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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O ENREDO DA ESCOLA DE SAMBA DA MANGUEIRA: OS ULTRA-CONSERVADORES REPRESENTAM OS QUE TRAMARAM A CONDENAÇÃO DE JESUS



 Entrevista com Leonardo Boff ao UOL.


Ultra-conservadores de hoje representam os que tramaram a condenação de Jesus, diz Leonardo Boff sobre ataques à Mangueira
Entrevista a Romolo Tesi
24 de janeiro de 2020 – UOL 24 de janeiro de 2020
Teólogo Leonardo Boff
Em mais um pré-Carnaval agitado, a Mangueira vem sendo alvo de ataques na internet por conta do enredo de 2020, sobre Jesus Cristo – “A verdade vos fará livre”. A ideia, saída da cabeça do carnavalesco Leandro Vieira, da volta de Jesus pelo Morro da Mangueira, próximo dos pobres e de minorias perseguidas, representado de diferentes formas – mulher, negro, índio e outros – incomodou segmentos cristãos mais conservadores. Até ameaça de ação na Justiça a escola já sofreu.
Para comentar o enredo, e toda repercussão, o Setor 1 ouviu o teólogo Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação, que compartilha com a Mangueira de 2020 a visão de um Jesus Cristo mais humano – menos o Jesus Glorioso, mais o amigo e defensor dos pobres.
“Essa dimensão de Jesus foi especialmente enfatizada pela Teologia da Libertação, que tem nos oprimidos e nos crucificados na história seu ponto de partida e de ação. Ela quer, como Jesus, libertar toda esta gente. Essa é a mensagem clara do enredo da Mangueira”, declara o teólogo, que critica a reação mais extremista ao trabalho de Vieira: “os ultra-conservadores de hoje representam os que tramaram a liquidação de Jesus”.
“A Mangueira, com seu enredo e sua arte, fez uma pregação melhor do que qualquer uma, de padre, de bispo ou de cardeal”, afirma.
Veja a entrevista na íntegra:
O carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, escreveu um enredo em que imagina a volta de Jesus Cristo ao mundo atual, mas renascendo na Mangueira, filho de pais pobres e vítima das mesmas mazelas que os favelados sofrem atualmente, mas sendo apresentado ao Carnaval como algo libertador em relação ao sofrimento. O que acha dessa forma de ver a figura de Jesus Cristo? Pela sinopse, é possível ver quais pontos de conexão com a Teologia da Libertação?
R: Uma vez que o Filho de Deus se fez homem e se encarnou, nunca mais abandonou a humanidade. Ele continua sempre vindo e fazendo-se presente na história, principalmente no pobre, no negro, no índio, na mulher marginalizada, nos homoafetivos, no menino e menina de rua. Sua paixão dolorosa continua até o fim dos tempos. Enquanto houver irmãos e irmãs dele sendo oprimidos e novamente crucificados, lá está ele sofrendo e sendo crucificado junto com eles. Isso é doutrina tradicional da Igreja. Não há erro nenhum naquilo que a Mangueira afirma. A questão é que a maioria dos cristãos esquece essa verdade. Vive uma fé só cultural e não de convicção. Então o samba da Mangueira expressa concreta e belamente esta venerável tradição. A Estação Primeira é a Nazaré de hoje. Jesus foi pobre bem concretizado hoje pelo “rosto negro, pelo sangue índio, pelo corpo de mulher marginalizada, “pelo moleque pelintra do Buraco Quente… é o Jesus da Gente”. Maria foi uma mulher simples do povo e assistiu com profunda dor de mãe à crucificação do Filho. Por isso ela encarna bem a “Mãe das Dores-Brasil”, pois milhões de brasileiros e de brasileiras estão sendo crucificados pela expulsão de suas casas, de suas terras, pela fome e pelas doenças. Essa dimensão de Jesus foi especialmente enfatizada pela Teologia da Libertação que tem nos oprimidos e nos crucificados na história seu ponto de partida e de ação. Ela quer como Jesus libertar toda esta gente. Essa é a mensagem clara do enredo da Mangueira. Quem não entender isso, perdeu a atualidade da mensagem da Mangueira.
A Mangueira tem sido alvo de ataques da extrema-direita e de certos segmentos cristãos depois do anúncio do enredo sobre Jesus Cristo. O instituto conservador Plinio Corrêa de Oliveira organizou um abaixo-assinado e estuda um ação na Justiça contra a escola de samba. O que acha dessa postura? Como se defender de ataques como esse?
R: Não devemos esquecer que Jesus não morreu porque caiu um caibro grosso na cabeça dele, já que era como o pai também carpinteiro, nem foi atropelado e morto por um camelo pesadão. Ele foi perseguido, caluniado e condenado à morte de cruz pelos religiosos da época, os sacerdotes, os doutores da lei, pelos piedosos como os fariseus. Os seguidores ultra-conservadores do citado por você, Plínio Corrêa de Oliveira representam hoje todos estes que tramaram a liquidação de Jesus. Condenando o enredo da Mangueira eles repetem a condenação de Jesus. A Mangueira está do lado de Jesus. Os ultra-conservadores de hoje estão do lado de Caifás, de Anás, de Judas e daqueles que gritavam:”Crucifica-o, crucifica-o”. Se houver algum processo, que seja feito contra estes ultra-conservadores que desconhecem a real fé cristã e por ofenderem a Jesus nos humilhados e ofendidos de nossa história atual.
Mangueira 2020
Tanto a sinopse quanto o samba da Mangueira dizem que Jesus são muitos. A sinopse tem o seguinte trecho: “Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de seu corpo”. Essa forma de retratar Jesus tem causado reações mais irritadas e causado polêmica. Por que isso acontece? E o que acha dessa visão de Jesus, mais humano?
R: A sinopse é verdadeira, pois Jesus são de fato muitos, isto é, todos os que tiveram e estão tendo o mesmo destino de Jesus: os oprimidos pelos latifundiários, os explorados pelos patrões, as mulheres violentadas, as crianças estupradas, os LGBT discriminados. Todos estes atualizam a paixão de Jesus. Tem mais. Jesus como homem representa toda a humanidade, masculina  e feminina. A Igreja ensina que Jesus assumiu tudo o que é humano. Se não tivesse assumido todo o humano, não teria sido o salvador e libertador de todos. Em outras palavras: se não tivesse assumido o lado feminino não teria redimido as mulheres que são mais da metade da humanidade. Sabemos hoje que em cada pessoa há a dimensão masculina (o animus) e simultaneamente a dimensão feminina (a anima). Todos sem exceção possuem estes dois lados. Por que estas duas dimensões, masculina e feminina, não estariam presentes também em Jesus? Lógico que estão, pois caso contrário, não seria plenamente humano.
Historicamente, o cristianismo e o Carnaval das escolas de samba sempre tiveram uma relação turbulenta. Há casos famosos, como o Cristo mendigo da Beija-Flor, em 1989, que desfilou coberto por força de ordem judicial. No entanto, nos últimos anos, houve alguma aproximação da igreja católica, que prefere acompanhar o desenvolvimento de enredos do que partir para o confronto. Como vê essa mudança? Acha que o samba pode servir para aproximar Jesus das pessoas?
R: Há uma parte da Igreja que prefere ver apenas o Jesus glorioso, o Rei do Universo, Jesus Deus que toca o mundo pecador apenas com a fímbria de seu manto. Essa visão é reducionista. Ele é Rei sim mas com coroa de espinhos e não de ouro e de joias, é Deus sim, mas um Deus encarnado em nossa miséria, que tem fome e sede, que se alegra e que chora pela morte de seu amigo Lázaro. A primeira visão é adulçorada e contrária â história narrada pelos evangelhos. Estes mostram um Jesus homem como nós que abraça as crianças, que se compadece dos doentes, que multiplica pães e peixes para atender um povo faminto, um Jesus que é amigo de duas mulheres queridas, Marta e Maria, que se irrita porque se fazem negócios dentro do lugar sagrado, derruba as mesas com as moedas e toma o chicote e escorraça esses vendilhões. Ele é plenamente humano em cada uma destas situações. Mas principalmente foi aquele que a Mangueira bem canta que “enxuga o suor de quem desce e sobre a ladeira, que vive um amor sem fronteiras, que se coloca na fileira contra a opressão”. Esse é o Jesus verdadeiro, aquele que é solidário, que suscita esperança “que brilha mais que a escuridão”. A Mangueira deixa uma mensagem importantíssima que vale para o mundo atual, tirada do projeto de Jesus: “Não tem futuro sem partilha”. A humanidade inteira está mal porque os ricos não partilham. 1% possui a riqueza dos 99% seguintes. Só os pobres partilham o pouco que têm. E dá uma indireta clara e bem merecida ao atual governante:” Não há Messias de arma na mão”. O enredo termina com o que é mais importante na fé cristã: O domingo da ressurreição. Diz isso poeticamente: “Num domingo verde-e-rosa ressurgi pro cordão da liberdade”. Liberdade e amor são os bens mais preciosos que temos. Para confirmar isso, Cristo ressuscitou. A Mangueira, com seu enredo e sua arte, fez uma pregação melhor do que qualquer uma, de padre, de bispo ou de cardeal. A Mangueira está na linha do Papa Francisco que repete: Jesus veio para nos ensinar a viver, o amor, a solidariedade, a esperança e o gesto de ternura.
Como o senhor pretende acompanhar a Mangueira?
R: Dizem por ai que gostariam que eu desfilasse na Escola da Mangueira. Seria uma espécie também de homenagem à Teologia da Libertação, subjacente no enredo. Eu penso assim: cada um deve conhecer o seu lugar. Acho que o lugar do teólogo, por mais que apoie os pobres, o povo e reconheça o alto valor do enredo da Mangueira, não é no desfile da escola mas, no máximo, na plateia no meio do povo, desfrutando da beleza e aplaudindo. Assisti da plateia a muitos carnavais. Agora no tramontar da vida e com alguns achaques, meu lugar é apoiar a Mangueira e felicitá-la por esse belo, profundo e verdadeiro enredo, dentro do melhor da fé cristã, fé radicalmente  humana, fé libertadora.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

CONVERSAS NOTURNAS DE HELDER CAMARA COM CLARINHA






Por Eduardo Hoornaert.

Na noite entre 6 e 7 de março de 1971, ao se levantar para a habitual Vigília, Helder ouve uma voz, vinda de fora. Ele abre a porta que dá para o pequeno jardinzinho ao lado da sacristia da igreja das Fronteiras, onde mora, e escuta. Parecia voz de rosa, um pouco mais forte, embora, também, de timbre aveludado. Seria uma criança? Não descobri ninguém. Uma risada (risadinha inconfundível) e uma voz: ‘Sou eu: Clara, Clarinha, a nova irmã que o Pai lhe dá’. Era uma pedrinha linda de nosso jardim. Levei uma semana para compreender o que estava acontecendo (Carta Circular 607/3/1971, V, III, p. 103).
Ao longo das páginas 103, 119-120 e 207-209 do Tomo V, III das Cartas Circulares, escritas entre março e abril de 1971, Helder descreve como – aos poucos - compreende que a pequena pedrinha roliça e clarinha, quase luminosa, fala em nome das pedras. Pois ela é uma pedra que fala, é a Alma das Pedras. As pedras têm fama de não ter vida, não ter coração, não ter alma. Nada disso. De dentro de toda pedra, Clarinha nos espreita com um olhar onde há de tudo: bondade profunda, mas, também, brejeirice, ânsia de brincar, espírito de trela. Imaginem o que é viver no íntimo das pedras e só, de longe em longe, descobrir poetas e loucos a quem se possa manifestar (p. 103).

Clarinha gosta de falar quando a noite atinge o seu silencio mais profundo, ou quando a noite é particularmente bela, ou quando ela ou eu estamos mordidos de tristeza. Pois Clarinha está triste. Ela sofre porque os humanos, que se consideram os entes mais inteligentes da terra, não entendem que essa terra – afinal – é uma pedra, que não somente nos sustenta e possibilita a vida hoje, mas que nos origina. Dela proviemos. São Francisco falou em Irmão Sol e Irmã Lua, deixou de falar na Irmã Pedra. Mas ela não é a mais importante das irmãs, pelo menos para quem vive neste planeta? É a mais humilde, a menos reconhecida, embora nela pisemos a vida toda.

Foi em noite belíssima, sem lua, mas carregada de estrelas, que ela (Clarinha) me falou sobe Corações de pedra. ‘Que entendem os homens do nosso íntimo para falarem, com desprezo, de ‘corações de pedra’? Eles nem sabem distinguir uma pedra-menina de uma pedra-adolescente, ou de uma pedra adulta. Será que já viram uma pedra-enamorada? Já encontraram uma pedra-grávida? Já ouviram uma pedra-seresteira? Ah! o que os homens fazem com as pedras! O que sofremos quando a vaidade de Reis resolve usar-nos em pirâmides! O que mais nos doía era esmagar, com nosso peso, os ombros dos escravos. Ah! o que fazíamos para aligeirar nosso peso, tornando-nos mais suportáveis e mais leves!

Coração de pedra! Os homens gostariam que diante de uma pedra insensível, fria e má, falássemos em coração de gente? Os homens, que receberam tanto de Deus, perdem a cabeça e não percebem que ainda estão longe de atingir o segredo dos seres. Você, que me ouve e me entende, diga aos homens que não se iludam com a nossa aparente rigidez e frieza. O Pai nos faz duras, para melhor servir aos homens. Mas não temos nada de frias!

Eu teria mil perguntas a fazer a Clarinha. Mas sentia remorso de interrompê-la. E ela, que a silêncios sem-fim se vê condenada, deixou-me sentir o bater de seu coração. Ela quis ouvir o meu. Quando eu ia dizer que ela tinha coração de pássaro, ou de rosa – tão leves, tão suaves são as batidas! – ela, feliz, felicíssima, como se me anunciasse a melhor das novas, exclamou: ‘Você tem coração de pedra’ (pp. 118-120).

É um elogio. Ter coração de pedra é sentir as vibrações amorosas das pedras e das coisas em geral. Isso nos leva ao poeta chileno Pablo Neruda em sua ‘Oda a las Cosas’:

Amo las cosas loca
Locamente.
Amo
todas las cosas,
no sólo
las supremas,
sino
las infinitamente
chicas.

Ay, alma mía,
Hermoso
Es el planeta.

Oh río
Irrevocable
De las cosas.
No se dirá
Que sólo
Amé
Los peces
O las plantas.
No es verdad:
Muchas cosas
Me lo dijeron todo.
No sólo me tocaron
O las tocó mi mano,
Sino que acompañaron
De tal modo
Mi existencia
Que conmigo existieron
Y fueran para mí tan existentes
Que vivieron conmigo media vida
E morirán conmigo media muerte (Las Cosas de Neruda, Cexeci, Cáceres, España, 1998, pp. 31-32).

Escreve Zildo Rocha, que conviveu intensamente com o Bispo Helder entre 1964 e 1970: ‘É impressionante como em suas vigílias, no silêncio das madrugadas, ele (Helder) convive com rosas, formigas, pássaros ou jumentinhos, privilegiando quase sempre a porção frágil, delicada e volátil dos seres da natureza, como se, até nesse campo do mundo vegetal e animal, lhe fosse conatural e espontânea a opção preferencial pelos mais fracos e pequeninos’ (Rocha, Z., Irmão dos Pobres e Meu Irmão. Presença de Dom Helder em minha vida, Recife, Edição do Autor, 2019, p. 196).

Ao conversar com Clarinha, Helder se sente feliz:

Que privilégio
Ter olhos na noite escura,
Ter ouvidos no silêncio imenso,
Para contemplar
O amadurecer das frutas
E a formação do perfume
No coração das flores!
Ir mais longe
Só se Deus permitir
Acompanhar
No interior do homem
O nascimento do amor (Carta Circular 20-21/03/1966, III, I, p. 203).

Ele não se imagina um céu sem flores:

Os teólogos que me perdoem,
mas eu não posso imaginar um céu sem flores.,
O que fazer quando as flores murcham?
Uma roseira já me perguntou
se eu acredito que Deus ressuscitará também as flores.

Em noite chuvosa, conversa com a chuva:

Chuva, dá um jeito
De abrir goteiras
Em todo o meu corpo,
De gelar meus ossos,
De alagar minha alma.
Mas deixa em paz
Os mocambos de minha Gente
Que precisa descansar
Da realidade triste
E esquecer no sono
A fome impertinente (Carta Circular 21/03/1966, III, I, p. 204),

Descobre vida e santidade...num tijolo:

Como explicar
que o tijolo,
irmão
de milhões de tijolos semelhantes,
me fizesse
parar embevecido,
nele descobrindo
vida e santidade!?...
Vida,
porque ele existe.
É real,
Nada tem
de aparência e de sombra.
Santidade,
porque surgiu
das mãos do co-Criador,
no oitavo dia da Criação.(Carta 17-18/4/1971, V, III, p. 215).

E se opõe resolutamente contra os que pretendem que a terra seja coisa morta:

Quem disse que a terra é morta
quando ela palpita de vida!?
Fosse morta e nela morreriam
as sementes de vida que lhe confiamos.
A terra não é uma coisa, um ser inerte.
Quando, um dia, nos planos divinos
nela repousarmos, aguardando o amanhecer,
entreguemo-nos tranquilos a ela,
como quem é recebido
entre braços fraternos. (Carta Circular 8-9/7/1970, V, I, p. 284-285).

Clarinha, a clara pedra que fala, simpatiza com Helder por ele compreender que a terra não é coisa morta, por escutar a voz de uma pedra a lhe ensinar que a natureza nos envolve e que o homem não participa só da natureza animal, mas igualmente da natureza ‘inanimada’.

Afinal, estamos aqui diante de um pertinente discurso anti-capitalista. Clarinha argumenta, a seu modo, que não se trata de enxertar uma dimensão ecológica no discurso capitalista (como fazem não poucos ecologistas), mas de rejeitar um domínio sobre a natureza que não ausculte o coração das pedras, não combata o desejo capitalista a se apropriar de tudo em proveito dos ‘donos do mundo’.

Pois a simpatia que Helder sente por Clarinha – afinal – é a mesma que ele sente pelos pobres da terra:

Já não aguento, Pai,
ver tanta miséria,
ouvir tanto lamento.
Sabes
que comida
perde, dia a dia,
qualquer interesse
para quem carrega nos olhos
as imagens que eu carrego,
para quem guarda nos ouvidos
as vozes que registro para sempre? (Carta 18.19/2/1965, II, II, p. 193).

Clarinha não grita. Ela fala baixinho. Parece que só convence poetas e loucos. Sua voz ressoa no silêncio do jardinzinho ao lado da sacristia onde mora Helder Camara e –por obra e graça das Cartas Circulares desse último – chega hoje aos nossos ouvidos.

Clarinha nos espreita. Imaginem o que é viver no íntimo das pedras e só, de longe em longe, descobrir poetas e loucos a quem se possa manifestar.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.