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quarta-feira, 31 de março de 2021

SEMANA SANTA EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(30/03/2021)

 

     Nossa última Reflexão provocou algumas fortes reações de leitores e leitoras, algo como "doeu na consciência", reações que, por sua vez, sugerem um feed-back. Eis algumas: "Seu artigo me tocou. Sempre fui contra a neutralidade.  Lavar as mãos é a pior alternativa" - "Desculpe-me a expressão, mas foi um soco no estômago de muitos que ficam encima do muro". - "Que palavras duras! Espero que cutuquem a minha consciência, despertando culpa, mas também compaixão com minhas limitações. Carrego a culpa do mundo nas costas, e sinto que isso às vezes me paralisa."

 

     O autor confessa que é o primeiro a entrar na fila dos penitentes: "mea culpa, mea culpa." Não foi seu intento fazer sermão de justo a pecadores, foi, antes, alertar as consciências, a começar pela que Deus lhe deu.

 

     Quem é que, algum dia, já não "lavou as mãos na bacia de Pilatos, expulsando a voz da consciência, encenando o velho ritual de desculpas eloquentes: "sou inocente do sangue deste justo"! Mt.27,24.

 

     Dito isto, iniciemos nosso ato penitencial. Tomemos assento na Última Ceia de Jesus com os apóstolos. Se quisermos imaginar o cenário original, contemplemos a pintura de Leonardo da Vinci. Ele retrata a reação dos apóstolos no exato momento em que Jesus anuncia "um de vocês vai me trair".

 

     Que tipo de gente se encontra ali diante do Mestre? - Um grupo de homens medrosos e covardes. Jesus não lhes poupa advertência: "na hora mais difícil, vocês todos vão me abandonar".

 

     No entanto, são eles que estão ali, convidados a repartir o pão da Páscoa. Há só um que não pode ficar. É aquele que se esconde na neutralidade, entre o Cenáculo e o Sinédrio, entre o beijo disfarçado da noite anterior e o não querer faltar a esta Ceia Pascal. Jesus lhe sussurra: "o que tens a fazer, faze-o agora", uma maneira menos dura de dizer: "retira-te"! Judas sai. Os demais se refazem. Tem início a Ceia.

 

     É com este material humano que o Filho de Deus conta. Ele não se fez acompanhar por uma legião de anjos ou por uma milícia de super-homens.  Mas escolheu os que encontrou pelo caminho, de coração aberto, pés livres, mãos desatadas, intenção pura e coração de pobre. Com estes usará de infinita paciência, até convertê-los em novos homens, de pescadores de peixes em  pescadores de almas, de amedrontados em  apaixonados. Numa luta entre forças desiguais, só se pode confiar em combatentes tomados de paixão.

 

     Deprimidos pela crucifixão do seu Mestre, os apóstolos desertaram. E não sairiam de sua letargia, se não fossem sacudidos por uma Força Superior. Esta irrompeu sobre eles em forma de fogo ardente, manifestação do Espírito de Deus. Estas duas chamas acesas, a da paixão e do Espírito os conduzirão até o fim,  até as últimas consequências. O legado do Mestre é uma Semente a que chamam Boa Notícia, e que traz no seu interior uma promessa: "tornar-se-á uma árvore frondosa onde os pássaros virão fazer seus ninhos" Mt.13,32.

 

     A paixão é comum a todos eles, o que não significa que as forças são niveladas. Paulo se mostra extremamente destemido. Pedro fraqueja algumas vezes. Tiago se antecipa aos demais no martírio. André,  Filipe e os outros se espalham no anonimato. Cada qual com seu carisma e talento. Ao final, nenhum recuou diante do martírio.

 

     Esta é a Semente que chegou às nossas mãos. Ela se nutre da Graça e cresce pelos nossos cuidados. Seus frutos, seus êxitos não necessitam de celebrações triunfalistas, mas sim de  reencontros na Ceia Pascal. Aí reviveremos a memória do Senhor Ressuscitado, e nos revestiremos com a armadura  da Paixão e da Fé.

 

     "O Senhor me disse: basta-te a minha graça, pois é na tua fraqueza que meu poder se manifesta totalmente. É por isso que me animo nas tribulações, nas adversidades, nas perseguições pela Causa do Cristo, pois quando pareço fraco, aí é que sou forte" Cf.2Cor.9-19.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

terça-feira, 30 de março de 2021

PÁSCOA NO MUNDO E NO ÍNTIMO DE CADA SER

 Marcelo Barros


 

Neste ano, novamente, as comunidades cristãs terão de celebrar a Semana Santa ainda sob o peso da pandemia que, no Brasil, se torna cada vez mais ameaçadora. A orientação justa é celebrar em casa e nos unirmos à nossa comunidade por televisão ou internet. É pena não podermos celebrar o memorial da ceia de Jesus, da sua cruz e da sua ressurreição na comunhão concreta dos irmãos e irmãs de fé. No entanto, nossa reflexão tem de ir além das contingências e a melhor celebração desta Páscoa será a resistência e o testemunho de solidariedade às pessoas mais fragilizadas.

Neste ano de 2021, mais uma vez a celebração cristã da Páscoa coincide com a celebração da Peshá judaica. Em todas as sinagogas do mundo, a festa da Páscoa começou no sábado 27 de março e vai até o próximo sábado. Esta festa que o Judaísmo chama “a festa da nossa libertação” lembra a todo ser humano sua vocação para a liberdade.

Nestes dias que a tradição cristã chama de Semana Santa, as Igrejas recordam a última semana de Jesus em Jerusalém para celebrar a Páscoa. Jesus celebrou a Páscoa como todo judeu praticante. No entanto, em sua época, a Páscoa proposta pelo livro do Êxodo tinha se transformado em uma grande festa comercial, centralizada no templo e para fortalecer o poder e a riqueza dos sacerdotes. Por isso, Jesus quis dar a Páscoa um novo sentido que retomasse a espiritualidade libertadora do Êxodo e, ao mesmo tempo, a estendesse a toda a humanidade.

Imbuídos deste espírito, nesta quinta-feira à noite, iniciaremos a celebração cristã da Páscoa recordando a última Ceia de Jesus, profecia de partilha e doação de vida, apelo de unidade para toda a humanidade. Na sexta feira santa, celebramos a Páscoa da Cruz. Olhamos a paixão de Jesus, tomando formas novas nas cruzes de todos os oprimidos e oprimidas deste mundo e na dor da nossa mãe Terra. Na noite do sábado e madrugada do domingo, mesmo em casa e, portanto, de forma doméstica e laical, celebremos a vigília, mãe de todas as vigílias da Igreja.

Reunir-nos, mesmo virtualmente, para celebrar esta vigília, na amizade do grupo do qual participamos será como se ajudássemos a madrugada a nascer e despertássemos o Sol da Justiça para recriar o mundo e renovar nosso ser engravidando-o de ressurreição.

A celebração desta Semana Santa nos convida a olharmos para fora das Igrejas a tragédia da cruz que continua a ocorrer a cada dia, ao lado da nossa porta. Embora toda dor humana mereça solidariedade, consideramos como prolongamento da cruz de Jesus todo sofrimento físico ou psicológico, decorrente da missão para transformar o mundo. Também as angústias e dores que decorrem de uma sociedade que perdeu o coração.

Assim como um artista esculpe ou desenha uma cruz na parede, podemos ver levantados na cruz, povos inteiros aos quais desde os anos 1980, em El Salvador, o mártir Ignacio Ellacuría chamava de “povos crucificados”. Em cada país da América Latina se contam aos milhares as vítimas do sistema que, para manter o privilégio de uma pequena elite escravagista, provoca dor e morte em milhões de seres humanos. E esta dor e morte de cruz se propaga como pandemia. Em muitos países da América Latina, a cada dia, milhares de pessoas desaparecem, vítimas das milícias policiais e dos grupos de narcotráfico. Em todos os países, mulheres são vítimas do feminicídio e da violência machista. Na maior parte do continente, povos originários têm sua sobrevivência física e suas culturas ameaçadas. No Brasil, aumenta diariamente o número de jovens negros  assassinados nas periferias de nossas cidades. Esses são apenas alguns elementos da violência nossa de cada dia. 

Se celebrássemos a memória da cruz de Jesus indiferentes a essas crucificações atuais, nossa celebração não passaria de um cínico exercício de hipocrisia religiosa. Em meio ao agravamento desta pandemia, sentindo diariamente a fragilidade da vida, esta Páscoa deve ser profecia que nos dê força de resistência e clareza sobre a nossa missão na realidade atual.

Antigamente, éramos educados a compreender a morte e a ressurreição de Jesus como se fosse um drama em dois atos. Ele foi morto e, no terceiro dia, Deus lhe deu uma vida nova. A espiritualidade libertadora nos ensina que nossa fé será pascal se conseguirmos ver na própria cruz e mesmo na morte do Cristo e do povo, os sinais da força divina que vence a morte e aponta para a ressurreição como vitória da vida.

 

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 29 de março de 2021

VACINA: BEM COMUM

 


    Maria Clara Bingemer


 

Acho bonito as pessoas tirando foto do momento em que são vacinadas.  Comecei a reparar nisso quando a primeira senhora britânica de mais de 90 anos foi vacinada e disse estar “altamente aliviada”. Depois foram idosos de ambos os gêneros e em melhor ou pior estado de saúde. Sempre a foto acompanhando o evento histórico de receber a vacina.  Amigos e amigas já próximos de minha idade também documentaram sua experiência. 

O que há de tão transcendental nesse ato de imunizar-se e oferecer o braço para receber a espetadela que carrega um líquido impregnado de esperança?  Em que essa vacina difere das outras? Por que nos traz essa emoção como se a vida entrasse em nosso corpo com a inoculação do líquido que promete imunizar-nos em boa proporção contra a pandemia que aterroriza toda a humanidade?

            Existem vários elementos que me parecem fazer dessa vacina tão ardentemente esperada não apenas um evento sanitário, mas igualmente um evento inspirador e revelador do que é a condição humana.

            Somos seres relacionais.  Não existimos senão coexistindo e convivendo. Isso é verdade desde que o Criador pronunciou no sexto dia sobre a criatura que formara do barro e em cujas narinas soprara o hálito da vida: “Não é bom que o homem esteja só”.  A vocação de Adão é a comunhão e não a solidão. E quando a Adão foi dada a companheira Eva, mãe dos viventes, a comunhão aconteceu.  A alteridade a instituiu e isso foi muito bom, disse Deus, antes de descansar ao sétimo dia contemplando sua obra. 

            É fato que após isso Adão e Eva romperam essa comunhão.  E por isso é tão trabalhoso reconstituí-la.  Somos todos Adão e Eva que buscamos a vida com dificuldades e dor, mas também a fruímos com gozo e deleite.  E todos experimentamos o desejo da comunhão plena em todos os momentos em que ela se fragmenta e é obstaculizada pelas várias investidas diabólicas de tudo que divide e separa. 

            O vírus vem sendo uma pedagogia dura e fecunda sobre tudo isso.  Os gestos de proximidade, afeto, amor nos foram proibidos em nome da saúde coletiva. Foram interditados os abraços e beijos, os encontros, as celebrações festivas.  Nos foram impostas máscaras que erguem barreira entre nós e os outros. E o álcool e a água e o sabão nos obrigam a exterminar os rastros dos contatos humanos a cada momento e a cada passo. 

            Demorou perceber que toda essa separação com relação aos outros, junto aos quais sempre desejamos tanto estar, era na verdade a forma acertada de proceder em benefício deles e delas mesmo.  O amor que antes se exprimia com gestos de contato e proximidade agora devia expressar-se por atos de distanciamento em nome do cuidado e do amor. 

            A vacina é um elemento novo que entra nesse cenário.  Anunciando esperança de imunização, baixa de contágio e controle da pandemia, é a única opção que existe no horizonte para vencer essa tão difícil prova que atravessamos já há mais de um ano.  Por isso, a alegria tão radiante e um brilho de tal fulgor nos olhos daqueles que após uma longa peregrinação em meio às trevas do medo e do desânimo agora sentiam poder ter novamente esperança.  

            Essa esperança consiste em voltar a poder realizar os gestos do afeto e da comunhão. Os avós sonham em novamente beijar e abraçar os netos.  Os amigos desejam voltar a poder juntar-se, conversar, rir e cantar juntos, sentir a presença cálida e estimulante daqueles que se querem bem. Todos desejam andar livremente pelas ruas, entrar nos cinemas e teatros, ouvir, cantar e dançar em shows musicais, sem medo e sem barreiras. 

            Os que cremos desejamos ardentemente poder voltar a frequentar nossas igrejas em celebrações com muita gente e poder abraçar os irmãos efusivamente, desejando-lhes a paz.  E comungar o corpo e sangue do Senhor, expressão da comunhão vital e verdadeira que realiza e conduz à vida plena. 

            Tantas vacinas já tomamos: sarampo, tuberculose, poliomielite, antitetânica.  Mas apenas a vacina contra a Covid- 19 nos acendeu na consciência essa convicção de que oferecendo o braço para a tão desejada espetadela estamos, na verdade, realizando um profundo ato ético. 

Já o Papa Francisco que não apenas vacinou-se mas providenciou doses de vacina para todos os funcionários do Vaticano declarou: “Eu acredito que, eticamente, todo mundo deve tomar a vacina. É uma opção ética porque você aposta na sua saúde, na sua vida, mas também na vida dos outros”

Esperemos que a pandemia nos tenha ensinado em profundidade que nada do que penso ou faço afeta apenas a mim.  Estou conectada com todos os seres vivos e tudo impacta em tudo.  E dentro desse tudo, meus irmãos em humanidade agora me pedem esse gesto ético, de fé e esperança na vida, de abertura e amor.  A vacina me dá essa oportunidade. Que ela seja o sinal pascal de vitória da vida nesses tempos de tanta paixão e tanta treva que temos vivido.  É uma boa motivação para uma celebração mais profunda e esperançosa da Semana Santa que se aproxima.

 

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros

 

M  

domingo, 28 de março de 2021

NEUTRALIDADE EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 


FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(26/03/2021)

 

     Um dia, narra o Evangelho de João, um certo fariseu chamado Nicodemos procurou Jesus, nas caladas da noite, confessou sua admiração e se propôs a um longo diálogo pessoal. Jesus o acolheu. Em um determinado momento da conversa, lhe disse: "Nicodemos, para entender minha doutrina, é necessário nascer de novo" cf.Jo.3,3ss. - "Como pode alguém voltar ao útero da mãe e nascer outra vez?", replicou Nicodemos. E Jesus estranhou que um doutor de Israel não compreendesse o sentido de suas palavras.

 

     Muitos anos depois, nas comunidades cristãs, nasceu uma lenda em torno deste episódio. Ela conta o seguinte: depois da ressurreição do Senhor, Nicodemos, novamente nas caladas da noite, foi ao encontro Dele. "Mestre, falou-lhe, preciso de tua ajuda neste momento. Dei-me ao trabalho de escrever um novo Evangelho sobre tua pessoa e doutrina. Dediquei-me a esta tarefa anos a fio, com todo afinco e muito amor. No entanto, ninguém está lendo, ninguém se interessa por ele, nem mesmo teus apóstolos. Vim pedir a tua interferência em favor da divulgação do meu Evangelho, ele te  fará mais conhecido e mais amado. Jesus respondeu: Nicodemos, meu amigo, tu me procuraste um dia às escondidas, lembra? no escuro da noite, com medo dos Sumos Sacerdotes. Onde estavas quando eu falava ao povo publicamente, nas ruas e praças? Onde estavas quando teus sócios, os fariseus, e os doutores da lei me levaram ao tribunal e me julgaram e me condenaram? Onde estavas quando me crucificaram? E agora queres divulgar um Evangelho para provar a tua fé? Não, amigo secreto, não posso te ajudar. Vai, antes, ter com Pedro, Tiago e João, escuta o que eles tem a dizer. Depois voltaremos a nos encontrar.

 

     A figura de Nicodemos tornou-se paradigmática, representativa de uma atitude moral frente aos grandes conflitos humanos, a qual chamaremos aqui de neutralidade.

 

     No tribunal da História os neutros tem sido julgados com grande severidade. Vejamos o que dizem alguns gênios do pensamento filosófico. Shakespeare: "ser ou não ser, eis a questão". Maquiavel: "quem fica neutro é sempre odiado pelos que perdem e desprezado pelos que vencem". Dante Alighieri: "em situação de graves conflitos, quem permanece neutro, merece o lugar mais quente do inferno".

 

      Estas duras sentenças não são mais duras do que outras registradas na Bíblia. "Que o vosso sim seja Sim, que o vosso não seja Não! O que passa daí é obra do Maligno" Mt.5,37. "Oxalá fosses  quente ou frio, mas porque és morno, nem quente nem frio, vou te vomitar para fora da minha boca" . Apoc.3,15-16.

 

     Estamos às vésperas da Semana Santa. Voltaremos a reviver os últimos acontecimentos da vida terrena de Jesus. Reviveremos aquela cena dramática diante do tribunal de Pilatos. O Procurador romano, demagogicamente, instiga o povo a tomar posição: "O que devo fazer com o Nazareno?" E a multidão, manobrada pelas autoridades religiosas, grita :

- Crucifica-o! Crucifica-o!

 

     Onde estava Nicodemos neste momento?  Mas não devemos reduzir a pergunta à memória do passado. Esta cena se repete sempre de novo. Onde estava eu? Onde estávamos nós? Onde estávamos quando o justo foi perseguido e condenado?  Onde estamos quando o povo é submetido à servidão e à exclusão?  Quando algum irmão, seja quem for, é abandonado à noite da solidão? Onde estivemos enquanto 300.000 compatriotas foram recrucificados?

 

     A neutralidade se revela em variados comportamentos. Imaginemos alguns que são encontráveis na prática religiosa:

 

     - Prometer para o futuro os milagres da fé em vez de realizar logo os milagres do amor.

     - começar uma homilia com protestos de indignação e terminá-la com apelos à resignação.

     - Amaciar as palavras do Evangelho, encobrindo a sua radicalidade.

     -  Orar o tempo todo para não ter tempo de ir à luta aberta.

     - Discursar sobre o amor do Pai para filhos que sofrem fome.

     -  Amar "todos os pobres da terra" como pretexto para não se comprometer com nenhum.

     - Levantar a bandeira branca da "paz pela paz", ignorando que a paz é fruto da justiça.

     - confundir com a virtude da prudência a cumplicidade do silêncio.

     - Tornar-se o maior revolucionário do mundo, on-line.

     - em resumo, dizer e desdizer, ser e não ser, sempre com o mesmo fim: não tomar posição.

 

 

     Se Jesus tivesse atendido ao conselho do amigo Pedro, às portas de Jerusalém, e voltado para sua casinha de Nazaré, e aí permanecido na tranquilidade, confessando e aconselhando seus fiéis, provavelmente teria vivido até os 80 anos. Contudo, sua obsessão era fazer a vontade do Pai. E  Ele tinha clara cinsciência de até onde o levaria sua fidelidade: "Vim a este mundo receber um batismo de sangue e minha alma está inquieta enquanto este batismo não se consumar" Lc.12, 4ss

     Foi este o preço da nossa Redenção.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

 

sexta-feira, 26 de março de 2021

"CAOS E CONVERSÃO EM TEMPOS DE CORONAVIRUS" 2


 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(24/03/2021)

 

     Nestes primeiros dias de lockdown imposto pelas novas variantes do coronavirus, a nossa fé tem sido posta à prova e cresce o anseio por uma intervenção divina. Como uma criança pobre que insiste no seu pedido, "vai, tio! vai, tio! vai, tio!" assim nossa súplica: vai, Deus! vai, Deus! entra em cena com o teu poder. Chegamos a uma situação-limite, salva-nos, antes que venha o caos!

 

     Faz um pouco mais de 20 séculos, em terras  de Israel, o povo gemia impotente sob o jugo implacável do Império Romano. Restava--lhe uma única esperança: a Fé na vinda do Messias libertador. "Abram-se as nuvens  e façam chover o Salvador. Fenda-se a terra e faça germinar a salvação", clamava o povo há séculos.

 

     Aí chega Jesus de Nazaré. Em sua primeira pregação, convoca todo mundo para uma "metanoia". Mergulhemos fundo no  sentido etimológico desta palavra grega, a fim de compreendermos as suas intenções. "Meta": além, acima e "noia", derivação de "nous": mente. Trata-se, pois, de uma mentalidade nova, gerando novas atitudes. A palavra se supera,  adquire uma nova dimensão, um modo transcendentalmente novo de conceber idéias, de enxergar a vida, a realidade e de se comportar. Comumente ela se traduz com os termos conversão e penitência.

 

     Imaginemos um motorista que transita com seu veículo por uma avenida e, de repente, decide mudar para outra avenida. Ele faz uma manobra que se chama conversão. É uma rota nova, que se abre para a visão de uma nova realidade. A antiga rota ficou para trás. Jesus chama a conversão de "novo nascimento" (cfr.Jo.3,3-6). S. Paulo chama o convertido de "nova criatura" (cfr.Heb.1,11)

 

    Ao longo do tempo este entendimento foi-se diluindo; foi-se limitando ao campo de emoções e práticas corporais (testemunho verbal, adesão a uma nova comunidade religiosa, jejuns, abstinências, etc.). E assim a radicalidade do Evangelho acabou sendo domesticada, amenizada, quando não instrumentalizada, inutilizada.

 

     A prática da Fé, para ser cristã, tem que ser vivida historicamente,  em meio aos acontecimentos. História da Salvação é o seu nome tradicional.

 

     Chega então a hora de perguntar: como viver nossa Fé no confronto com os fatos  que  estão violentando a segurança e a paciência do povo brasileiro, submetido à esquisofrenia dos que ocupam a cúpula do poder político?

 

      Por fidelidade à  metanoia evangélica, não podemos compactuar com suas políticas, sob pena de negar nossa Fé, desde a raiz.

 

     Daí a angústia de muitos cristãos,  a vontade de interpelar a Deus diretamente, como o salmista: "acorda, Deus, por que dormes? Por que escondes a tua face, esquecendo nossa opressão e miséria?" Salmo 44.

 

     Imagino a resposta do Alto: por que eu teria de corrigir, com uma intervenção direta, o caos que vocês mesmos criaram? Como vocês aprenderiam as lições necessárias para prevenir novas catástrofes? - No entanto, Senhor, milhares de pessoas estão perdendo a vida e outras milhões, perdendo a paz! - Houve acaso alguma época na História em que as verdadeiras conversões em favor da vida e da paz não tenham custado martírios e sangue humano? De onde vem estes crimes senão de vossos egoismos e ambições?  - Apesar de tudo, Senhor, vem em nosso socorro, pois estamos perdendo as forças de reagir!  - Enquanto vocês se amedrontarem diante de um grupo de mentes patológicas, com seus planos diabólicos, sem aprender as lições do passado, suas forças só definharão. Se não vos converterdes, ainda que eu destruisse o último coronavirus, voltaríeis aos vossos pecados, causadores de novos virus. - O' Deus, tem piedade. Como iremos celebrar a próxima Páscoa com 300.000 mortes na consciência? - Todos estes foram redimidos pelo sangue do meu Filho. Deixai-os entregues ao meu amor. Eu cuidarei deles e eles viverão para sempre. Mas se quiserdes perpetuar sua memória, perseverai na luta.

 

      Este  diálogo jamais acabaria porque nenhum de seus argumentos é inquestionável. Deus não age por argumentos e sim por compaixão. Se  cremos, rendemo-nos a Ele. Igualamo-nos a uma criança que segura na mão do pai e se sente maior do que o mundo. E ficamos a escutar estas palavras de Jesus: "....fareis as coisas que eu fiz e outras ainda maiores" Jo.14,12. Amém

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

 

quinta-feira, 25 de março de 2021

DEMÔNIOS FOGEM DO INFERNO

  

Frei Betto


 

       O inferno está vazio de demônios porque eles invadiram a Terra com suas obras malignas: pandemia, neonazismo, negacionismo, pedofilia, racismo, homofobia, misoginia, terrorismo digital etc.

       Nos níveis mais profundos do inferno, Dante identifica os hipócritas e os ladrões (no oitavo) e os traidores da pátria e dos amigos (no nono). O que, no Brasil, nos remete aos que consideram a pandemia uma “gripezinha”, fazem cara de paisagem diante das “rachadinhas”, admitem que o nosso país é um “pária” na configuração mundial, evitam medidas para salvar a vida da população e escanteiam aqueles que o ajudaram a se eleger, como fez com Gustavo Bebianno, Major Olímpio e Sérgio Moro.

       Deste lado da vida, nos defrontamos com infernos estruturais: desigualdade social, devastação ambiental, trabalho escravo, genocídio, guerras, armas nucleares e químicas etc.

       Em sua etimologia grega, demoníaco não é um ente, é o desejo de um ser humano de que ele e seus atos sejam considerados definitivos e supremos. Daí o visceral apego de certos políticos ao poder. São pessoas de baixa autoestima e quando alçadas à função de mando encontram nisso uma forma para tentar encobrir suas fragilidades e contradições, alimentando em seus apoiadores a convicção de que estão diante de um “mito”. Como observou Sartre, certos seres humanos vivem na ilusão de ser Deus. 

       Aliás, o que Sartre quis dizer ao cunhar o axioma de que “o inferno são os outros”? Não quis fazer entender que o próximo é demoníaco e, portanto, devemos nos enclausurar no mais ferrenho solipsismo. Quis denunciar que o olhar do outro pode confundir o meu modo de ser e anular a minha individualidade. É o caso de quem tem medo de ser o que é e transfere sua razão de viver para algum “pastor”, “guia” ou “mito” capaz de lhe indicar o caminho da “verdade” que haverá de libertá-lo. Vale lembrar que o demônio sempre se disfarça de anjo, sua primeira natureza.

       “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa, termina por ressaltar o paradoxo que angustiou toda a epopeia de Tatarana: existe ou não o Demo? O narrador, ao final, sublinha: “Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano.”

 

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

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quarta-feira, 24 de março de 2021

O ASPECTO TEOLÓGICO E SOCIAL DA CFE 2021[1]

 Kinno Cerqueira [2]


 

A Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) 2021 é uma colcha entretecida por fios coloridos e diversos. Hoje, tocaremos brevemente em dois desses fios: o teológico e o social.

Quando observamos cuidadosamente esses dois fios, percebemos que eles se apresentam tão entrelaçados, que não é possível separá-los, embora teimemos em distingui-los para, assim, melhor compreendê-los – em condições reais, o teológico é social e o social, teológico.

À medida que eu deslizava minhas mãos sobre esses dois fios e tentava compreender suas amarrações e seus arremates, percebia que esses dois fios da CFE, o teológico e o social, dão muito o que pensar e o que fazer. Todavia, para não nos demorarmos demasiadamente em divagações, decidi apresentar-lhes o que me subiu à mente em duas despretensiosas teses, uma para cada fio, seguidas, respectivamente, de brevíssimas anotações: 1) tese sobre o fio social: a CFE 2021 é uma contracampanha; 2) tese sobre o fio teológico: a CFE 2021 é uma teologia da paz.

A CFE 2021 como contracampanha. Desde 1500, estas terras que chamamos de Brasil gemem sangrando sob a Campanha da Perversidade. As etapas dessa Campanha da Perversidade podem ser distinguidas de diversas formas. De maneira provisória, eu lhes sublinharia quatro fases dessa Campanha da Perversidade: 1ª) a colonização; 2ª) a escravidão; 3ª) a ditadura militar; e 4ª) o bolsonarismo.

Em todas essas fases, houve movimentos de resistência e, entre uma fase e outra, existiram curtos intervalos de abrandamento das perversidades. A CFE 2021 insere-se na tradição dos movimentos de oposição à Campanha da Perversidade que, diga-se de passagem, sempre contou com o apoio majoritário das igrejas cristãs.        

A CFE 2021 como uma teologia da paz. Nas entrelinhas do texto-base da CFE 2021, nota-se um esforço por recuperar e atualizar uma das tradições bíblicas mais fundamentais: o sonho da paz. Por um lado, a CFE 2021 desmascara e repudia a falsa paz, aquela que é a tranquilidade dos que se regalam à custa da exploração do povo e da terra e que sempre contam com a bênção das igrejas para a lubrificação de seus instrumentos de perversidade, quais sejam, o antropocentrismo, o patriarcado, a heteronormatividade, a misoginia, o racismo, a homotransfobia... Por outro lado, a CFE 2021 resgata e apresenta criativa e comprometidamente o shalom bíblico, isto é, a paz como construção da harmonia cósmica a partir da justiça (Is 32,17).  

A Bíblia, no lugar de conceituar o shalom, pinta-o com palavras: as nações e os povos convertendo “suas espadas em relhas de arado e suas lanças, em podadeiras” (Is 2,4), o lobo e o cordeiro habitando juntos, o leopardo e o cabrito dormindo lado a lado, o leãozinho e bezerro vadiando juntos, a vaca e a ursa dividindo a mesma campina e suas crias dormindo juntas, a criança de peito brincando à entrada da toca da cobra e a criança pequena guardando sua mão no interior da toca da serpente... e ninguém faz mal a ninguém (Is 11,6-9). 

E se a CFE proclama que “Cristo é nossa paz” (Ef 2,14), é porque reconhece Jesus de Nazaré como um ser humano que, por ter vivido radicalmente essa tradição do shalom, nos aparece como uma grande inspiração a que também nos convertamos em construtores e construtoras da paz.      

Como esses dois fios da CFE 2021, o social e o teológico, não se arrematam nem se amarram em um só ponto da colcha, contento-me em terminar dizendo que esses dois fios da CFE 2021 são fortemente fracos e fracamente fortes para alinhavar sonhos e entretecer um mundo novo, a começar por nós.     

 

 

[1] Texto apresentado como mote para uma roda de diálogo durante encontro do CEBI Metropolitano do Recife, em fevereiro de 2021.

[2] Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.

 

    

 

 

terça-feira, 23 de março de 2021

ÁGUA E AS PANDEMIAS DA HUMANIDADE



Marcelo Barros

 

Este é o segundo ano no qual celebramos o dia internacional da água em plena pandemia. Lavar as mãos e cuidar mais da higiene pessoal são preocupações primárias para todos. No entanto, como cumprir essas exigências sanitárias em um Brasil no qual água e saneamento ainda parecem luxos aos quais grande parte das pessoas não têm acesso?

 Conforme dados oficiais, quase metade da população do Brasil continua sem acesso a sistemas de esgotamento sanitário. Quase 100 milhões de pessoas, ou seja, 47% dos brasileiros, utilizam medidas alternativas para lidar com os dejetos – seja através de uma fossa, seja jogando o esgoto diretamente em rios. Além disso, mais de 16% da população, ou quase 35 milhões de pessoas, não têm acesso à água tratada, e apenas 46% dos esgotos gerados nos país são tratados.

O fato da ONU consagrar o dia 22 de março como “Dia internacional da Água” nos recorda que, além da pandemia, vivemos uma crise que abrange toda a humanidade e afeta o planeta Terra. O modo de organizar o mundo, baseado na exploração de seres humanos e na destruição da natureza não tem mais sustentação. Dos mais de sete bilhões de pessoas que habitam a face do planeta, apenas 1% goza os privilégios desta sociedade consumista e predadora da humanidade e da Terra.

A consciência dos limites do planeta começou surgir a partir da década de 60, mas aprofundou-se na década de 70 e generalizou-se a partir da década de 80. Entre todos os bens da Terra e da Vida, o mais ameaçado é a Água. É o maior problema ecológico de nossos tempos e é motivo de conflitos e guerras entre vários povos em quase todos os continentes. Se um bilhão e duzentos milhões de seres humanos não têm acesso à água potável e milhões de crianças, em muitos países pobres, morrem em conseqüência do uso de águas impróprias para a saúde, não podemos mais não cuidar com prioridade desta questão. O uso que a sociedade faz da água aumenta sempre. Enquanto isso, por causa da poluição e do aquecimento global, os rios diminuem de volume normal. Muitos estão agonizantes, como o São Francisco. Na região amazônica, grandes rios contaminados por mercúrio. Em Minas Gerais e outras regiões do país, rios mortos pelos elementos tóxicos jogados pelas barragens das mineradoras. A cada dia, em todas partes, as fontes de água diminuem e o uso das águas continua predatório.

Essa realidade ainda se torna mais problemática porque a sociedade capitalista transforma a água em mercadoria e a privatiza. Empresas como a Coca-Cola, a Nestlê e Danoni se tornam donas de fontes de águas. Atualmente, todas as fontes minerais da cidade de São Lourenço, MG e a própria água que serve à cidade são propriedade particular da Coca-cola e são vendidas como mercadoria. 

Muitos grupos da sociedade civil têm se mobilizado contra este crime. O Uruguai conseguiu passar uma lei na nova Constituição Federal que proclama claramente: “A Água é uma necessidade e direito de todos os seres vivos. Por isso, não poderá ser privatizada nem mercantilizada”.

A resistência contra a mercantilização da água continua difícil e violenta. Basta lembrar a lei que privatiza o saneamento, lei sancionada pelo atual presidente em 15. 07. 2020. Mas, a organização da sociedade civil mais consciente e os grupos ecológicos não descansam. Grupos organizados aceitam pagar os serviços da empresa que nos traz água até em casa, mas não pagar pela água.

Na Itália, em 2004, as comunidades se organizaram e conseguiram obter uma grande vitória: obrigaram 136 prefeituras a retirar a deliberação – já muitas vezes, implementada – de privatizar a água. De lá para cá, a luta se ampliou e espalhou-se por outras regiões e países.

É importante que todos/as tomem consciência do problema. É urgente educar-se e educar os seus a tomar todo cuidado para poupar água, proteger rios e fontes próximos à sua casa ou em sua região. Além de cuidar do consumo da água na própria casa e outros espaços que frequenta, quem tem possibilidades, pode formar espontânea e civilmente comissões de defesa das bacias hidrográficas, previstas em lei federal ou participar ativamente nos Comitês de Bacias Hidrográficas onde eles já foram implementados.  

No Brasil e em todo o mundo existem várias organizações consagradas à luta pela democratização da Água. Elas pedem à ONU que proclame a Água como bem comum da humanidade e direito universal de todo ser vivo. Em todas as regiões, se podem participar dessas associações. Assumir, individual e coletivamente,  a responsabilidade desta questão vital e juntar-se a  todas e todos que se propõem a ser Guardiões da Água é fazer com que a Paz e a Justiça possam ocorrer no mundo.   

 

 

 






Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 22 de março de 2021

"CAOS, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS"

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(20/03/2021)

 

     Esta manhã, bem cedo, do alto da minha janela aberta para a cidade, contemplo ruas e praças e tenho uma sensação comparável ao "dia seguinte do final da Copa do Mundo de 1950" ou comparável a uma "véspera de fim do mundo". No primeiro caso: tristeza; no segundo: medo.

 

     Esta sensação não procede do ineditismo de ruas e praças inteiramente vazias de seres humanos, não, é algo fúnebre, talvez efeito emocional dos pesadelos desta noite, acumulando imagens das más notícias do dia anterior. Há muito tempo não via um noticiário tão deprimente. Catástrofe, exaustão, esgotamento, tragédia, depressão, colapso, são alguns substantivos empregados pela mídia. Destes, escolho um, em especial, como o mais próximo da realidade: tragédia. Em seu sentido etimológico. De origem grega, esta palavra designava o canto que precedia a matança ritual de bodes nas festas de Baco. (Nestes tempos de culto à natureza, decerto não pega mal esta analogia entre bodes e seres humanos; a dor que precede a morte nivela todas as vidas).

 

    Afinal o que está acontecendo fora do que os nossos olhos alcançam? O que irá mudar para além do que prevêem as nossas conjecturas? Será que Deus está mudo? Ou será que Ele está falando para ouvidos surdos?

 

     Nossa fé desatenta espera, da parte Dele, intervenções fenomenais, espetaculares, capazes de provar que, desta vez,  é a Divindade que vai entrar em campo. E não nos damos conta de que, há milênios, Deus fala de mil maneiras e por mil sinais.  Desde o início da pandemia, temos sido advertidos por vozes proféticas: não basta precaver-se com medidas preventivas. Nem mesmo basta esperar a vacina prodigiosa. É preciso mudar de vida, converter-se, mudar modelos da convivência humana, mudar relações com a natureza, mudar aspirações e finalidades, mudar estruturas de poder, mudar projetos políticos e econômicos. A reação geral é o eco de velhos jargões: "tudo, menos mudanças nos meus planos de vida!" "Tudo, menos privação dos meus prazeres!"  "Tudo, menos perda de meus lucros!"

 

     Mais grave do que tudo isso é a sensação que me ocorreu, e ainda persiste. A sensação de que existem grupos diabólicos, com intenções diabólicas, para fins diabólicos. Estes grupos advogam uma nova idéia de libertação: libertar-se de tanta gente que está ocupando os espaços onde menos gente poderia ser feliz. Como  seria feliz um Brasil de  80 milhões de habitantes em vez de 200 milhões, com superlotação de massa improdutiva! "A culpa é dos pobres, proliferando feito coelhos". Infelizmente as leis não permitem que contratemos matadores profissionais. Daí nada mais oportuno do que uma pandemia para fazer uma "seleção natural".

 

     Imagino alguém se agitando dentro do túmulo: Charles Darwin (1809-1882). Depois de mais de 20 anos de pesquisa,  ele chegou à conclusão de que a sobrevivência das espécies está associada  à seleção natural e isso se dá como forma de adaptação ao meio ambiente em que habitam. Aplicada à sociedade humana, a seleção natural acontece à medida em que algumas sociedades se extinguem por incapacidade de acompanhar a linha evolutiva das demais.

 

     O que pretendem os diabólicos nazi-fascistas de plantão? - Pretendem apressar esta seleção, a ferro e fogo. Não podemos esperar séculos! Temos que agir agora!

 

     Só de imaginar, vejo, a poucos metros, o espectro de Hitler. Então  boto a mão no fogo da minha fé e digo: não! Não! Jamais! Enquanto aguardo a reação dos meus companheiros, a fim de saber se vale a pena ir adiante neste assunto, vou meditar nestas palavras de Jesus: "Se tiverdes fé, como um grão de mostarda, direis a este monte: retira-te! E ele obedecerá." Mt. 17,20.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

sábado, 20 de março de 2021

“FRATERNIDADE E DIÁLOGO: COMPROMISSO DE AMOR” – POR UMA MÍSTICA DAS INSIGNIFICÂNCIAS [1]

 

Kinno Cerqueira [2]


 

 

Introdução

O tema da Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) 2021 faz jus às intuições mais profundas do Evangelho de Jesus de Nazaré. Durante nossa conversa, eu gostaria de abordá-lo sob a perspectiva de “uma mística das insignificâncias”. Para fazê-lo, preciso, porém, efetuar um recuo ou abrir um parêntese que nos permita refletir sobre algumas questões que subjazem sutilmente à CFE e seu tema.

 

Por um diálogo a partir das dessemelhanças

As teologias católicas e protestantes conservam semelhanças e dessemelhanças entre si. No transcurso de uma Campanha da Fraternidade Ecumênica, como esta que ora vivemos, testemunhamos um grande esforço para firmar um diálogo fraterno entre as tradições católica e protestante por meio da evidenciação e da valorização dos aspectos teológicos comuns a estas duas tradições, sendo as diferenças teológicas postas em segundo plano ou anexadas à lista de assuntos proibidos. Nesta perspectiva, as semelhanças são concebidas como condição fundamental para a realização do diálogo fraterno, enquanto as dessemelhanças lhe são uma ameaça a ser evitada.

Evidenciar e valorizar as semelhanças entre as tradições católica e protestante constitui um esforço necessário e louvável. Todavia, pergunto-me se a fuga das dessemelhanças não superficializa ou, pior ainda, falsifica o diálogo. Notadamente, o ecumenismo que conhecemos está mais voltado para a construção de uma narrativa midiática – que se adeque ao politicamente correto – do que para a instauração de um genuíno diálogo entre corações. Por conta disto, as CFEs, não obstante seu inestimável valor, revelam-se profundamente ambíguas: por um lado, evidenciam as semelhanças entre as tradições católicas e protestante e promovem um suposto diálogo; por outro, mascaram as dessemelhanças existentes entre essas tradições e, consequentemente, superficializam o diálogo, impedindo-nos de fazer uma experiência de alteridade que resulte em fecundas sínteses.

A minha intuição caminha num sentido um pouco distinto do que costuma impulsionar o diálogo entre as tradições católica e protestante: desejo que dialoguemos a partir das dessemelhanças entre essas tradições, precisamente sobre uma dessemelhança teológica que julgo ser de fundamental importância para o aprofundamento da fé – entenda-se fé como nossa resposta concreta ao evangelho de Jesus de Nazaré.

 

Um ponto de dessemelhança: as dimensões da fé

“A teologia não é Deus”: eis uma proposição ao mesmo tempo sabida e desconsiderada. Todas as teologias, inclusive aquelas que produziram nossos credos, catecismos e concílios, são compreensões e discursos humanos sobre (as revelações de) Deus. Visto que o ser humano sempre sente, compreende e discursa a partir de sua condição subjetiva e histórica, as teologias refletem, em grande medida, o espírito do tempo em que foram formuladas [3].

As teologias católica e protestante apresentam-se, cada uma por sua vez, como um conjunto de tendências que se encontram e se desencontram, de tal modo que, ao invés de falarmos em teologia católica e teologia protestante, seria mais honesto pluralizarmos estas palavras, dizendo assim: teologias católicas e teologias protestantes. Porém, a despeito da reconhecida pluralidade teológica das tradições católica e protestante, arrisco dizer-lhes que, em alguns aspectos, é perfeitamente possível distinguir as teologias católicas das teologias protestantes, e vice-versa. E tais aspectos diferenciadores tem que ver com as condições subjetivas e históricas em que tais teologias formularam suas linhas mestras.

Uma análise comparada das teologias católicas com as teologias protestantes deixa ver várias dessemelhanças entre estas duas grandes tradições cristãs. Dentre essas dessemelhanças, destaco uma: a compreensão sobre as dimensões da fé – e insisto:  entenda-se fé como nossa resposta concreta ao evangelho de Jesus de Nazaré.

As teologias católicas carregam em si a inapagável experiência política da igreja mater et magistra (mãe e mestra), enquanto as teologias protestantes nascem num contexto de transição da Idade Média para a Modernidade, um tempo marcado pela realocação da religião no âmbito privado e pela ênfase na consciência individual. Disso resulta que, por um lado, as teologias católicas acentuam a dimensão comunitário-política da fé, ao passo que as teologias protestantes, por outro lado, enfatizam a dimensão “pessoal” da fé [4]. Noutras palavras: se o horizonte da tradição católica é a igreja universal e o mundo como um todo, os olhos protestantes estão voltados para a pessoa isoladamente ou, quando muito, para a igreja local.

Agora que tomamos conhecimento dessa dessemelhança entre a tradição católica e a tradição protestante, perguntamo-nos: o que isso nos revela? Em primeiro lugar, que estamos diante de um dado de realidade que nos convida a assumir nossas diferenças. Em segundo, que esta diferença em particular nos convida a revisitar a vida de Jesus, conforme narrada nos evangelhos, a fim de revisarmos nossa compreensão sobre as dimensões da fé.

 

A fé de Jesus

Quando caminhamos pelas páginas dos quatro evangelhos canônicos, vemos Jesus igualmente entregue a experiências triviais e a feitos grandiosos. Jesus conversa com uma mulher samaritana à beira de um poço (Jo 4,1-42), anda de mãos dadas com um cego (Mc 8,22-26), abraça uma criança (Mc 9,33-37), contempla os lírios do campo e os passarinhos dos céus (Mt 6,25-34), caminha com dois peregrinos assustados (Lc 24,13-35), assa pão e peixe à beira-mar (Jo 21,1-9) e entrega como herança o convite ao amor profundo (Jo 13,34-35). Com igual vivacidade, Jesus denuncia a corrupção do templo (Jo 2,13-22), chama o rei Herodes de raposa (Lc 13,31-35), desmascara as práticas homicidas dos religiosos (Lc 11,45-52) e ensaia uma revolução social a partir dos empobrecidos (Lc 6,20-26; Mt 25,31-46).

Notadamente, Jesus assume cada instante como experiência de Deus, seja o passarinho que voa e a criança que corre, seja a denúncia da injustiça e a tomada de opção pelos empobrecidos. A fé de Jesus, isto é, seu compromisso com Deus, tem, pois, dimensão pessoal e comunitário-política. Para Jesus, extasiar-se ante uma meiga flor que dança ao vento é uma experiência de fé tão profunda quanto assumir o cruento caminho da cruz.

 

Por uma mística das insignificâncias

A vida de Jesus inspira-nos a viver uma mística das insignificâncias. Mística é experiência profunda de Deus. Martinho Lutero dizia que Deus é tão pequenino a ponto de habitar um grão de areia e tão grandioso a ponto de carregar o mundo na ponta dos dedos. A vida mística é um aperceber-se da presença de Deus nas acontecências mais profanas e corriqueiras e nas experiências mais complexamente articuladas. 

A ênfase exclusiva na dimensão pessoal da fé resulta num individualismo egóico que nos aprisiona em nós mesmos, de modo a não nos sentirmos responsáveis pela transformação do mundo. A acentuação da dimensão comunitário-política da fé, por sua vez, faz-nos esquecer das pequenas coisas, inclusive da necessidade de transformar nosso mundo interior. A mística das insignificâncias nos convida a abrir o coração para implicarmo-nos em tudo. A plenitude da força da fé depende da sensibilização de nosso olhar e da totalidade de nossa entrega.

A CFE 2021, para ser vivida em profundidade, precisa ser dinamizada por uma mística das insignificâncias. Como escreveu o poeta mato-grossense Manoel de Barros:

Poderoso pra mim não é aquele que descobre o ouro.

Pra mim poderoso é aquele que descobre

as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado e chorei.

 

Neste caminho místico, haveremos de perceber que as insignificâncias são, a bem da verdade, apenas aparentes insignificâncias: se é preciso salvar o planeta para preservar os jardins, é igualmente verdade que uma pétala pode salvar o mundo.

 

 

Notas:

[1] Texto apresentado numa roda de conversa da Escola Vivencial de Fé do Movimento de Cursilho da Cristandade, em 16 de março de 2021 (https://www.youtube.com/watch?v=PqJwyYbLjEQ).

[2] Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.

[3] As teologias podem conter em si uma mescla de oposição e negação em relação ao tempo em que foram gestadas e formuladas. O que não há, porém, é neutralidade. Afinal de contas, quem pensa e discursa sempre o faz em reação a outrem, ainda que inconscientemente.  

[4] O aspecto comunitário-político da fé pode ser visto, no âmbito comunitário, na importância conferida à igreja, aos sacramentos, às mediações da graça etc. e, no âmbito político, na existência da DSI (Doutrina Social da Igreja), de consideráveis encíclicas, de pastorais, de grupos de fé e política etc. Por outro lado, a ênfase das teologias protestantes na dimensão pessoal da fé revela-se, por exemplo, na maneira com a qual os protestantes se agarram com a ideia de salvação como resultado da adesão à “verdade” da fé doutrinal, o que se daria, inclusive, sem necessidade de obras de amor.