidos em Medellín voltaram o olhar da comunidade eclesial preferencialmente para os pobres e oprimidos, propondo então o que se chamou opção preferencial pelos pobres.  Tratava-se de uma virada radical, que levava a Igreja para as margens da sociedade e privilegiava o trabalho evangélico unido indissoluvelmente à transformação social.  Fé e justiça passaram a ser um binômio inseparável, como o foram desde sempre na tradição bíblica judaico-cristã. 

Irmã Dulce dedicou sua vida aos pobres.  Voltou toda a sua vocação e vida religiosa para aqueles que não tinham direitos, que eram fracos e vulneráveis.  A tal ponto que ficou conhecida como o anjo dos pobres. Ainda antes que a Conferência de Medellín acontecesse, viveu essa opção preferencial pelos pequenos da sociedade, fazendo deles o centro de sua vida e de seu trabalho, a eles dedicando o melhor de suas energias. 

Além disso, Irmã Dulce é uma mulher.  A Igreja tem canonizado muitas mulheres.  Mas chama a atenção que juntamente com ela o Papa Francisco tenha canonizado várias outras.  Aumenta o número de mulheres reconhecidas oficialmente pela Igreja católica como santas.

Isso se encontra em perfeita sintonia com as posições que o Papa Francisco tem tomado ultimamente, de palavra e de obra.  Sem cessar, ele tem sublinhado a importância da mulher para a vida da Igreja.  Valoriza as posições e as atitudes das mulheres, figuras fundamentais para que a Igreja cumpra sua missão, tem igualmente valorizado a competência delas, nomeando várias para cargos importantes no Vaticano. Entre elas, a brasileira Cristiane Murray, nomeada vice-diretora da Sala de Imprensa do Vaticano. 

Com a Irmã Dulce, a Igreja do Brasil ganha sua primeira santa canonizada, a América Latina vê reconhecida uma testemunha privilegiada da opção continental pelos pobres, a santidade de uma mulher reconhecida e proclamada oficialmente pelo Sumo Pontífice. Trata-se de um grande presente para o Brasil, onde a mulher ainda é tão pouco valorizada em tantas esferas da vida, sendo inclusive vítima das mais diversas violências.  O fato de que a primeira santa brasileira seja uma mulher é um sinal poderoso da importância de tratar com carinho as filhas de Eva, demonstrando que são mais que nada e antes de tudo filhas de Deus. 

Parabéns, Bahia!  Parabéns Brasil!  Santa Dulce interceda pelo seu povo.  Ajude-o a viver sempre mais a opção pelos pobres que você encarnou com tanta radicalidade.

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.
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sexta-feira, 18 de outubro de 2019

COMO O SÍNODO PANAMAZÔNICO PODE NOS SURPREENDER





Por Leonardo  Boff

Entre os dias 6-27 de outubro acontecerá em Roma o Sínodo Panamazônico. Já em 1974 o Papa Paulo VI instituíu a figura do Sínodo, primeiro dos dos Bispos, com representantes de todos os continentes mas também os Sínodos regionais como o Sínodo dos Bispos holandeses em 1980 e o Sínodo dos bispos alemães que está ocorrendo em 2019 e outros.
O sínodo, cujo significado etimológico significa “fazer um caminho juntos” representa uma ocasião para as Igrejas locais ou regionais tomarem o pulso do caminhar de suas igrejas, analisando os problemas, identificando os desafios e buscando juntos caminhos de implementação e atualização do evangelho.
Especial relevância é o Sínodo Panamazônico, pois revela um duplo grau de consciência  no próprio tema básico: “Novos caminhos para a Igreja e para a Ecologia integral”.Trata-se de definir um outro tipo de presença da Igreja nas Américas e especificamente nesta vasta região amazônica que recobre 9 países numa extensão de mais de 8 milhões de kilômetros quadrados. O outro grau de consciência desponta na importância que a Amazônia possui para o equilíbrio da Terra e para o futuro da vida e da humanidade.
A Igreja romano-católica na América Latina e na Amazônia era uma Igreja-espelho da Igreja-mãe da Europa. Depois de cinco séculos era se transformou numa Igreja-fonte, com um rosto afro-índio-europeu. Na homilia de abertura do Sínodo, no dia 4 de outubro, o Papa Francisco disse claramente:” Quantas vezes o dom de Deus foi, não oferecido, mas imposto! Quantas vezes houve colonização em vez de evangelização! Deus nos preserve da ganância dos novos colonialismos”. Numa outra ocasião em Puerto Maldonado no Peru, fez um pedido de perdão, nunca feito por nenhum Papa antes: ”Peço humildemente perdão, não apenas pelas ofensas da própria Igreja mas pelos crimes contra os povos originários durante a conquista da América”.
No Instrumento de Trabalho, em preparação ao Sínodo, se pede que sejam ordenados “viri probati”, quer dizer, homens casados, comprovamente honrados, especialmente indígenas, para serem ordenados sacerdotes. O bispo emérito do Xingu, a maior diocese do mundo, Dom Erwin Kräutler, sugeriu ao Papa que ao invés de dizer “viri probati”(homens) se diga “personae probatae (pessoas comprovadas),o que inclui as mulheres. Diz ele: elas nas comunidades fazem tudo o que o padre faz, menos consagrar o pão e o vinho. Por que não conceder-lhes também esta missão? Maria, deu à luz Jesus, o Filho de Deus. Suas irmãs, as mulheres, por que não podem representá-lo? Ademais o texto diz que se dará às mulheres uma missão especial. Bem poderia ser, como é feito em todas as demais igrejas cristãs, que mulheres se tornem, a seu jeito, também sacerdotes.
Esse Papa é inovador e corajoso. Dizem os melhores teólogos que não há nenhum dogma e nenhuma doutrina que impeçam às mulheres de representar o Cristo. Teologicamente não é o padre que consagra. É Cristo quem consagra. O padre apenas lhe dá visibilidade. Só o patriarcalismo ainda reinante impede de ordenar mulheres.
A questão mais aguda e importante é a salvaguarda do bioma amazônico. Essa vasta região foi objeto de pesquisa de grande cientistas já há dois séculos. Dizia Euclides da Cunha em seus ensaios amazônicos:”A inteligência humana não suportaria o peso da realidade portentosa da Amazônia; terá que crescer com ela, adaptando-se-lhe, para dominá-la (Vozes 1976,p.15). Ela é o grande filtro do mundo que sequestra o dióxido de carbono, mitiga o aquecimento global e nos entrega oxigênio. Nela a biodiversidade é tanta que “em poucos hectares da floresta amazônica existe um número de espécies de plantas e de insetos maior que toda a flora e fauna da Europa”nos diz o grande especialista E.Salati.
Mas seu significado maior reside na imensidão das águas, seja dos rios volantes (umidade das árvores, mil litros por copas de 20 metros) seja da superfície do rio, seja do imenso aquífero Alter do Chão. Sem a preservação da floresta em pé, o Amazonas pode se transformar num deserto como o Saara que há 15 mil anos era uma espécie de Amazônia,com o rio Nilo desaguando no Atlântico. Cinquenta billhões de toneladas de dióxido de carbono seriam lançadas ao céu, caso a Amazônia fosse desflorestada, tornando impossível a vida no sul do Continente.
O papa se referiu à situação da Amazônia ao analisar a situação atual do mundo,”a Terra é cada vez mais interconectada e habitada por povos que fazem parte de uma comunidade global; por exemplo, o problema dos incêndios na Amazônia, não é apenas daquela região. É um problema mundial, assim como o fenômeno migratório”.
Mais e mais cresce a consciência de que o bioma amazônico é um Bem Comum da Terra e da Humanidade. O apelo à soberania de cada país, se move ainda no velho paradigma que dividia o planeta em partes. Agora se trata de reunir as partes e construir a Casa Comum para nós e para toda a comunidade de vida. O Brasil não é dono da Amazônia (63%), é apenas seu administrador, agora sob o novo governo, de forma altamente irresponsável. Faz pouco caso dos incêndios e em função dos minérios, do petróleo, de hidrelétricas e de outras riquezas, incentiva grandes projetos que ameaçam os povos originários – aqueles que sabem cuidar e preservar a floresta – e o equilíbrio ecológico de toda a Casa Comum.
Corre um projeto subscrito por dezenas de caciques, bispos, autoridades, cientistas e outros a ser apresentado no Sínodo que é de declarar a “Amazônia, santuário intangível da Casa Comum”!

Como a UNESCO já tombou vários biomas em vários países, por que não fazê-lo da Amazônia, na qual se joga, em parte, o futuro da vitalidade da Terra e de nossa civilização?


Leonardo Boff é eco-teólogo e filósofo e escreveu Como cuidar da Casa Comum: uma ética  da Terra, Vozes 2018.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

MARIGHELLA, 50 ANOS



Por Frei Betto

       O líder revolucionário brasileiro Carlos Marighella (1911-1969) foi fuzilado pela ditadura militar há 50 anos, a 4 de novembro de 1969, em São Paulo. As circunstâncias de seu assassinato, cuja culpa o governo brasileiro admitiu, oficialmente, em 1996, estão devidamente esclarecidas em três livros: “Batismo de sangue” (Rocco), de minha autoria, filmado por Helvécio Ratton; a biografia escrita por Emiliano José, “Carlos Marighella: o inimigo número um  da ditadura militar” (Casa Amarela); e, em especial, a biografia assinada por Mário Magalhães, “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras). 
       Falta, agora, o público brasileiro superar as barreiras do clima de censura imposto pelo governo Bolsonaro para ter acesso ao filme de Wagner Moura sobre Marighella, baseado no livro de Magalhães.
       Para os que defendem a tortura (exceto neles) e torcem o nariz para os direitos humanos, Marighella foi um terrorista que pretendia fazer do Brasil uma nova Cuba. (Quem dera. Assim toda a nossa população, como em Cuba, teria assegurada os direitos humanos elementares - alimentação, saúde e educação -, sem ônus para o orçamento familiar, e a nação se destacaria por seu alto nível cultural e senso de soberania e independência). 
       Epítetos demeritórios semelhantes, em vocábulos próprios da época, foram aplicados a Zumbi dos Palmares (decepado), Tiradentes (enforcado), Frei Caneca (fuzilado), Angelim (exilado), Madre Joana Angélica (assassinada), e tantos outros que deram suas vidas para livrar o Brasil de seu complexo de vira-lata perante as nações metropolitanas.
       Conheci Marighella em 1967, no convento dominicano de São Paulo, quando se mostrou interessado no apoio dos frades à sua proposta revolucionária e nos presenteou com os seus poemas. Dotado de talento poético, fez em versos uma prova de física quando cursava o ensino médio, em Salvador. Ingressou na faculdade de engenharia, mas não terminou o curso. Dedicou-se a defender os direitos dos mais pobres como militante do Partido Comunista. Eleito deputado federal pela Bahia, em 1946, se viu obrigado a retornar à luta clandestina tão logo o governo Dutra cassou o PCB.
       Com o advento da ditadura militar, em 1964, Marighella rompeu com o PCB e fundou a ALN (Ação Libertadora Nacional), organização revolucionária destinada a redemocratizar o Brasil e implantar o socialismo. Não viveu o suficiente para ver o fim da ditadura, em 1985. Mas deu a sua vida para que outros tivessem vida. Seus ideais continuam atuais, embora hoje sejam outros os métodos de luta. Já não se justificam as ações armadas, que interessam apenas aos fabricantes de armas e à extrema-direita. Os espaços democráticos foram duramente reconquistados com a derrubada da ditadura, em 1985, e precisam ser preservados e ampliados à luz da Constituição Cidadã de 1988.
       Marighella, com quem tive diversos contatos, era um homem afável, culto, que tratava seus comandados como irmãos e irmãs mais novos. Sabia ouvir críticas e reconsiderar suas posições. Sensato, jamais sugeriu que os frades devessem participar de ações armadas. Nossas tarefas eram todas de apoio, como abrigar militantes feridos ou facilitar a saída clandestina do país daqueles que, identificados, eram arduamente perseguidos.
       Como militante da utopia, Marighella é um exemplo a ser seguido por todos aqueles que se encontram, hoje, insatisfeitos com a atual conjuntura brasileira. E não ficam à espera de que as coisas aconteçam, mas assumem a proposta de Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. 
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terça-feira, 15 de outubro de 2019

O DESAMOR NÃO IMPEDIRÁ O AMANHECER



Por Marcelo Barros

No mundo inteiro, a natureza se tornou imprevisível. Chove em época de seca e faz calor em tempo de frio. O aquecimento global provocado pela sociedade humana provoca mudanças climáticas repentinas e imprevisíveis. Do mesmo modo, nas sociedades, experiências novas podem ser sufocadas ou postas em perigo.

Nesta semana, em todo o mundo, os católicos recordam que no dia 11 de outubro de 1962, em Roma, o papa João XXIII convocou todos os bispos católicos do mundo e os reuniu no Concílio Vaticano II. A tarefa do Concílio era renovar a Igreja; prepará-la para abrir-se à unidade das Igrejas cristãs, como Jesus desejou. Para isso, o papa João XXIII abriu um diálogo novo da Igreja com a humanidade. Agora, depois de quase sessenta anos, essas tarefas ainda não foram concluídas. Ao falecer em 2012, o cardeal Carlo Martini, ex-arcebispo de Milão afirmou que a Igreja Católica estava ao menos duzentos anos atrasada na história. A unidade dos cristãos continua um desafio. Quanto ao diálogo com a humanidade, depois de décadas, nas quais a cúpula da Igreja Católica se fechou a esse diálogo, o papa Francisco o retomou.

Nesses dias, no Vaticano, o papa reúne bispos vindos de todo o mundo em um Sínodo para tratar da Amazônia e a Ecologia integral como missão da Igreja. É a primeira vez na história em que um papa aponta a missão da Igreja como escuta e propõe que bispos e padres escutem a voz da Amazônia. Isso implica em ouvir o grito da terra e, ao mesmo tempo, o grito dos pobres. Supõe uma Igreja profética, capaz de assumir a causa da Amazônia, especialmente, dos povos originários.

Na Amazônia, as comunidades cristãs mais conscientes se sentem chamadas a ser uma Igreja decolonial, ou seja, libertada do colonialismo cultural. Quer ser Igreja aberta à diversidade e solidária aos excluídos/as. Isso implica coragem de reformar estruturas e dar às Igrejas locais um rosto amazônico. Significa superar o caráter centralizador que ainda domina estruturas eclesiásticas. Propõe a prática mais participativa e comunitária da fé e discernir  sinais do reino de Deus na história. A dinâmica sinodal deve ser permanente e possibilitar a escuta e participação de todas as pessoas da comunidade e aberta aos outros de fora.

O documento preparatório ao Sínodo aponta a Ecologia integral como objeto da missão da Igreja. A ecologia integral não trata só do ambiente, da fauna e da flora. É um olhar holístico sobre as relações em nossa casa comum. Ecologia integral é uma forma de compreender a vida. É pensamento, política, programa educativo, estilo de vida e espiritualidade. Isso significa resistência ao modo tecnocrático de organizar a sociedade. Conforme a carta do papa Francisco sobre o cuidado da casa comum, Ecologia integral implica diálogo entre a ecologia ambiental, econômica, social, cultural e o estilo da nossa vida cotidiana. Considera os princípios éticos do bem comum e a justiça entre as gerações (LS 156- 162). Supõe que passemos de uma compreensão convencional de ecologia para assumir que tudo está relacionado (LS 216- 221). Um modo de compreender a vida, baseado na sabedoria ancestral dos povos amazônicos, busca soluções integrais que unam os sistemas naturais e a realidade social. A crise é uma só: sócioambiental. A solução exige a luta contra a pobreza e o cuidado com a natureza (LS 139). Como canta um dos hinos com os quais as comunidades prepararam o Sínodo: “Tudo está interligado”.

Nesses dias, a partir do Sínodo que acontece em Roma, o mundo inteiro está olhando a Amazônia. Como ali os interesses econômicos e políticos são muito grandes, o embate não será fácil. Para que a proposta original do Sínodo possa ser realmente assumida pelo conjunto de bispos e pelo papa, a luta será como a do frágil Davi com sua funda de pastor contra o gigante Golias com seus armamentos e couraças poderosos.

De todos os modos, não podemos perder a esperança. Jesus disse: “A verdade vos libertará!” (Jo 8, 35). Ninguém consegue deter a voz do vento, nem afogar o grito da profecia. As pastorais sociais, comunidades eclesiais de base e o caminho ecumênico que há mais de 50 anos, a conferência dos bispos de Medellín abriu, continuam hoje, pouco compreendidas e quase marginais nas dioceses. Mas, mesmo minoritárias e pouco compreendidas, são como as chamava Dom Hélder Câmara, “minorias abraâmicas”. O patriarca Abraão era frágil, velho e estéril. Assim mesmo, Deus o tornou fecundo. Do mesmo modo, pela força divina, essas minorias proféticas se tornam, hoje, sinais de transformações importantes. No mundo e também nas estruturas da Igreja, essas minorias mantêm viva a voz do Espírito e testemunham que o reinado divino vem a esse mundo.

 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br