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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Como enfrentar o novo regime climático da Terra?

 Leonardo Boff


Ultimamente muitos me tem perguntado pelas razões de tantos eventos extremos que estão ocorrendo por todo o planeta: por que tantos tufões, ciclones, enchentes, nevascas, secas prolongadas e ondas de calor com cerca de 40C ou mais, seja na Europa e mesmo em grande parte de nosso país? Até alguns anos atrás os grandes centros científicos e mesmo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não tinham certeza sobre seu caráter, se era algo natural ou consequência da atividade humana. Lentamente a frequência dos eventos extremos  foi crescendo até a ciência reconhecer que se tratava de um fato antropogênico, quer dizer, resultado da ação humana devastadora da natureza.

Alguns cientistas projetaram a hipótese que depois se confirmou como teoria (verdade em ciência enquanto não for refutada) de que uma nova era geológica havia se instaurado. Chamaram-na com razão de antropoceno que seguiu o holoceno de onde vínhamos já há mais de dez mil anos. Significa que o meteoro rasante que destrói a natureza e compromete o equilíbrio do planeta é o ser humano, especialmente, o processo produtivo explorador.Hoje esta compreensão se naturalizou nos discursos científicos e também no meios de comunicação.

Alguns biólogos vendo o extermínio de espécies vivas em razão da mudança climática começaram a falar do necroceno vale dizer, da morte (necro em grego), em grande escala, de vidas; seria um subcapítulo do antropoceno.A situação tornou-se muito mais grave com a irrupção de grandes incêndios em muitas regiões do planeta, inclusive naquelas que se imaginava as mais únidas como a Amazônia e a Sibéria. Para tal evento, extremamente perigoso para a continuidade da vida na Terra, criou-se a expressão piroceno (em grego piros é fogo).

Estaríamos neste momento no interior de várias manifestações de desequilíbrios no sistema-Terra e no sistema-Vida que nos obrigam a a  colocar a pergunta: como será daqui por diante o curso de nossa história? A não se fazer mudanças corajosas e seguir pelo caminho percorrido até o momento, poderemos conhecer  verdadeiras tragédias ecológico-sociais. António Guterrez, secretário geral da ONU tem usado expressões duras, afirmando: “ou reduziremos drasticamente a emissão de gases de efeito estufa ou iremos ao encontro de um suicídio coletivo. Mais direto foi ainda o Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti: “estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salvará”(n.32).

O fato é que a Terra não é mais a mesma. O sistema de sua auto-sustentação em todas as esferas que compõe um planeta vivo, Grande Mãe ou Gaia, corre risco de entrar em colapso Os que anualmente calculam a Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot),  vale dizer, a redução crescente dos elementos mantenedores da vida, ocorreu  neste ano no dia 2 de agosto. Eles nos advertem, que  não podemos chegar a novembro porque aí todo o sistema planetário entraria em colapso.

 

Se tudo mudou, nós que somos parte  da Terra ou, mais corretamente,aquela porção consciente dela, também teremos que mudar  e incorporar aquelas adaptações que nos permitirão continuar sobre este planeta. Em que se basear para esta adaptação?

Seguramente a tecno-ciência é indispensável. Mas nela não se encontra a solução. Ela se ocupa com os meios. Mas meios para que fins? Estes fins constituem  aquele conjunto de princípios e valores que fundam uma sociedade humana e permitem um convivência minimamente pacífica, pois, largados aos seus próprios impulsos,os seres humanos podem se entre-devorar (superação da barbárie).

A fonte destes valores e princípios não se encontram em utopias conhecidas e superadas, em ideologias ou religiões. Para serem humanos, tais valores e princípios devem ser buscados na própria existência humana, quando observada com atenção e profundidade.

O primeiro dado: pertence ao DNA do ser humano como o mostrou um dos decifradores do genoma humano (J.Watson, DNA:o segredo da vida, 1953) o amor social. Por causa dele nos sentimos parentes com todos os portadores deste código, também nos seres vivos da natureza. Este amor social funda uma fraternidade sem fronteiras,constituindo a comunidade biótica e a sociabilidade humana. O cuidado essencial: desde a mais alta antiguidade  (a fábula 22 de Higino do tempo de César Augusto)  foi visto como a essência do ser humano e de todo e qualquer vivente. Se não for cuidado, garantindo-lhe os nutrientes necessários, fenece e morre. A isso pertence manter as florestas em pé e reflorestar as áreas devastadas. Está também em nosso DNA o sentido da interdependência entre todos. Todos estamos dentro de uma rede de relações e nada existe e subsiste fora deste complexo de relações Ele constitui a matriz relacional, perdida no modo de produção capitalista que privilegia a competição e não a cooperação e dá  a centralidade ao indivíduo, apartado de sua relação para com a natureza. Cabe também ao nosso substrato humano, a percepção da corresponsabilidade coletiva e universal, pois, ou todos se unem e se salvam ou se dilacera a realidade com o risco de tragédias ecológico-sociais sem fim. Esse senso de corresponsabilidade coletiva sustenta o projeto social mais promissor, capaz de salvaguardar a vida que ganhou forma no ecosocialismo (cf. Michael Löwy). Seria a humanidade junto com a comunidade de vida vivendo dentro da mesma Casa Comum de forma colaborativa e acolhedora das diferenças. Dentro desta Casa Comum coexistem os vários mundos culturais com seus valores e e tradições, como o mundo cultural chinês, indiano, europeu, americano e dos povos originários  entre outros. A  espiritualidade pertence também à existência humana originária que se compõe pela valorização da vida, pela compaixão pelos mais fracos, pelo cuidado por  tudo o que existe e vive e pela total abertura ao infinito, já que somos um projeto de infinitas possibilidades a serem realizadas. Esta espiritualidade não se identifica com a religião, embora esta nasça da espiritualidade, mas nos valores acima referidos.

 

Para alcançar essa forma de habitar a Terra, os humanos deverão reunciar a muitas coisas, especialmente ao individualismo, ao consumismo, à busca insaciável de bens materiais e de poder sobre outros. São adaptações obrigatórias, se decidirmos continuar neste pequeno e belo planeta  ou então enfrentaremos o conjunto das crise acima referidas que poderão, no seu termo, liquidar com a espécie humana.

Nesse sentido podemos falar de uma recriação do ser humano que se adaptou à nova fase da Terra aquecida e equilibrada num nível mais alto de aquecimento (entre 38-40C?). Ela colocará a vida em seu centro e tudo o mais a serviço dela. Como já foi dito, será a Terra da Boa Esperança, finalmente, a antecipação do mito dos povos originários: a Terra sem Males.

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu: Dignitas Terra: ecologa, grito da Terra-grito do pobre 1999; O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes, 2021: Habitar a Terra:qual o caminho para a fraternidade universal, Vozes 2022.

 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

PODER & COMPETÊNCIA

 Frei Betto


 

            Platão, na República, sonhou com uma cidade-modelo governada por filósofos, homens competentes por dominarem o mais refinado saber. Assim, reforçou a ideia de que a competência política e administrativa estaria associada à formação intelectual. Filhos da plebe não seriam pessoas indicadas para o poder.  

            O próprio Platão aceitou o convite de Díon para ser o conselheiro de seu sobrinho, o jovem Dionísio, que por volta de 367 a.C. herdou o reino de Siracusa, na Sicília. O apreço pelos livros não livrou o governante da suspeita de que Díon e Platão conspiravam contra ele. Envaidecido de seu saber, baniu Díon da corte e manteve Platão sob vigilância até que retornasse a Atenas. 

            Em 361 a.C., Dionísio convidou o filósofo a voltar a Siracusa. Platão resistiu, mas Díon alegou que o rei demonstrava um gosto verdadeiro pela filosofia. Platão rumou para a Sicília, onde esforçou-se para que Dionísio anistiasse o tio, permitindo que retornasse do exílio. Inabalável, o rei confiscou os bens de Díon e reteve o filósofo em Siracusa. 

            Após um ano, Platão, decepcionado com a obtusidade de seu discípulo, conseguiu deixar o reino e, em Olímpia, por ocasião dos famosos jogos, reencontrou Díon, a quem narrou suas desventuras. Díon decidiu vingar-se de seu sobrinho e, após entrar clandestinamente em Siracusa, apoderou-se do palácio de Dionísio. Uma vez no poder, aquele a quem Platão depositava a esperança de afirmar-se como político-filósofo, revelou-se um governante autoritário. Sua prepotência superava a inteligência. Morreu assassinado por seu amigo Calipo, que o ajudara a ocupar o trono. 

        Decepcionado, aos 75 anos Platão convenceu-se de que a política é capaz de corromper os homens mais cultos, pois a ética não é necessariamente filha do saber, nem a competência administrativa resulta da bibliografia consumida. Dedicou-se, então, a escrever sua última obra, as Leis, onde trata da institucionalidade política e das normas que devem reger a convivência dos cidadãos. Preferiu confiar nas estruturas democráticas que na retórica dos governantes.

       O Brasil, desde Cabral, sempre foi governado por nobres e doutores, generais e diplomados, sem que houvesse competência para impedir a crescente miséria e evitar a perda de nossa soberania. Hoje, impressiona quando se diz que um homem público é Ph.D. A abreviação significa "doutor em filosofia", ainda que ele seja formado em economia ou direito. É um tributo a Platão essa suposição de que o título de doutor torna a pessoa mais sábia. Ledo engano, infelizmente. A sabedoria reside no coração, onde são cultivadas as virtudes e os valores. E, felizmente, Lula veio quebrar o paradigma.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

  

Frei Betto é autor de 77 livros editados no Brasil, dos quais 42 também no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

PALAVRAS DE PEDRO - #NÃOAOMARCOTEMPORAL


Dom Pedro Casaldáliga




 

Bem concretamente, definíamos assim os traços maiores da espiritualidade macroecumênica:

* a maturidade e liberdade na afirmação da identidade própria, com base no gênero, cultura, fé religiosa e condição social;

* a escuta contemplativa do Deus da Vida, que continua revelando-se, e a paixão por seu projeto de libertação plena;

* a abertura fraterno-sororal a todas as pessoas e a todas as culturas e religiões, e o diálogo sincero, autocrítico e crítico, em pé de igualdade;

* a sensibilidade misericordiosa e solidariedade eficaz diante de toda situação de marginalização e morte;

* a celebração, gratuita e esperançada, do Deus da Vida, da vida da Humanidade, e da beleza da terra e do cosmos, hoje dramaticamente ameaçada.

 

Pedro Casaldáliga, Cartas Marcadas

#Casaldàliga! #PedroCasaldáligaPresente! #PereCasaldàliga #NãoQueremosGuerraQueremosPaz! #pl2903não #NãoAoMarcoTemporal #MarcoTemporalNão @fperecasaldaliga @irmandadedosmartires

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Mudanças climáticas: aprender a fazer as conexões

 Leonardo Boff


Não estamos mais indo ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele, possivelmente de forma irreversível. Na COP 15 de Paris de 2015 se firmou o acordo de inversão de um bilhão de dólares anuais para reter o aquecimento e ajudar os países que não possuem meios suficientes para isso. A perspectiva era de evitar que o clima crescesse 1,5C até 2030, tendo como referência o começo da era industrial. O fato é que quase ninguém cumpriu o prometido. Como o aquecimento cresce dia a dia, chegamos ao ponto de o último relatório do IPCC de ano de 2023 e de outras fontes oficiais nos revelam que este aquecimento nos chegará antecipado entre 2025 e 2027.Ele poderá alcançar 2graus Celsius.

Temos verificado neste ano de 2023 um aumento assustador do aquecimento atingindo praticamente todo o mundo, chegando e muitos lugares acima de 40C ou mais. Já não podemos falar simplesmente de aquecimento global mas de mudança de regime climático da Terra. Inauguramos uma nova era, com níveis climáticos variáveis conforme as regiões, mas possivelmente se estabilizando planetariamente por volta de 38-40C.

Neste ano já se fizeram notar as consequências funestas desta mudança de regime climático: o grande degelo das calotas polares, incêndios devastadores em muitas regiões do mundo, como no Canadá e nas Filipinas que incinerou uma inteira ilha com casas e carros e tudo o que perfaz uma cidade. No Sul do Brasil ocorreram um ciclone devastador e enchentes em muitas cidades, algumas delas praticamente destruídas.

Andando por aquele lugares no final de setembro e refletindo em vários centros com numerosos grupos sobre esse fenômeno, sempre de novo surgia a pergunta: por que está ocorrendo esta devastação, com mortes e milhares de desabrigados? Esforcei-me, o mais que pude, para lhes conscientizar de que estes fenômenos não são naturais,mesmo com a confluência de dois fatores: o el Niño e o aquecimento global. Estea fenômenos são inaturais. Eles obedecem à nova lógica das mudanças do regime climático. Devemos todos nos preparar porque tais devastações serão cada vez mais frequentes e mais danosas.

Muitos dos mais notáveis climatólogos atestam que chegamos atrasados com nossa ciência e técnica. Elas, nas condições atuais da pesquisa, pouco podem fazer, apenas advertirmos da chegada dos ciclones, dos tufões e das tempestades e minorar os efeitos danosos. Mas eles virão fatalmente. Quer queiram ou não os negacionistas, os dirigentes de grandes corporações planetárias e de inteiros governo,o fato inegável é que entramos num estágio novo da história da Terra. Muitos, especialment crianças e idosos terão dificuldades de adaptação e morrerão. Igual devastação ocorrerá na própria natureza com a fauna a flora.

No que se refere às enchentes tenho explicado que cada rio possui dois leitos: o normal pelo qual ele normalmente corre e o segundo ampliado que é aquele espaço que lhe pertence e que acolhe as águas das enchentes. Neste espaço do leito ampliado não podemos fazer construções e elevar inteiros bairros. Temos que respeitar o que  lhe pertence e reforçar a mata ciliar que margeia seu leito principal. Caso contrário, enfrentaremos  destruições momentosas com muitas vítimas de pessoas e de animais que pertencem à nossa comunidade de vida.

Aprendemos pela ecologia não meramente verde e ambiental mas pela ecologia integral (urbana, social, política, cultural e espiritual) aquilo que é a tese fundamental da física quântica e de todo discurso ecológico: todos os seres estão interligados. Tudo é relação e nada existe fora da relação. Isso nos leva a incorporar uma compreensão que identifica as conexões de todos os fenômenos. O terremoto do Marrocos, a enchente na Líbia, os incêndios no Canadá e a onda quase insuportável de calor que tomou conta da Europa e em quase todo o nosso  país, tem a ver com as enchentes no Sul do país.Pois o problema é sistêmico, afeta todo o planeta.

A maioria  das audiências públicas organizadas pelos organismos do governo federal e estadual geralmente é hegemonizada pelo discurso dos cientistas. Ele não são os melhores conselheiros pois trabalham os meios técnicos,sugerem medidas dentro do sistema no qual estamos encerrados, mas não se colocam a questão dos fins.

O discurso é dos fins e não dos meios: que tipo de Terra queremos? Que mudanças devemos fazer no modo de produção e consumo? Como diminuir a vergonhosa desigualdade social mundial?A maioria cai na ilusão de que dentro do atual sistema produtivista seja capitalista seja socialista, notoriamente devastador dos bens e recursos da natureza, pode-se chegar a soluções que resultam da diminuição de gazes de efeito estufa. Ledo engano. Dentro desta bolha que ocupou todo o planeta não há solução contra a mudança de regime climático. Pois são exatamente eles que sugam os recursos escassos da natureza que consequentemente produzem milhões de toneladas anuais de CO2 e de metano (28 vezes mais danoso que o CO2)lançadas na atmosfera.

É urgente, se queremos ainda permanecer neste planeta, fazer uma “conversão ecológica fundamental” como o diz a encíclica do Papa “como cuidar da Casa Comum”

Os grandes conglomerados e aquela pequeníssima porção de pessoas que controla o sistema de produção e o fluxos financeiros de onde tiram seus fabulosos lucros, jamais aceitam tal mudança. Perderiam seus ganhos, privilégios, poder econômico e político.  No entanto, seguir por este caminho tornaremos a Terra cada vez mais inabitável, com milhõe se refugiados climáticos e emigrantes que já não podem mais viver em seus lugares queridos. Engrossaremos o cortejo daquele que rumam na direção de sua própria sepultura. Se quisermos evitar  este destino, devemos mudar.

Qual a alternativa necessária? Não é aqui o espaço pra detalhar esta complexa resposta. Mas refiro apenas duas palavras-chaves: passar do ser  humano, hoje dominante, como “dominus”, senhor e dono da natureza e não sentindo-se parte dela, explorando-a sem limites  para o o ser humano como “frater” irmão e irmã entre todos os humanos e também com os demais seres da natureza da qual é a parte consciente, porque possuímos com eles e mesma base biológica e cuidamos dela. Somos de fato irmãos e irmão, por um dado de ciência mais do que pela mística cósmica de São Francisco.  O fato é que não nos tratamos como irmãos e irmãs. Somos antes insensíveis e até cruéis.Sobre tal tema remeto aos meus próprios escritos que tentam detalhar este novo rumo.

 

Leonardo Boff escreveu O doloroso parto da Mãe Terra:uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes 2021; Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal, Vozes, 2021; Cuidar da Terra e proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2014; A busca da justa medida como fator para o equilíbrio da Terra, Vozes 2023.

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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

RELIGIÃO LIBERTADORA

 


Frei Betto


 

       Se a religião, como assinalou Karl Marx, é “o coração de um mundo sem coração” e “o suspiro da criatura oprimida”, é, portanto, uma forma de protesto diante do mundo real. É, para a pessoa religiosa, sua teoria geral do mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica dentro da cultura popular.

Pergunte a qualquer trabalhador sem escolaridade – cozinheira, camponês, faxineiro -, o que pensa do mundo, da vida e da morte. Com certeza lhe dará uma resposta tecida em categorias religiosas. Afirmação semelhante seria feita anos depois por Nietzsche, para quem o Cristianismo é um platonismo para o povo.

        Fidel me afirmou na entrevista que relato  no livro Fidel e a religião: “Se você me diz que nas atuais condições da América Latina é um erro acentuar as diferenças filosóficas com os cristãos que, como parte majoritária do povo, são as vítimas massivas do sistema, então eu diria que você tem razão. Embora o prioritário fosse, a meu ver, concentrar o esforço em conscientizar para unir em uma mesma luta todos os que carregam uma mesma aspiração de justiça.’   

E muito mais lhe dou razão quando se observa a tomada de consciência dos cristãos ou de importante parcela deles na América Latina. Se partimos desse fato e das condições concretas, é absolutamente correto e justo exigir que o movimento revolucionário tenha um enfoque adequado da questão e evite, a todo custo, uma retórica doutrinal que entre em choque com os sentimentos religiosos da população, inclusive de trabalhadores, de camponeses e de setores médios, o que só serviria para ajudar o próprio sistema de exploração.’

 “Eu diria que, frente a uma nova realidade, deveria haver uma mudança no tratamento da questão e nos enfoques da esquerda. Nisso concordo inteiramente com você. Para mim, é inquestionável. Mas durante um longo período histórico, no qual a fé foi utilizada como instrumento de dominação e de opressão, há lógica no fato de os homens que desejaram mudar esse sistema injusto terem entrado em choque com as crenças religiosas, com aqueles instrumentos e com aquela fé.”

“Creio que a grande importância histórica do que você denomina Teologia da Libertação, ou Igreja da libertação – como preferir -, é precisamente sua profunda repercussão nas concepções políticas dos cristãos. E eu diria algo mais: significa o reencontro dos cristãos de hoje com os cristãos de ontem, dos primeiros séculos, quando surgiu o cristianismo depois de Cristo.”

        Com o objetivo de resgatar o Cristianismo primitivo, valorizado por Engels e Fidel, publiquei, em agosto de 2022, o livro Jesus militante – o Evangelho e o projeto político do Reino de Deus, no qual defendo, baseado em análise detalhada do Evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, que Jesus não veio fundar uma religião, o Cristianismo, ou uma Igreja, a cristã. Veio nos propor um novo projeto civilizatório, político, fundado em dois pilares: nas relações pessoais, o amor; nas relações sociais, a partilha dos bens da natureza e daqueles produzidos pelo trabalho humano. A esse projeto, ele denominava Reino de Deus em oposição ao reino de César, sob o qual vivia. Por isso, acusado de sedição, sofreu prisão política e foi condenado à pena de morte na cruz. 

        A experiência socialista comprovou, entretanto, que mesmo combatendo a “miséria real” a religião não desaparece. Como não desaparecem outros fatores que transcendem a razão humana: a arte e o amor. Até porque tanto o marxismo quanto as religiões são sistemas de sentido. Pretendem explicar a vida e a história humanas, assim como o capitalismo. A diferença é que as religiões são sistemas de sentido mais abrangentes, vão além do que pode ser esclarecido pela ciência e pelos paradigmas da estética; explicam desde a importância do perdão na reconciliação de duas pessoas que se desentenderam até a origem do Universo e da vida e o que se passa após a morte. 

       Fidel declarou na entrevista: “Quando Marx criou a Internacional dos trabalhadores, havia entre eles muitos cristãos. Também na Comuna de Paris havia muitos cristãos entre os que lutaram e morreram. Não há uma só frase de Marx excluindo aqueles cristãos, dentro da linha ou da missão histórica de levar adiante a revolução social. Se vamos mais além e recordamos todas as discussões em torno do programa do Partido Bolchevista, fundado por Lênin, você não encontra uma só palavra que exclua os cristãos do Partido. A principal exigência é a aceitação do programa do Partido como condição para ser militante. De modo que aquela frase tem valor histórico e é absolutamente justa em determinado momento.’

“Neste momento, podem existir circunstâncias em que ela ainda seja expressão de uma realidade. Em qualquer país no qual a hierarquia católica ou a de outra Igreja esteja estreitamente associada ao imperialismo, ao neocolonialismo, à exploração dos povos e dos homens e à repressão, não devemos nos surpreender que alguém repita que “a religião é o ópio do povo”.

       Ao contrário de todas as previsões iluministas, o fenômeno religioso não apenas impregna a cultura de povos do mundo inteiro, como se mostra em ascensão. E as forças de direita se apegam resolutamente a ele por reconhecerem seu alcance popular, o que facilita a manipulação das consciências rumo à naturalização das desigualdades sociais, à exaltação da meritocracia individual e à abnegação em situação de opressão. 

       Neste sentido, a religião disseminada pela direita é, sim, um ópio que tem por objetivo desmobilizar as forças populares potencialmente revolucionárias, de modo a postergarem para a eternidade o direito a uma vida digna e feliz.

       Na América Latina, o fenômeno se apresenta sobretudo pelo fundamentalismo cristão de Igrejas evangélicas e setores do catolicismo. Os dados mostram que nosso Continente, tradicionalmente católico, tende a ser, agora, predominantemente evangélico de perfil protestante neopentecostal. Portanto, devidamente legitimador do sistema capitalista.

       O progressismo das Comunidades Eclesiais de Base e de seu fruto mais expressivo, a Teologia da Libertação, tão vigentes entre as décadas de 1970-1990, refluiu sob os 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. O papa Francisco se empenha em recuperar o terreno perdido, embora saiba que, hoje, ele é a cabeça progressista de um corpo estruturalmente conservador.

       Por sua vez, a esquerda mundial se viu abalada sob os escombros do Muro de Berlim. Na Europa, ela se esfacelou e amplos segmentos foram absorvidos pelo neoliberalismo. Na América Latina, ela abandonou os propósitos revolucionários para se adaptar a programas políticos sociais-democratas assumidos por partidos e governos progressistas. O pensamento marxista ficou recolhido às bibliotecas e o socialismo, à exceção de Cuba, deixou de ser um objetivo histórico.

       A questão que me parece mais importante, na atual conjuntura, é a politização, organização e mobilização dos amplos setores populares, quase sempre impregnados de forte religiosidade cristã. Numa palavra: retornar ao trabalho de base, tão intenso na América Latina nas décadas de 1960 a 1990. Retirar Paulo Freire das prateleiras de livros. Desafio nada fácil considerando que, hoje, esses setores em muitos países estão sob o comando de pastores e padres fundamentalistas, braços do narcotráfico, milícias ou grupos paramilitares. 

       Se em nosso povo a porta da razão é o coração e a chave do coração a religião, a esquerda terá que necessariamente abraçar a pedagogia do trabalho popular que leva em conta o fator religioso. O discurso político nem sempre encontra eco nas camadas populares, muitas delas decepcionadas com partidos e governos. A hermenêutica religiosa terá que entrar na pauta da militância de esquerda. Não para manipular consciências, como faz a direita, e sim para reaprender a valorizar a fé das pessoas mais simples e ajudá-las a fazer uma leitura libertadora da Bíblia, considerada por elas Palavra de Deus.

       Se em países como Brasil e México a esquerda, para ter êxito, deverá sempre contar como aliadas a Virgem de Aparecida e a Virgem de Guadalupe, em toda a América Latina não há como avançar para superar o capitalismo e implantar uma sociedade socialista sem ter como aliado o companheiro Jesus de Nazaré. 

 

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens pelo mundo socialista”, entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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quarta-feira, 27 de setembro de 2023

PALAVRAS DE PEDRO - Estenda a sombra da Tua Mão


Dom Pedro Casaldáliga



Estenda a sombra da Tua Mão


Estenda a sombra da tua Mão

para que possa ver sem me deslumbrar

todo o sol do caminho.


Aproxima tua voz, no tumulto 

e no turvo silêncio,

para que eu saiba te ouvir

entre tantas verdades e omissões.


Alcança-me o rosto com teu Alento

para que sinta sempre a tua presença,

mesmo quando te proíbam,

mesmo quando não te vejam meus olhos espantados.


Pedro Casaldáliga, Fogo e Cinza ao vento #Casaldàliga! #PedroCasaldáligaPresente! #PereCasaldàliga #NãoQueremosGuerraQueremosPaz! #pl2903não #NãoAoMarcoTemporal #MarcoTemporalNão @fperecasaldaliga @irmandadedosmartires

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Encontro do Povo de Deus – Junto na Caminhada

Marcelo Barros



A comunidade ecumênica de Taizé na França e mais 60 organizações ecumênicas, assim como várias federações de igrejas  evangélicas estão convidando juventudes de todo o mundo para se unir em oração e vigília em um projeto chamado em inglês Togheter (juntos). É um processo de diálogo e de caminho em comum que jovens de 18 a 35 anos são chamados a percorrer. Enquanto em Roma, no dia 4 de outubro, se abre a primeira sessão mundial do Sínodo dos Bispos sobre o caminho da sinodalidade que a Igreja deve percorrer, as mais diversas juventudes da Igreja e do mundo são convidadas a se reunirem para ensaiarem caminhos para a unidade e a paz da humanidade, no cuidado com a Mãe-Terra, nossa casa comum.


O início desse processo acontecerá no sábado 30 de setembro e foi convocado pelo papa Francisco. No domingo, 15 de Janeiro deste ano, em Roma, no final da oração do Angelus, o Papa Francisco anunciou que os trabalhos da próxima assembleia do Sínodo da Igreja Católica serão recedidos por uma vigília ecumênica de oração, a ser realizada, no sábado 30 de Setembro na Praça de São Pedro. Ele afirmou:

«O caminho da unidade dos cristãos e o caminho da conversão sinodal da Igreja estão ligados. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para anunciar que no sábado 30 de Setembro haverá uma vigília de oração ecuménica na Praça de São Pedro, onde confiaremos a Deus os trabalhos da 16ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Para os jovens que virão à vigília, haverá um programa especial durante todo o fim-de-semana, animado pela Comunidade de Taizé. Desde já, convido os irmãos e as irmãs de todas as confissões cristãs a participar neste "Encontro do Povo de Deus»

Esse Encontro do Povo de Deus está sendo preparado há vários meses por representantes de cerca de 50 organizações e entidades de várias Igrejas e de caráter ecumênico. Ao mesmo tempo que jovens de 18 a 35 anos, vindos de toda a Europa se encontrarão na noite do sábado, 30 de setembro, na Praça de São Pedro, em Roma, as organizações desse projeto Togheter propõem que nas mais diferentes regiões, por todo esse mundo de Deus, jovens e adultos se encontrem em vigílias de oração e de caminhada para formar uma rede de energia amorosa e de paz que inunde o mundo.

Na escuridão de nossas noites, vamos acender velas que simbolizem luz para os caminhos a seguir. Assim, poderemos retomar a profecia do projeto divino da Paz e da Justiça, de forma não violenta, a partir da organização de pequenas comunidades de Pastoral de Juventude  (PJ), de redes ecumênicas de jovens ou de grupos independentes que possam ser células e laboratórios que ensaiem um novo mundo possível.

Quem quiser seguir as informações sobre a vigília em Roma, veja:

https://together2023.net/pt/info-page/genese-do-projecto/

Quem desejar se inscrever, aí vai o site para a inclusão: 

https://together2023.net/pt/info-page/carta-de-inclusao/

Nesse momento do mundo, para enfrentarmos os desafios atuais, as guerras, conflitos e divisões que ferem a família humana, precisamos escutar de modo novo e diferente os gritos dos povos crucificados pelo Capitalismo e pela desumanidade da elite que se apodera para si dos bens de toda a terra.

É o Espírito de Deus, a Divina Ruah, que nos chama e nos abre um caminho para avançarmos com o Cristo, como companheiros de viagem, juntamente com a multidão dos/das excluídos/as que vivem à margem das nossas sociedades. Nessa viagem, num diálogo que reconcilia, queremos recordar que precisamos uns dos/as outros/as, não para quepossamos ser mais fortes juntos, mas como contribuição para a paz na família humana.

Queremos juntos escutar os gritos e gemidos da Mãe Terra e, assim, no encontro e na escuta mútua, caminhemos juntos como o povo de Deus, profecia de uma humanidade reconciliada e unida. E aí experimentaremos a verdade do que escreveu o apóstolo Paulo: “Onde estiver o Espírito de Deus, aí haverá a liberdade” (2 Cor 3, 6).

sábado, 23 de setembro de 2023

Tua Face



Goretti Santos

 

Vejo Tua Face no grito desesperado de dor de meu irmão,

É Tua Face que vejo na mão que se estende em minha direção pedindo socorro, clamando a retirada desse cálice  amargo que agora a vida apresenta…

É Teu Rosto Sereno que vejo na gentileza do gesto de apoio que ampara…

É Tua Face que vejo, na vontade de ser melhor, não para mim, mas para o outro… para harmonizar com Tua Criação…

É Você, Senhor,  Inteiro Presente na doação do tempo, da vida, das mãos a dividir o peso do cansaço do caminho percorrido até aqui.

Verei Tua Face Senhor, no sorriso exausto depois de tanta dor…sabendo cumprida a missão…

É Tua Face que vejo na superação da mágoa  para resgate da fraternidade, da amizade, da esperança.

É Tua Face que vejo na gratuidade da solidariedade…

Irei a Teu encontro Face a face

A cada passo em direção ao Amor,

A Tua Verdadeira Face!

 

Goretti Santos

04/09/2023 

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

MARX PREGOU O ATEÍSMO?

 

Frei Betto


 

       Ao chegar a Paris, em outubro de 1843, Marx, pela primeira vez, se declarou ateu. Ali escreveu Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, no qual afirma que “a crítica da religião chegou, no essencial, ao fim na Alemanha, e a crítica da religião é a premissa de toda crítica (...).”

E continua: “O fundamento de toda crítica irreligiosa é que o homem cria a religião (...). A religião é uma consciência do mundo invertida (...). A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da miséria real e, por outro, o protesto contra a miséria real (...).”

       “A religião é o suspiro da criatura assediada, o coração de um mundo sem coração, assim como também o espírito de uma época sem espírito”.

       Chegou um momento em que Marx já não considerava o ateísmo necessário: “O ateísmo, enquanto negação desta carência de essencialidade, carece agora totalmente de sentido, pois o ateísmo é a negação de deus e afirma, mediante esta negação, a existência do homem; mas o socialismo, enquanto socialismo, já não necessita de tal mediação (...). É autoconsciência positiva não mediada pela religião.” (Manuscritos econômicos políticos de 1844). 

       O socialismo traria a superação prática da religião. Esta é a posição definitiva de Marx e, por isso, jamais concordará com o ateísmo militante - como posteriormente se implantou na União Soviética –, o que o levou a criticar Bakunin, porque este “decretava o ateísmo como dogma para seus membros” (da Internacional). (Carta de Marx a Bolte 23/11/1871)

        Na carta a Bolte, Marx também escreveu: “Em fins de 1868, ingressou na Internacional o russo Bakunin com o propósito de criar, em seu seio e sob a sua própria direção, uma Segunda Internacional denominada “Aliança da Democracia Socialista”.

Bakunin, homem sem nenhum conhecimento teórico, exigiu que esta organização particular dirigisse a propaganda científica da Internacional. (...) Seu programa era composto de retalhos superficialmente extraídos de ideias pequeno-burguesas captadas aqui e ali: igualdade de classes (!), abolição do direito de herança como ponto de partida do movimento social (estupidez saintsimonista), o ateísmo como dogma obrigatório para os membros da Internacional etc. e, como dogma principal, a abstenção proudhonista do movimento político”.

       Uma pergunta que se nos impõe hoje, à luz dos 70 anos de socialismo na União Soviética e mais de 60 anos em Cuba: o socialismo tem sido a superação prática da religião? Marx considerava a religião “ópio do povo”?

 “A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da verdadeira angústia e o protesto contra esta verdadeira angústia. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como ela é o espírito de uma sociedade sem espírito. Ela é o ópio do povo.” (Marx, 1844).

       Em seu artigo intitulado “Marx e Engels como sociólogos da religião”, Michael Löwy afirma que a frase “a religião é o ópio do povo” não é criação de Marx. Tal afirmação é anterior à obra de Marx, com diferentes matizes “em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e muitos outros.”

       A frase “a religião é o ópio do povo” aparece como uma citação de Marx em sua obra Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844), não sendo uma afirmação paradigmática. Löwy observa que a frase precisa ser compreendida em sua complexidade, destacando que Marx se refere à religião em “seu duplo caráter” contraditório e dialético: “às vezes legitimação da sociedade existente, às vezes protesto contra tal sociedade.”

       Sobre isso me disse Fidel em nosso livro, Fidel e a religião: “Em minha opinião, a religião, sob a ótica política, não é, em si mesma, ópio ou remédio milagroso. Pode ser ópio ou maravilhoso remédio, na medida em que sirva para defender os opressores e os exploradores ou os oprimidos e os explorados. Depende da forma que aborde os problemas políticos, sociais e materiais do ser humano que, independentemente de teologias ou de crenças religiosas, nasce e tem que viver neste mundo.”

       Portanto, a frase “a religião como ópio do povo” não é sua mais importante afirmação sobre a religião. Mas se popularizou e passou a ser entendida como uma condenação política paradigmática da religião, usada para justificar o ateísmo político de certas tendências de esquerda, para as quais não haveria possibilidade de conciliação entre religião e revolução. Nesse modo de entender, quem quiser ser revolucionário marxista deve abandonar suas convicções religiosas; e quem quiser praticar uma religião deve repudiar o marxismo.

        Foi preciso esperar décadas para que Fidel superasse tal preconceito com seu lapidar pensamento: “De um ponto de vista estritamente político – e penso que conheço algo de política -, considero que se pode ser marxista sem deixar de ser cristão e trabalhar unido ao comunista marxista para transformar o mundo. O importante é que, em ambos os casos, sejam sinceros revolucionários dispostos a erradicar a exploração do homem pelo homem e a lutar pela justa distribuição da riqueza social, pela igualdade, pela fraternidade e pela dignidade de todos os seres humanos. Isto é, sejam portadores da consciência política, econômica e social mais avançada, ainda que se parta, no caso dos cristãos, de uma concepção religiosa.”

 

Frei Betto é escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

Frei Betto é autor de 77 livros editados no Brasil, dos quais 42 também no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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