O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

COMO SEMEAR VIOLÊNCIA


                                     


Por Frei Betto
      
       Tome-se um país de 208 milhões de habitantes. Desses, 104 milhões e 200 mil se encontram em idade laboral. Mas o país não oferece trabalho para todos. Estão desempregados 12 milhões e 966 mil. E 65 milhões e 642 mil se encontram fora do mercado de trabalho. (IBGE 31.07.2018). De que vive tanta gente?

       Desses 65,6 milhões que não estão empregados nem à procura de empregos, há jovens que preferem se dedicar aos estudos, aposentados e desalentados, ou seja, os que cansaram de buscar emprego. Vivem de quê?

       Qualquer anúncio de vagas de emprego atrai milhares de pessoas. Filas quilométricas se formam. A maioria deixa o local sem contratação. São mulheres chefes de família que, ao declararem terem filhos pequenos, são preteridas; jovens sem qualificação profissional; analfabetos funcionais (eles são 15 milhões no país, pessoas com mais de 15 anos que mal sabem ler e escrever).

       Hoje, são 17,9 milhões de trabalhadores sem carteira assinada. E o número de trabalhadores com carteira assinada no Brasil é de apenas 35,9 milhões.

       O rendimento médio mensal dos trabalhadores ocupados gira em torno de R$ 2.095. Como comparação, o salário mínimo necessário, calculado pelo DIEESE, deveria ser de R$ 3.674 – quase duas vezes mais que a renda média dos ocupados, e quase quatro vezes o salário mínimo nacional, de R$ 954,00. Ou seja, somos uma nação de salários muito baixos.

       Um dos fatores que levam empregadores a diminuírem contratações com carteira assinada é a reforma trabalhista do governo Temer, que “flexibilizou” (leia-se: precarizou) as condições de trabalho e aumentou os direitos dos patrões ao reduzir os dos empregados.

       Ora, se há cerca de 105 milhões de pessoas em idade laboral no Brasil, das quais 12,9 milhões estão sem emprego e 65,6 milhões sobrevivem da economia informal; se há 15 milhões de analfabetos funcionais; se 63,6 milhões de brasileiros(as) são considerados “ficha suja” pelo mercado, enquadrados no SPC por endividamento; o que esperar do futuro desta nação? O Unicef divulgou, em 13 de agosto, que 60 milhões de crianças e jovens brasileiros vivem na pobreza.

       No Enem de 2017, a nota máxima em redação era 1.000. Foram entregues 4 milhões de redações. Apenas 53 mereceram a nota máxima. Como obter emprego qualificado e salário digno quando sequer se sabe redigir?

       Para muitos jovens semianalfabetos e excluídos do mercado de trabalho – e eles são milhões – a “saída” é ingressar na criminalidade, em especial no narcotráfico. Não adianta o governo atuar apenas nos efeitos, como aumentar o efetivo policial e multiplicar o número de cadeias. Há que enfrentar as causas. A principal delas é a desigualdade social, seguida da falta de escola pública gratuita e de qualidade.

       Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 ocorreram 63.880 assassinatos no Brasil. São 175 mortes por dia! Em comparação com 2016 houve aumento de 2,9%.

       Como deter essa escalada da violência? Entregando uma arma a cada cidadão, como propõe certo candidato à presidência da República? Instituindo a pena de morte? Ora, se tais medidas fossem eficazes os EUA não seriam um país violento, com a maior população carcerária do mundo: mais de 2 milhões de prisioneiros (o Brasil ocupa o terceiro lugar, logo após a China).

       Conclusão: para semear a violência bastam um governo desprovido de políticas sociais; o ensino sucateado; leis trabalhistas que protegem o capital e prejudicam o trabalhador; políticos indiferentes ao bem comum; e cidadãos incapazes de transformar sua indignação em luta por um país melhor.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com

  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com


quarta-feira, 29 de agosto de 2018

HELDER CÂMARA 1931-1938: A SEDUÇÃO FASCISTA



por Eduardo Hoornaert

Certa vez, Helder Câmara me chamou à parte e me disse: ‘Não esqueça que já me deixei seduzir pelo fascismo’. Essa franca confissão, por parte do próprio bispo, acerca de um período de sua vida (entre 1931 e 1938) faz com que eu possa aqui abordar o tema espinhoso de sua ‘ilusão fascista’ sem medo de depreciar sua memória.

1. Em agosto 1931, Helder Câmara é ordenado sacerdote. O único, entre os ordenados, a não ser designado para trabalhar em paróquia. (Pelo que me consta, ele nunca trabalhou em paróquia, ao longo da vida). Isso quer dizer que seus superiores nele enxergam uma inclinação por um tipo de apostolado sacerdotal que não se circunscreva ao âmbito estritamente religioso, mas incida diretamente sobre as estruturas da sociedade.

No ano anterior, dois novos líderes aparecem no cenário político brasileiro: Getúlio Vargas (1930-1945) e Sebastião Leme (1930-1942), respectivamente na qualidade de Presidente da República e de Cardeal Arcebispo no Rio de Janeiro, Capital da República. O primeiro é herdeiro da ideologia da ‘República Velha’ de 1889, baseada na ideia da ‘separação dos poderes’ e dos primeiros passos, cambaleantes, no sentido de uma governança leiga. O segundo é um líder religioso convencido, representante de uma sólida estrutura de domínio sobre a sociedade, testada pelos séculos. Os dois ficam, ao longo de doze anos, se espreitando, desconfiam um do outro, se aproximam e se distanciam, num jogo de poder que não dispensa espionagens e inconfidências, como demonstram os biógrafos. Mas o Cardeal tem uma carta na manga que o Presidente não tem: ele é capaz de botar multidões na rua. Assim, por exemplo, organiza, em final de 1931, uma grande procissão que percorre as principais ruas da capital para acolher a imagem de Nossa Senhora Aparecida, vinda do interior de São Paulo para receber sua ‘consagração’ na Capital da República. Um enorme sucesso. Mais de um milhão de pessoas reunidas em torno da imagem da Santa. O Cardeal não perde a oportunidade para, na cerimônia final, no palanque, desafiar o líder do governo, Ele diz: ‘ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado’. E ainda, no mesmo tom: ‘o nome de Deus está cristalizado na alma do povo brasileira’, deixando implícito o seguinte pensamento: quem controla a alma do povo somos nós, os bispos. O Cardeal, logo depois dessa fala, lança o projeto de uma ‘Liga Eleitoral Católica’ (LEC), uma organização suprapartidária com o intuito de promover e defender os ‘valores católicos’ na sociedade, ou seja, de combater o ‘laicismo’ da República e reinstalar a tradicional ‘obediência’ católica no país, o que significa, concretamente, um ensino controlado direta ou indiretamente pela igreja, aulas de catecismo disfarçadas de aulas de religião, nas escolas públicas, a criação de universidades católicas (as PUCs: Pontifícios Universidades Católicas), de círculos operários, de uma legislação pública de acordo com a moral católica, da preservação dos bons costumes, etc.

2. Nisso se infiltra, inesperada e inadvertidamente, a ideia fascista. Nada, nas tendências políticas brasileiras do século XIX, sinaliza seu aparecimento, embora seus ditames encontrem ressonância na longa tradição católica. Penso que se pode dizer que a sedução fascista, num país como o Brasil, só se compreende a partir dessa ressonância ‘de longa duração’, ou seja, da concordância em determinados paradigmas cultivados durante longos séculos no seio da igreja católica.

Mesmo assim, a introdução do fascismo no Brasil tem algumas particularidades que merecem ser destacadas. O talentoso escritor Plínio Salgado (1895-1975), que é ao mesmo tempo político, jornalista, teólogo e filósofo, de tendências messiânicas e forte desejo de aparecer em cena pública brasileira, mas cheio de dúvidas quanto ao seu engajamento concreto, viaja à Itália e lá se encontra com o líder fascista Benito Mussolini. Escreve na oportunidade: ‘senti um fogo sagrado queimar em minha alma’. Ele se convence que a via política, enveredada com tanto sucesso na Alemanha com Hitler e na Itália com Mussolini, constitui uma ‘ponte para o futuro’ no Brasil. Resolve criar a Ação Integralista Brasileira (AIB). Na oportunidade, ele não é o único para elogiar a personalidade de Mussolini, pois em 1926 o próprio Papa Pio XI elogia Mussolini, um homem ‘que governa com tanta energia o destino do país, que pratica a justiça’ etc. (veja Google, verbete Pio XI). Enfim, nas palavras do papa, Mussolini aparece como o ‘salvador da pátria italiana’.

Será que Plínio Salgado, em 1932, se considera ‘salvador da pátria brasileira’? A originalidade de sua experiência peculiar de fascismo consiste no fato de ele não se basear unicamente nos focos de fascismo já existentes entre imigrantes alemães e italianos no Sul do Brasil, mas no fato de englobar, não sem originalidade e criatividade artística, símbolos de forte apelo ao imaginário brasileiro em geral, como o ‘retorno à autenticidade indígena’. Nesse sentido, ele transforma o grito ‘Anaué’ (‘presente’), da língua tupi, em palavra de ordem nas reuniões de militantes fascistas pelo Brasil afora. Outrossim, a viagem à Europa lhe ensinou a arte de apelar para simbolismos e gestos marcantes, que na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini têm grande sucesso entre a juventude, de alimentar o gosto por paradas espetaculares, insistir no apelo moralista, aprimorar a educação física, usar uniformes (as ‘camisas verdes’) e braçadeiras pretas com a letra grega ‘sigma’ (símbolo do integralismo). Muitos jovens ingressam por gosto pela disciplina militar, por paradas nas ruas, por ostentar uniformes, participar de eventos esportivos e acampamentos.

Em seu livro ‘A anatomia do Fascismo’ (Paz & Terra, São Paulo, 2007), o historiador norte-americano Robert Paxtin escreve que ‘na América Latina, o movimento mais aproximado com o fascismo europeu foi a Ação Integralista Brasileira (AIB). Os integralistas superaram de muito os clubes nazistas e fascistas, espalhados entre imigrantes alemães e italianos pelo Brasil. Salgado conseguiu com sucesso aliar um imaginário brasileiro histórico. Em 1934, o integralismo brasileiro chegou ao pique de 180.000 membros, alguns deles proeminentes em profissões liberais, empresariais e militares’. Com habilidade, Plínio Salgado introduz na AIB aspectos marcadamente fascistas, como ditadura, nacionalismo, protecionismo, corporativismo, anti-semitismo. Ele alimenta um forte apelo religioso e nisso suscita interesse na LEC, onde atuam figuras emblemáticas de um novo catolicismo leigo, encorajado pelo Cardeal Leme, como Jackson de Figueiredo (fundador do Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro), Alceu de Amoroso Lima (com quem Helder Câmara mantém correspondência desde os tempos do seminário), Plínio Correia de Oliveira, uma liderança proveniente das Congregações Marianas de São Paulo, que em 1932 se torna o deputado federal mais votado em São Paulo e nos anos 1960 fundará o movimento ‘Família, Tradição e Propriedade’ (TFP), e outros.

3. Antes de continuar a narrativa, e para ser justo com a memória de Helder Câmara, há de se fazer aqui uma observação importante. Não se pode projetar para os anos 1930 no Brasil a ideia do fascismo que veio a predominar, no mundo inteiro, após os terríveis anos 1940-1945, ou seja, após a Segunda Guerra Mundial. Seria interpretar dados históricos a partir de contextos posteriores, ou seja, praticar um anacronismo. Em 1930, o fascismo se apresenta como um movimento que, ao combater ao mesmo tempo o comunismo e o liberalismo burguês, ganha a simpatia de muitos. Um movimento de redenção moral, atrativo à juventude, mesmo sendo de cunho autoritário. Quando, no ano 1931, Helder aparece em cena política, a ‘sedução fascista’ é compartilhada pela maioria dos agentes católicos do país, desde o Cardeal Leme no Rio de Janeiro até leigos comprometidos, em paróquias situadas nos mais afastados rincões do país. Há de se considerar também, para ser justo com a memória de Helder Câmara, que o jovem padre faz, desde sua aparição em cena pública, uma decidida opção pela educação e nisso persevera a vida toda. Ao longo de muitos anos, até sua nomeação de bispo auxiliar no Rio de Janeiro, ele permanece atuando em área educacional, seja diretamente como professor e conferencista, seja indiretamente no aparelho burocrático ligado ao Ministério da Educação na Capital da República.

4. Feita essa ressalva, acompanhemos o jovem sacerdote que, aos 23 anos incompletos, mergulha de vez no turbulento cenário político do Ceará. Ele já carrega na bagagem, desde seus últimos anos no seminário, a experiência de viajar pelas paróquias à procura de adesões à Liga Eleitoral Católica (LEC). Uma experiência que colabora com o sucesso da LEC no Ceará, onde em 1934 ela consegue emplacar Menezes Pimentel como Governador. Saindo do seminário, num tempo recorde, Helder reorganiza a Juventude Operária Católica (JOC), funda a Liga dos Professores Católicos, assim como um Sindicato para operárias e empregadas domésticas.
Essas atividades o colocam em contato com o fascismo. Quando, de visita a Fortaleza, Plínio Salgado se encontra com Helder, ele se declara ‘vivamente impressionado pela personalidade’ do jovem sacerdote. Será que nele vislumbra o que mais falta à sua ‘Ação Integralista’, ou seja, um líder carismático? Plínio sabe que, afinal, o fascismo está dando certo na Alemanha e na Itália por ser liderado por figuras carismáticas, o que não acontece na França. Eis o sacerdote embrulhado num jogo da qual ninguém é capaz de medir o alcance. Ele percebe a mútua atração entre a LEC e a AIB de Plínio Salgado e compara o que acontece no Brasil com o que está em marcha na Itália, onde a hierarquia católica flerta com o fascismo de Mussolini. Não lhe escapa que os fascistas oferecem ao catolicismo oportunidades inesperadas: o apoio das massas, jovens entusiasmados e disciplinados, uma forte motivação, uma disciplina rígida, uma fórmula mágica para afastar os trabalhadores do marxismo e superar a desordem. Como escreve Paxton, ‘os fascistas oferecem uma nova receita de governo, contando com o apoio popular, sem implicar numa divisão do poder com a esquerda, e sem representar qualquer ameaça aos privilégios sociais e econômicos e ao domínio político dos conservadores. Eles não ameaçam a classe conservadora do Brasil, que sempre teve em mãos as chaves do poder’. Enfim, como ressalta o mesmo Paxton, ‘o fascismo pode ser definido como uma forma de comportamento político marcada por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza, nas quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas engajados, operando em cooperação desconfortável, mas eficaz com as elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e passa a perseguir objetivos de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora e sem estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza’.

5. O historiador cearense João Alfredo de Sousa Montenegro, em seu livro ‘O Integralismo no Ceará’ (Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1986), descreve de modo pormenorizado a atuação de Helder Câmara no movimento fascista em Fortaleza. Ele o mostra ardoroso, dinâmico, excelente orador, bom escritor, hábil articulador, principalmente muito motivado e decidido de defender o fascismo ‘acima de pau e pedra’. Num artigo publicado no Jornal ‘O Nordeste’ (da propriedade da Arquidiocese) em 4 de setembro de 1934, intitulado ‘O Integralismo em face do Catolicismo’, Helder escreve: o nacionalismo orgânico das pátrias totalitárias (leia: Alemanha de Hitler e Itália de Mussolini) é o sentido novo do século(Montenegro, p. 170). Ele considera o encontro entre catolicismo e integralismo ‘providencial’ e fundamenta suas opiniões no verdadeiro intelectualismo tomistaO ideal integralista destaca-se, no conjunto secular dos sistemas, pela dose elevada de dados construtivos (Montenegro, ibidem). Enfim, o padre Helder vê o Integralismo plenamente compatibilizado com o catolicismo. É a única força capaz de combater eficientemente o marxismo, fruto de um projeto determinista. O impetuoso sacerdote chega a justificar a violência, embora em termos meio crípticos: a violência integralista traduz a luta interior profunda e purificadora com que nós temos de violentarNós somos os primeiros grandes violentados pelo nosso ideal. Violentos também seremos, não o negamos, contra os inimigos da pátria e os inimigos de Deus, mas quem lê os nossos escritos e conhece nossas doutrinas, sabe que tudo subordinamos à moral (Montenegro, p. 173). O próprio sacerdote, em bilhetes dirigidos a companheiros na lida fascista, se subscreve comosacerdote camisa-verde do Ceará. Efetivamente, veste a camisa verde em baixo da batina, o que não deixa de ser altamente simbólico. Significa a adesão ao princípio da uniformidade, do alinhamento autoritário a um pensamento único, da concordância, do corporativismo, da unanimidade e da obediência. No caderno fotográfico inserido na biografia de Helder Câmara redigida por Piletti & Praxedes, (‘Dom Hélder Câmara, Entre o Poder e a Profecia’, Atica, São Paulo, 1997), há uma foto significativa (embora tecnicamente deficiente) de Helder discursando, de braços levantados, diante de militantes integralistas em pé.

Se os gestos e as palavras de Helder hoje nos parecem exagerados e suas atitudes provocativas, não podemos esquecer que ele, no fundo, está em sintonia com o grupo de leigos católicos do Rio de Janeiro, convertidos pelo Cardeal Leme, como Jackson de Figueiredo (fundador do Centro Dom Vital e da revista ‘A Ordem’), Farias Brito, Alceu Amoroso Lima (empresário convertido em 1928) e Plínio Correia de Oliveira. Mesmo alguns líderes negros, como Abdias do Nascimento e João Cândido, se sentem atraídos pela LEC e pela AIB. O Centro Dom Vital exerce grande influência sobre o grupo de jovens idealistas de Fortaleza, como Jeová Mota, Ubirajara Índio do Ceará, Severino Sombra e Helder Câmara. Os dois últimos lideram o grupo, imitam o modo de trabalhar do referido Centro, escrevem artigos para ‘O Nordeste’, o jornal católico de Fortaleza e para outros jornais. Eles chegam a lançar uma revista, intitulado ‘Bandeirantes’, bem mais dinâmico e irrequieto que ‘A Ordem’, sua congênere carioca.

O Presidente Getúlio Vargas, embora demonstre simpatias pela AIB e pelo fascismo europeu, não se compromete e fica distante, avesso e ao caráter provocativo de demonstrações militarizadas na rua e do Integralismo em geral. Mas não se pode negar que, nos inícios dos anos 1930, se instala no Brasil um movimento expressivo, potencialmente explosivo por ser de caráter autoritário, em diversos pontos idêntico a igreja católica, ansioso por alcançar um poder hegemônico sobre a sociedade, habitado pela ilusão de se pensar que sua tarefa consiste em defender, com garras e dentes, o ideal de uma sociedade teocrática.

Em 1934, o ano da nova Constituição brasileira, a LEC se torna partido político no Ceará (é o único estado da Confederação onde isso acontece). Nas eleições de outubro 1934, a LEC supera PSD (Partido Social Democrático) e consegue emplacar Menezes Pimentel como Governador. Nisso ajudam bastante posturas provocativas expressas por jornalistas improvisados como Helder Câmara, que não receiam em usar expressões como ‘exigências católicas’, ‘reivindicações católicas’, ‘imperativos do Partido de Deus’, ‘ofensivas contra o laicismo do Estado brasileiro’, que defendem o ensino religioso (leia: catequese) nas escolas públicas e que combatem ao mesmo tempo o liberalismo, a democracia, o comunismo, o espiritismo e o protestantismo. Por meio da LEC, a bandeira fascista passa para mãos católicas. Exemplos: o padre Helder promove a aproximação entre a Juventude Operária Católica (a JOC) e a Legião Cearense do Trabalho, capitaneada pelo amigo Severino Sombra e faz com que ambos os movimentos se tornem vertentes da Ação Integralista Brasileira no setor da Juventude. O padre Helder leva igualmente o ‘Movimento da Sindicalização Operária Católica Feminina’, por ele fundado em julho 1933 com o objetivo de reunir e defender os direitos das lavadeiras, engomadeiras, domésticas, cozinheiras, amas e copeiras da cidade, para a AIB, mesmo sob a acusação de ‘despertar o rancor entre patroas e empregadas’ e se prestar à ‘autopromoção e exibição pessoal do jovem padre, as custas das operárias’ (Piletti, p. 84)

As atividades do padre Helder chegam a um paroxismo no ano 1935. Ele é nomeado Diretor da Instrução Pública no Ceará, um dos postos mais altos do Governo, no momento em que o Governador Menezes Pimentel dá sinais de se distanciar dos posicionamentos da Ação Integralista. Como Getúlio Vargas na Capital, Pimentel teme manifestações públicas de cunho provocativo e ostentações militarizadas nas ruas. Sentindo a pressão por parte do Governo, Helder, após cinco meses no cargo, pede demissão. Nisso certamente colaborou um vago sentimento que o Arcebispo Dom Manuel não o apoia mais como antes. Além disso, correm boatos sobre um pretenso caso de namoro seu. Tudo isso faz com que, no segundo semestre de 1935, Helder entre no que Piletti chama ‘inferno astral’ (Piletti, p. 115).

6. Efetivamente, aos 27 anos, uma crise afeta o jovem padre. Ele percebe que seu impulso o levou longe demais e que ele corre o perigo de entrar numa ‘espiral da violência’, uma evolução que mais tarde condenará com muita insistência. Ele sente o contraste entre os quatro primeiros anos de sacerdócio e a ‘Regra de Vida’, acalentada em tempos de seminário, percebe que é relativamente fácil formular proposições generosas, mas que o problema consiste em agir dentro do complexo entrelaçamento de influências, de fios entremeados, que ele não sabe desfiar. Só muito mais tarde, ele será capaz de avaliar o real funcionamento das estruturas, tanto seculares como religiosas, em que está metido. Só pouco tempo antes de morrer, ele faz uma surpreendente avaliação acerca da igreja católica, quando confidencia a um grupo de amigos que em sua opinião a igreja está atrelada à engrenagem internacional do dinheiro e não vai poder livrar-se dele(depoimento de Sebastião Armando Gameleira em Félix Filho, ‘Além das ideias’, Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2012, p. 19). Na mesma oportunidade, ele comenta o fato que o Papa João Paulo II, ao visitar o Brasil em 1982, se deixa acompanhar por Monsenhor Marcinkus, diretor do Banco do Vaticano, metido em processos de corrupção e diz: quando se é beneficiado dessa maneira, fica-se de mãos atadas (ibidem, p. 18). Não posso me imaginar o jovem padre Helder, em 1936, dizendo coisas desse tipo. Metido num sistema marcado pelo autoritarismo de uma hierarquia rigidamente organizada (‘a igreja não é uma democracia’), tendo de lidar com políticos que não dizem o que pensam e fazem o que não dizem, ele mesmo sem saber ao certo como enveredar num caminho de melhoria para a maioria da população, Helder se sente inseguro. Percebe vagamente a ambiguidade com que se recorre ao termo ‘comunista’ para conquistar espaço político e, de outro lado, vislumbra a permanência cruel e mortífero do sistema escravagista, camuflada por expressões como ‘bondade’, ‘cordialidade’ e ‘aversão à violência’, pretensamente atributos das classes dirigentes do país. Lembro aqui que o livro ‘Raízes do Brasil’, de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), em que se apresenta o modelo do ‘homem cordial’, sai em 1936, exatamente no ano da crise de Helder. Não sei se naquele tempo ressoam ao seu ouvido as seguintes palavras de Joaquim Nabuco, contrárias às teses de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda: ‘diz-se que, entre nós, os senhores são bons. Acontece que a bondade dos senhores não passa de resignação por parte dos escravos’. Não há, naqueles anos, menção de reflexões, por parte do padre Helder, em torno da questão crucial da escravidão persistente no Brasil. Só em 1955, desafiado pelo Cardeal francês Gerlier, o então bispo auxiliar do Rio de Janeiro conseguirá finalmente segurar uma ‘bússola’ na mão e saberá ‘onde está o Norte’. Mas isso é uma outra história.

7. Voltemos à cena cearense. Ao participar de manifestações provocativas, por parte da Ação Integralista Brasileira, contra as reticências do governador e do arcebispo, Helder percebe que coloca esse último numa virtual rota de colisão com Dom Leme, o Cardeal no Rio de Janeiro, que proíbe os padres a se meter em política. Ele entrevê, inclusive, problemas com o Núncio Apostólico. Diante disso examina, por conta própria (e com a silenciosa aquiescência do arcebispo), as possibilidades de sair do Ceará e conseguir, junto a amigos, um emprego na área da Educação no Rio de Janeiro, na época Capital da República. Resolve apelar para Manuel Lourenço Filho (1897-1970), que trabalha no Ministério da Educação no Rio de Janeiro após uma breve mais significativa atuação no campo da educação pública em terras cearenses. Proveniente do Estado de São Paulo e expoente da ‘Escola Nova’, com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, ele faz parte de uma vanguarda de educadores que milita contra a elitização da inteligência, a favor das classes populares e do ensino secular. Com isso, entra inevitavelmente em rota de colisão com a ‘escola tradicional’, de cunho religioso, defendida pela igreja católica. Em 1922, Lourenço Filho aceita um convite por parte do governo cearense e, aos 25 anos, se torna Diretor da Instrução Pública no Ceará, função em que permanece apenas dois anos, o tempo suficiente para promover em todo o estado uma educação pública de qualidade (até hoje existe o ‘Colégio Lourenço Filho’ em Fortaleza), uma experiência que repercute em todo o Brasil e mesmo fora dele. Em diversas ocasiões, Helder hostiliza o posicionamento assumido por Lourenço Filho, mas, mesmo assim, estando em apuros, apela para ele e lhe solicita falar com o Ministro de Educação do Governo Vargas, o católico Gustavo Capanema (1900-1985), para ver se ele consegue uma colocação na área da educação no Rio de Janeiro. É com grandeza e numa demonstração de maturidade que Lourenço Filho atende a um pedido de seu sucessor no cargo de Diretor da Instrução Pública no Ceará, Helder Câmara, que lhe deposita inteira confiança, com comprova o seguinte telegrama por ele enviado e que está publicado na biografia de Piletti: Exultaria amigo conseguisse Capanema margem colaborar instituto ou ministério. Solicitaria convite seu possa mostrar mover arcebispo (Piletti p. 117).

8. Lourenço Filho ‘salva’ Helder Câmara, que consegue o que pede e viaja para o Rio de Janeiro. Não se pense, contudo, que ele largue de vez o ideal fascista. Nem ele, nem a maioria dos militantes católicos da época. Ainda em fevereiro 1937, por ocasião de um debate durante a VI Conferência Nacional de Educação, promovida, na cidade de Fortaleza, pela Associação Brasileira de Educação (ABE), ele faz um apelo dramático a seus correligionários da Confederação Católica de Educação, para que, com ele, se retirem do recinto. Tal gesto, que deixa vazio o auditório naquela noite, se deve à inutilidade dos esforços seus e de seus pares para influírem nas conclusões daquele evento, em face do posicionamento de seus promotores, partidários da Escola Nova e defensores da escola pública, obrigatória, gratuita e laica, um posicionamento contrário à orientação da igreja católica. O padre Helder é intransigente e afirma sem mais nem menos que a ‘Escola Nova’ retira a educação das mãos da família, destruindo, assim, o princípio da liberdade do ensino (Rocha, Zildo, A Dimensão sócio-política da religião na vida e na obra de Dom Helder Câmara, Palestra na Câmara Municipal de Olinda em Sessão póstuma de Homenagem a Dom Helder e publicada na terceira edição de um livro do mesmo autor, intitulado ‘Helder, o Dom, uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil’, Vozes, Petrópolis, 1999). Zildo Rocha acrescenta: ‘causa-nos espanto o episódio da surra infligida, ainda por ocasião daquela VI Conferência Nacional (da Educação, veja acima), ao escolanovista Edgar Sussekind de Mendonça, por um grupo de jovens integralistas, comandados pelo próprio Padre Helder, que ostentava por baixo da batina preta, entreaberta ao peito, a camisa verde integralista, em desagravo por um insulto e um desafio feitos durante um dos debates’ (ibidem).
Ao deixar Fortaleza, Helder continua sintonizado com uma hierarquia católica que acompanha com simpatia as vitórias de Hitler na Europa, como consta na manchete do Jornal A Razão (do Rio de Janeiro) de 15 de março de 1938: ‘Um povo, um reich, um führer. A entrada triunfal de Hitler em Viena. O Cardeal Arcebispo manda celebrar missas em ação de graça pela reincorporação incruenta da Áustria à Alemanha’. Enquanto a hierarquia católica continua atirando por todos os lados, contra o comunismo, o protestantismo, a maçonaria, o espiritismo, enfim, contra tudo que não é católico, ela só abandona definitivamente o ideal fascista em agosto 1942, quando o governo de Getúlio Vargas finalmente rompe com a Alemanha.
 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

A PARTIR DOS POBRES, IGREJA PARA TODOS



Por Marcelo Barros

Em diversos países da América Latina, o governo imperial dos Estados Unidos continua a financiar os golpes nossos de cada dia. O Comitê de Direitos Humanos da ONU acaba de reconhecer Lula como prisioneiro político e exige que a justiça brasileira respeite seus direitos sociais e políticos. No Brasil, uma campanha eleitoral confusa e pouco representativa do que o povo deseja tenta mascarar a realidade.
Tudo isso nos faz lembrar que, há 50 anos, o Brasil e vários países do continente sofriam ditaduras militares. Como ainda hoje, a maioria dos governantes, ao invés de regular as relações dos diversos grupos sociais, tinha como tarefa controlar os pobres e garantir a manutenção da escandalosa desigualdade social.
A novidade foi que naquele 68, em vários lugares do mundo,  explodiam revoltas e movimentos de jovens. Na América Latina, os bispos católicos do continente se reuniram na cidade de Medelllín (Colômbia) para a sua segunda conferência geral.  A conferência de Medellín aconteceu há exatamente 50 anos, de 24 de agosto a 06 de setembro de 1968. Teve como tema “A missão da Igreja no processo de transformação social e política da América Latina”. Pela primeira vez, um papa atravessou o Atlântico e Paulo VI abriu a conferência de Medellín. Na época, Dom Helder Camara e depois Dom Pedro Casaldáliga afirmaram: “Para a América Latina, Medellín foi um verdadeiro Pentecostes”. Significou o nascimento de uma Igreja Católica com cara latino-americana. O próprio tema deixava claro que a missão da Igreja não é apenas religiosa, nem principalmente cultual. Em Medellín, os bispos nos ensinaram que a missão da Igreja é testemunhar e ensaiar no mundo o reino de Deus, isso é, o projeto divino de justiça e de paz. Entre muitas afirmações e propostas importantes, em Medellín, os bispos concluíram que a Igreja deve ser pobre, missionária e pascal, ou seja, como diz o papa Francisco “em saída”. Sua missão é servir como libertadora “de toda a humanidade e de cada ser humano por inteiro” (Cf. Conclusões de Medellin, 5, 15).
A partir de Medellín, surgiu no continente um novo modo de ser Igreja que se expressou nas comunidades eclesiais de base, nos grupos bíblicos, nas pastorais sociais e na inserção de uma parte das Igrejas na caminhada da libertação. De 1968 para cá, o mundo mudou muito. O Império norte-americano conseguiu invadir vários países. Ele provocou várias guerras, vendeu e usou suas armas. Matou uma boa quantidade de pobres, africanos, asiáticos e latino-americanos, considerados descartáveis.
Quanto à Igreja Católica, ela sobrevive a várias crises e escândalos de diversos tipos. No entanto, a traição mais séria dos eclesiásticos mais tradicionais não é em matéria de moral sexual. É questão de humanidade. O que está vindo à tona como omissão, ou conivência culpável de autoridades religiosas atesta uma insensibilidade em relação a vítimas inocentes. No entanto, revela um desvio mais profundo e radical: o afastamento do caminho do evangelho de Jesus. Esse não se interessou em fazer uma religião ou em deixar no mundo uma estrutura de poder que se auto-protegeria. Conforme o evangelho de Lucas, seu projeto, proclamado, em seu primeiro discurso público foi: “O sopro (Espírito) de Deus veio sobre mim e me enviou para trazer a libertação dos oprimidos, curar os doentes e  proclamar um ano de graça (jubileu) de libertação para todos” (Lc 4, 16- 21).
No decorrer da história, os eclesiásticos reinterpretaram esse texto em um sentido espiritualizador. A cura se refere aos problemas interiores e a libertação é a salvação da alma. Aqui, o mundo pode continuar dominado pelos senhores do dinheiro e do poder. Infelizmente, ainda há eclesiásticos que, enquanto podem, lhes são muito próximos. Em séculos passados, muitos bispos e padres davam assistência espiritual aos senhores de escravos e, de vez em quando, eles mesmos recebiam alguns escravos como presentes. Essa forma de interpretar a fé e a espiritualidade se mantém muito forte seja no Congresso Nacional, onde está bem representada pela chamada “bancada evangélica”, como pelo comércio religioso, que cada dia é mais lucrativo. Agora, através dos 50 anos da conferência de Medellín e das crises pelas quais passa a Igreja, os cristãos e cristãs são chamadas a “ouvir o que o Espírito diz, hoje, às Igrejas” e “voltar ao seu primeiro amor” (Ap 2, 5- 7). Na Bíblia, o primeiro amor do povo foi o Êxodo, onde conheceu intimamente a Deus, em meio à caminhada da libertação. É preciso voltar a essa mística da caminhada libertadora. 
Quando a Igreja passa a olhar apenas para si mesma e se preocupa apenas com suas atividades internas, se torna idólatra. Deixa de ser sinal de Jesus Cristo e apresenta uma imagem mesquinha e indigna de Deus. Ainda bem que, nas periferias, com ou sem apoio oficial, as comunidades e pastorais proféticas continuam obedecendo a voz do Espírito que sopra onde quer. Como disse Paulo, “onde houver espírito de liberdade, aí está o Espírito de Deus” (2 Cor 3, 17).
 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

CRISE POLÍTICA E DESESPERANÇA GERAL


por Leonardo Boff

Um dos efeitos perversos de nossa crise nacional é sem dúvida a desesperança que está contaminando a maioria das pessoas.Ela se manifesta pela angústia de não ver nenhum horizonte do qual se possa vislumbrar um solução salvadora. Emerge a sociedade do cansaço e da perda da alegria de viver.

São as consequências da ausência de sentido, de que tudo vai continuar na mesma lógica, feita de corrupção, falsificação das notícias (fakenews) e daí da realidade, maledicência generalizada, a dominação dos poderosos sobre as massas entregues à sua própria sorte.

Tal desolação alcança também a percepção do futuro de nosso mundo e da humanidade, pouco importa o que possa ocorrer. Bem observou o Papa Francisco em sua encíclica “sobre o cuidado da Casa Comum”: ”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Para as próximas gerações poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O estilo de vida atual, por ser insustentável, só pode desembocar em catástrofes”(n.161). Mas quem pensa nisso a não ser quem acompanha o discurso ecológico mundial?
Portanto, além das múltiplas crises sob as quais sofremos, temos ainda esta sombria de natureza ecológica.

Neste contexto voltam os pensamentos de coloração niilista como o do Nobel em biologia Jacques Monod:”É supérfluo buscar um sentido objetivo da existência. Ele simplesmente não existe. Os deuses estão mortos e o homem está só no mundo” ( O acaso e a necessidade, Vozes 1979, p.108). Ou o famoso C. Levy-Straus que tanto amava o Brasil deixou escrito no seu admirável ”Tristes trópicos” (1955):”O mundo começou sem o homem e terminará sem ele. As instituições e os costumes que eu teria passado a vida inteira a inventariar e a compreender, são uma eflorescência passageira de uma criação em relação com a qual elas não têm sentido, senão, talvez, aquele que permite à humanidade a desempenhar o seu papel”(p.477).

Mas será que o ser humano não é o inverso de um relógio? Este funciona em si mesmo e anda conforme seu mecanismos internos. O ser humano não é um relógio. Ela anda bem quando estiver em sintonia permanente com o Todo que o envolve por todos lados e está para além dele mesmo. Portanto, temos que deixar de lado todo antropocentrismo e assumirmos uma leitura mais holística do sentido da vida.
Diferentemente pensava o físico britânico Freeman Dyson (*1923):”quanto mais examino o universo e os detalhes de sua arquitetura, mais acho evidências de que o universo sabia que um dia, lá na frente, nós seres humanos, iríamos surgir”(Disturbing the Universe, 1979, p. 250). Quase com as mesmas palavras o diz talvez o maior cosmólogo atual, Brian Swimme (The Universe Story,1996 p.84).

As tradições espirituais e religiosas são um hino ao sentido da vida e do mundo. Por isso observava o grande estudioso das utopias Ernst Bloch em seus dois grossos volumes O princípio esperança: “Onde há religião aí há sempre esperança”.

A questão do sentido é inadiável. Cito aqui o mais critico dos filósofos Immanuel Kant:”Que o espírito humano abandone definitivamente as interrogações metafísicas (do sentido do ser e da existência) é tão inversossímil quanto esperar que nós para não respirar um ar poluído, deixássemos, uma vez por todas, de respirar”(Prolegomena zu einer jede künftigen Metaphysik, A 192, vol.3 p.243).

Porque o Cristo do Corcovado se escondeu atrás das nuvens, não significa que tenha deixado de existir. Ele está lá no alto da montanha estendendo seus braços e abençoando a nossa sofrida população.

No Brasil de hoje devemos recuperar a esperança de que o legado final da presente crise será a configuração de um outro tipo de Estado, de política, de partidos, de justiça e do próprio destino do país.

Termino com o profeta Jeremias que viveu no tempo do cativeiro babilônico sob o rei Ciro. Os habitantes da Babilônia zombavam dos judeus porque já não cantavam suas canções e, desanimados, dependuravam seus instrumentos nos galhos dos cicómoros. Pergurtaram a Jeremias:”Você tem esperança”? Ao que ele respondeu: “eu tenho esperança de que o rei Ciro com todo o seu poder não poderá impedir o nascimento do sol”. E eu acrescentaria não poderá impedir o amor e as crianças que daí nascerem e renovarem a espécie humana.

Semelhante esperança alimentamos nós de que aqueles que provocaram esta crise, rasgaram a Constituição e não seguiram os ditames da justiça não prevalecerão. Sairemos mais purificados, mais fortes e com um sentido maior do destino a que nosso país está chamado em benefício para todos, a começar para os mais pobres e para a inteira humanidade.

Boff é teólogo e filosofo e escreveu: Brasil: concluir a refundaçãol ou prolongar a dependência, Vozes 2018.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

OS SANTOS E SEU AVESSO




por Frei Betto

       Outrora eu nutria profunda veneração aos santos. Homens e mulheres capazes de tantos milagres só poderiam ter existido em outras épocas. Supunha que eu jamais conheceria alguém como aqueles seres sobrenaturais, isentos de preocupações triviais e simples carências humanas.

        Ao contemplar suas imagens nas igrejas, suas figuras em ilustrações e santinhos, nada daquilo me parecia humano; eram seres privilegiados até na beleza física, no olhar beatífico, envolvidos por uma auréola de pureza que jamais eu reconheceria em qualquer dos meus contemporâneos.

       Com o tempo, deixei os santos nos altares e nas estampas, e fui procurar algo mais humano, mais condizente com a realidade trágica e arriscada da nossa condição terrestre. 

      Haveria um ser que sentisse raiva e medo, desafiasse os inimigos, chorasse a morte dos amigos, desrespeitasse a lei, rompesse a tradição, sofresse angústia e fome? Alguém repelido como um portador de hanseníase, perseguido como um bandido, caluniado como uma mulher adúltera, e que andasse foragido como um criminoso e acabasse morto como um pária, da maneira mais ignominiosa?  E haveria neste mesmo ser humano a plenitude do amor de Deus?

      Perdi os santos do céu, mas encontrei este homem na Terra. Ele não tinha a delicadeza nem a beleza dos santos; não provocava a admiração dos reis, nem suscitava a compaixão dos magistrados. Era tão sem atrativos como os bêbados da madrugada, as prostitutas das ruas infectas, os mendigos estirados nas calçadas, os loucos molhados pela própria baba, os presos que nos fitam entre grades, os hansenianos de mãos e pés atrofiados. 

       Este homem identificava-se com essa escória, fazia-se um deles, entregava-se por eles, e a quem desse um banquete, sugeria não convidar a família nem os vizinhos ricos. Convidasse os pobres, os estropiados, os coxos e os cegos, para se sentir feliz porque esses não têm com que lhe retribuir (Lucas 14, 12-14).

      Ainda assim houve quem acreditasse neste homem. Houve quem visse, naquele pregador ambulante, a plenitude do amor de Deus. Não foram muitos, nem eram ricos e poderosos. Foram os pobres, os humildes, os que têm fome de justiça e constroem a paz. 

       Houve também quem visse nele um perigo a ser contido: “Se o deixamos continuar assim, todos crerão nele, e virão as tropas estrangeiras e destruirão nosso lugar santo e nossa nação. Convém que morra um homem por todo o povo, antes que o povo todo pereça. A partir desse dia resolveram matá-lo” (João 11, 45-53).
      Ele fugiu. “Não andava em público” (João 11, 54). Passou à vida clandestina. “Os chefes dos sacerdotes e os fariseus tinham dado ordem para que se alguém soubesse onde ele estava, o denunciasse, afim de que pudesse ser preso” (João 11, 56). 

      De fato, ele “foi torturado e suportou, não abriu a boca. Por um iníquo julgamento foi condenado, sem que ninguém pensasse em defendê-lo. Deram-lhe sepultura ao lado de facínoras e, ao morrer, achava-se entre bandidos, se bem que não tenha cometido nenhuma injustiça e jamais dito uma mentira” (Isaías 53, 7-9).

      Assassinado por dois poderes políticos, este homem ressuscitou. Era o próprio Deus entre nós. Mas quem o reconheceria sob tanta humilhação e sofrimento? “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens. Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na Terra e nos infernos. E toda língua proclame, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é o Senhor” (Filipenses 2, 6-11).

       Hoje, muitos que almejam o poder se esforçam por transformar este homem em cabo eleitoral. Em nome de Jesus, eles criaram um deus à sua imagem e semelhança... E descartam de seus projetos e programas os direitos dos pobres e excluídos como prioridade.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com


quarta-feira, 22 de agosto de 2018

RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA, UNIDOS PELA JUSTIÇA E PAZ!




Ele, porém, respondeu: “Eu vos digo: se eles se calarem, as pedras gritarão” Lc 19, 40

Estamos vivendo tempos difíceis no Brasil. Males que pretendíamos ter deixado para traz voltam a nos atormentar e fazem sofrer o nosso povo. Pobreza absoluta, miséria e fome, desemprego e subemprego, mortalidade infantil, restrição e piora dos serviços públicos de educação e saúde, aumento da violência urbana e rural são algumas das pragas que sonhávamos estarem acabando. Tempos moldados pelos interesses do capital financeiro e seus principais aliados, que se utilizam dos grandes meios de comunicação e tentam exercer uma hegemonia ideológica sobre o conjunto da sociedade. Em 2016 aconteceu um Golpe de Estado no Brasil. Votou-se o “impeachment” da presidenta Dilma, por argumentos hoje reconhecidos como falaciosos. 

Após isso, implantou-se um governo sem legitimidade alguma que tem implementado um programa econômico autocrático, que destrói as políticas sociais e retira direitos, servindo a uma agenda neoliberal, seguindo plenamente os ditames do Capital, na contramão do projeto aprovado pela população nas eleições majoritárias de 2014. Esse “governo” diminuiu substancialmente a participação da Petrobras no Présal, vinculou os preços dos combustíveis ao mercado internacional, cortou o gasto público em despesas sociais por duas décadas, aprovou a terceirização da mão de obra em atividades fim, fez uma Reforma Trabalhista à imagem e semelhança dos interesses patronais, diminuiu drasticamente o número dos beneficiários do Bolsa Família, reduziu as verbas para saúde e educação, desmontou a fiscalização do combate ao trabalho escravo, estancou a demarcação de terras indígenas e quilombolas, aniquilou a Reforma Agrária em nosso país e busca liberar a compra-venda de terras para o mercado internacional, inclusive de terras de fronteiras.

Desde 2016, o orçamento federal sofre cortes substanciais em políticas sociais: universidades e institutos federais deixados à míngua; hospitais universitários e institutos de pesquisas sendo desmontados; redução orçamentária da CAPES, impedindo a formação continuada de professores; a agricultura familiar abandonada, a indústria nacional, especialmente a construção civil, naval e a do petróleo, jogada ao ocaso.

Os resultados desse horror logo repercutiram para as maiorias sociais. Houve um grande aumento do desemprego, precarização do trabalho e a renda média das famílias dos trabalhadores caiu, deixando milhões ao desalento. 

 Em meio a essa barbárie social, Itaú-Unibanco, Bradesco e Santander tiveram em 2017, lucro líquido de R$ 53,9 bilhões1. Valor concentrado, fundamentalmente, por quatro famílias, livre de qualquer imposto ou contribuição social. Ou seja, quase duas vezes o valor do Bolsa-família para todo ano de 2018 que atenderia a 39 milhões de famílias beneficiárias.

 Além disso, está em curso no Brasil um processo agressivo de transferência de renda do Estado para setores privilegiados, por meio de isenção de impostos, do perdão de dívidas e do sistema da dívida pública.  O insaciável mercado mostra uma voracidade infinita ditando reformas que aumentarão ainda mais os seus escandalosos lucros, sem se importar com a escalada de sofrimento humano.
 A ênfase que se dá ao combate à corrupção dissocia-se do enfrentamento às gritantes desigualdades sociais. Floresce um discurso que instrumentaliza esta luta contra a corrupção, que se tornou mecanismo para subverter a agenda pública nacional da Constituição de 1988, cujos os objetivos fundamentais são: construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 

 Nesse quadro, os donos do poder fazem verdadeiros malabarismos jurídicos e políticos com a intenção de perdurar no tempo o atual modelo: judicialização da política e politização da justiça com notória seletividade e perseguição. O autoritarismo e a parcialidade do nosso sistema judicial aviltam o Estado democrático de direito.

Exemplo disso é a substituição da vontade popular por um processo casuístico que prendeu o ex-presidente Lula e tenta inviabilizar sua candidatura à Presidência da República.  

 As eleições de 2018 serão uma das mais decisivas da história brasileira, pois nelas se enfrentarão projetos de país e sociedade, representados por partidos e candidaturas aos Executivos e aos Legislativos. Por um lado estarão aqueles identificados com o atual governo tentando se legitimar, por outro, aqueles genuinamente portadores dos anseios mais profundos do povo brasileiro na sua incansável saga por soberania e direitos universalizados.

 Nessas eleições outro grande desafio para as forças da resistência democrática e popular é enfrentar candidaturas com forte conteúdo neofascista.

 Neste momento dramático, em que estão em risco o presente e o futuro de nossa nação, não podemos “lavar as mãos”, nos omitir, nem buscar refúgio na neutralidade. O momento exige solidariedade com os empobrecidos, oprimidos e marginalizados. 

 Para tanto, propomos construir um programa que seja uma referência e orientação para nossa gente nas eleições e que possa movimentar a espiral de cidadania e do bem comum.

 Entre esses pontos, as entidades signatárias propõem: 
1. Revogação das mudanças aprovadas na CLT que retiram direitos trabalhistas. 
2. Reversão das privatizações executadas e fortalecimentos das empresas públicas. 
3. Revogação da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos sociais por 20 anos. 
4. Realização de uma Auditoria Cidadã da Dívida Pública, que consome aproximadamente metade de todo o orçamento público brasileiro. 
5. Realização de Reforma Tributária que combata a desigualdade, taxando as grandes fortunas, as grandes heranças, os dividendos de grandes empresas e do sistema financeiro. Reversão das isenções fiscais e do perdão de dívidas e cobrança dos impostos devidos por grandes empresas. 
6. Retomada dos programas sociais nos moldes anteriores a 2016, reforçando-os e universalizando-os.
7. Denúncia da partidarização e seletividade do judiciário. 8. Respeito à presunção da inocência e a Constituição que garante que a prisão somente deve ocorrer quando todos os recursos e instâncias tenham se esgotado. 9. Mobilizar a sociedade para uma ampla Reforma do Estado, que estimule mecanismos de participação direta, promova a democratização e a pluralidade dos meios de comunicação  e garanta o pleno respeito aos direitos humanos. 10. Implementação do direito a demarcação das terras indígenas e quilombolas e realização de uma reforma agrária ampla e popular, com incentivos à produção agroecológica e agroflorestal e à comercialização de alimentos saudáveis para toda a população brasileira. 

 Assinam:  

Cáritas Brasileira
Comissão Brasileira Justiça e Paz
Comissão Pastoral da Terra
Conferência dos Religiosos do Brasil
Conselho Indigenista Missionário
Conselho Nacional do Laicato do Brasil
Conselho Pastoral dos Pescadores 
Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça
Social Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida
Pastoral Afro-Brasileira
Pastoral Carcerária 
Pastoral Nacional do Povo de Rua
Pastoral Operária Serviço
Pastoral do Migrante 



                                                          
 1 Fonte: https://www.valor.com.br/financas/5341329/lucro-de-grandes-bancos-cresce-21 

terça-feira, 21 de agosto de 2018

NOVAS CORRENTES DE ESCRAVIDÃO




Por Marcelo Barros

No mundo atual, a escravidão ainda é uma chaga tão pesada e cruel que, no seu calendário, a ONU consagra anualmente o 23 de agosto como “Dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição”.

A própria linguagem é ambígua. A ONU fala de “lembrança do tráfico de escravos” como se, hoje, esse pesadelo fosse apenas uma lembrança má. No entanto, todo mundo sabe que, a cada dia, desse ano de 2018, em alguns países da África, crianças são sequestradas de suas aldeias para serem escravas. No Oriente Médio, meninos de menos de dez anos são “educados” a entrar nas guerras. Nas fronteiras de alguns países, ainda se veem caminhões apinhados de crianças e adolescentes levados para o tráfico de pessoas humanas. Em países considerados “do primeiro mundo”, esse tráfico hediondo se faz clandestinamente, mas, às vezes, de forma igualmente cruel e violenta.

A própria ONU calcula que, atualmente, ainda existam mais de 800 mil pessoas sendo submetidas a regimes de escravidão. Lavradores continuam a trabalhar como escravos em fazendas que são verdadeiros campos de concentração. Mulheres são obrigadas a se prostituir no mercado de sexo. Crianças são roubadas de suas casas até para servir como doadoras de órgãos, ou para outros fins de escravidão. Isso ocorre em todos os continentes. Infelizmente, o Brasil é ponto de partida e de chegada desse perverso tráfico humano. Esse problema é tão grave que, em 2014, a conferência dos bispos católicos do Brasil (CNBB) tomou-o como tema da Campanha da Fraternidade.
De fato, organismos de várias Igrejas cristãs se propuseram a “identificar as práticas de tráfico humano em suas várias formas e denunciá-lo como violação da dignidade e da liberdade humana, mobilizando cristãos e a sociedade brasileira para erradicar esse mal, com vista ao resgate da vida dos filhos e filhas de Deus” (Cf. Texto-base da CF 2014, p. 8).

No Brasil, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), organismo ligado à CNBB, mantém permanentemente uma comissão que trabalha para denunciar e apoiar na libertação de escravos/as no campo. Em 2017, em todo o Brasil, o Ministério do Trabalho atuou 131 empresas que mantinham pessoas em regime análogo à escravidão. No campo, a agricultura, a pecuária e a produção florestal são os setores nos quais mais se encontraram “fazendas de escravos”. Nas cidades, mesmo em capitais como São Paulo e Belo Horizonte, a construção civil e a indústria têxtil são os setores nos quais se encontram mais casos de escravidão. Empresas conhecidas mantém trabalhadores em situação insalubre, sem contrato de trabalho e pagando apenas duas refeições por dia. Eles são obrigados a morar no próprio emprego, em barracões infectos e inseguros. Alguns desses trabalhadores vêm da fome no sertão da Bahia. Esses ainda preferem a escravidão na cidade do que voltar à  colheita da palma em Acari, BA, para fazer o sisal. Lá, as máquinas de prensa do sisal são tão primitivas e precárias que, diariamente, trabalhadores/as perdem a mão e mesmo o braço na moenda. Isso para ganhar 10 reais por dia e sem nenhuma proteção trabalhista.

Para piorar essa situação, a portaria 1129 do atual Ministério do Trabalho propõe que se considere trabalho escravo somente aquele que for praticado sob vigilância de armas e com restrição de liberdade. A situação degradante ou mesmo perigosa das condições de trabalho e as irregularidades trabalhistas, como não pagar em dinheiro e sim em comida, não mais configurariam situação análoga à escravidão. Os donos de fazendas rurais e empresas urbanas que mantêm escravos adultos e adolescentes agradecem a esse governo que eles mesmos impuseram ao país.

É preciso ficar claro: a exploração injusta do outro a serviço do lucro não é um abuso do sistema econômico. É a própria lógica do Capitalismo. Se se considera legal que cinco brasileiros detenham uma riqueza equivalente à metade da população brasileira, isso não ocorre por milagre ou por acaso. É fruto da exploração do trabalho e da fragilidade das pessoas vítimas dessa realidade terrível. Atualmente, embora nem sempre compreendido, o papa Francisco tem advertido contra a cultura do individualismo e da indiferença em relação aos outros. Em julho de 2013, ao visitar Lampedusa, a ilha italiana onde tentam chegar milhares de migrantes africanos clandestinos, o papa declarou: “Peçamos a Deus a graça de chorar pela crueldade que há no mundo e em nós, incluindo aqueles que tomam decisões socioeconômicas que abrem a estrada a dramas como esse”.

As Igrejas cristãs têm como missão testemunhar o projeto divino de paz e justiça no mundo para vencer todas as estruturas iníquas existentes na sociedade. Mais do que em tutelar a sociedade e querer impor a todos as leis e regras que as Igrejas criam para os seus fieis, os cristãos são chamados a testemunhar a verdade do que São Paulo escreveu: “Foi para que sejamos livres que o Cristo nos libertou” (Gl 5, 1). 

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.