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quinta-feira, 31 de maio de 2018

ERA DE INCERTEZAS



 por Frei Betto



      Vivemos na era de incertezas. Há mais perguntas que respostas. Mais dúvidas do que certezas. Navegamos à deriva na terceira margem do rio. Abandonamos a primeira, a modernidade com sólidos paradigmas filosóficos e religiosos, e ainda não sabemos como se configurará a segunda, a pós-modernidade.

      Estão em crise as grandes instituições pilares da modernidade: o Estado, a Família, a Escola e a Religião. Vigoram modelos e propostas para todos os gostos. 

      Em meio à turbulência, emerge com nitidez o mundo hegemonizado pelo capitalismo neoliberal. A financeirização da economia supera a produtividade. A regulação da sociedade se desloca das mãos do Estado para as do mercado. 

      Se no século passado a Europa fez concessões à socialdemocracia como antídoto à ameaça socialista, agora os direitos sociais retrocedem e novas tecnologias tornam obsoleto o trabalho humano.

      Como tudo que é sólido desmancha no ar, é preciso criar exceções e dar consistência ao sistema globocolonizado de consumismo e hedonismo. Assim, difunde-se a ideologia da privatização, concomitante ao esgarçamento das instituições. Privatiza-se a política. Já que os políticos fracassaram, entrega-se a administração pública a empresários bem-sucedidos. Já que os partidos se desmoralizaram, cada um que lance mão de seu celular e faça dele sua tribuna de ódio ou aplauso. 

      Para sustentar essa democracia virtual sobre abissal desigualdade social, cria-se a cultura da apartação. UPPs, não para combater o crime organizado, e sim para assegurar que a turba ignara desça dos morros em fúria ensandecida. Se desaba um prédio ocupado por sem tetos, a culpa é das vítimas. O discurso do ódio é legitimado até pelo STF ao confundir graves ofensas à honra alheia com liberdade de expressão. 

      Passamos da era analógica à digital. Mudam também os padrões de relacionamentos. O valor do outro depende de sua posição no mercado. E fora do mercado não há salvação. 

      Nem tudo, entretanto, se ajusta à mercantilização do planeta em detrimento dos direitos humanos. E o maior desajuste reside em nossa relação com a natureza. Esgotou-se o tempo. A ânsia de lucro poluiu o ar, o mar e a terra. Ou mudamos os nossos paradigmas socioambientais ou a Terra voltará a viver como ao longo de milênios, sem a nossa incômoda presença.

      Há que se adotar o desenvolvimento sustentável, no qual estejam incluídos o ecológico, o social e o cultural. No fim da década de 1940, o Japão, arruinado pela guerra, era mais pobre que o Brasil. E quarenta anos depois, quando o nosso país se destacou como a 8ª economia do mundo, o Japão já figurava entre as cinco primeiras. Havia promovido uma revolução educacional, o que jamais fizemos. 

      Nosso modelo de desenvolvimento continua predatório e são tímidas as iniciativas para que, neste país ensolarado, as energias eólica e solar prevaleçam sobre as fósseis, tão poluidoras do meio ambiente. É preciso mudar os paradigmas do que entendemos por progresso e avanço civilizatório. Os países europeus e os EUA comprovam que crescimento do PIB não significa redução da desigualdade social. E como tem acentuado o papa Francisco, desenvolvimento que não tem centralidade no ser humano, e sim do acúmulo do capital privado, é antiético. 

    Quiçá os índios andinos tenham algo a nos ensinar quando sublinham a diferença entre "viver bem" e "bem viver".


Frei Betto é escritor, autor do romance “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.


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terça-feira, 29 de maio de 2018

CONVITE PARA DANÇAR COM DEUS




Por Marcelo Barros


"A missão de quem crê é semear ressurreição", afirma Dom Pedro Casaldáliga. Pessoas dos mais diversos caminhos espirituais fazem isso quando testemunham que a proposta divina é um amor transformador das estruturas. Estamos vivendo um tempo de intolerâncias, ódios e radicalismos de direita. Nesse contexto, retomamos um ensinamento de Etty Hillesun. Nos tempos do Nazismo, essa jovem judia, condenada à morte, esperava a hora da execução em um campo de concentração. E ela afirmou: “Eles podem roubar tudo de nós, menos nossa humanidade. Nunca poderemos permitir que eles façam de nós cópias de si mesmos, prisioneiros do ódio e da intolerância”.

 A espiritualidade social e política libertadora nos torna capazes de sermos radicais em nossas opções e posicionamentos, sem abrir mão de nossa capacidade de amar e de nossa ética de respeito à dignidade do outro, seja ele quem for. É isso que as pastorais sociais fazem quando revelam que a transformação do mundo se faz a partir de baixo. É a inserção cotidiana nas bases que, como um trabalho de formiguinha vai semeando no mundo um jeito novo e amoroso de fazer trabalho social e político. Essa é a inspiração do Amor Divino nos corações humanos e que deve transformar as estruturas do mundo. Assim testemunhamos que Deus é Amor. Esse amor está presente como energia criadora e permanente no universo e dentro de cada um de nós. No mundo, animais e até plantas se mostram sensíveis a uma música bela e se desenvolvem quando são tratados com amor. No universo mais amplo, a Física contemporânea mostra que o movimento e os ritmos são propriedades essenciais da matéria. Os grandes cientistas da Cosmologia (por exemplo, Fritjof Capra) concordam que toda matéria – tanto na Terra como no espaço – está envolvida numa dança cósmica. Isso não é metáfora. É real. 

O caminhar rítmico dos astros e o correspondente movimento da Terra que influi nos mares e no pulsar da Terra, assim como a batida do coração da vida, tudo isso tem um segredo, um ritmo oculto. Quando o ritmo da dança se modifica, o som produzido também muda. Cada átomo canta incessantemente sua canção, e a cada momento, cria formas densas e sutis. Isso faz parte de uma dança que, na antiga Índia, os mestres espirituais já haviam intuído. Eles a chamavam:  a dança de Shiva, a divindade que renova o universo. A dança cósmica do universo é espelho e expressão de uma dança divina, uma dança amorosa que mantém o ritmo do cosmos. 

Cada um de nós só se torna pessoa e se realiza através do Amor, isso é, na relação com Deus em nós, na comunhão com os outros e no cuidado com a Terra e a natureza. Há uma relação trinitária inscrita em nosso próprio ser humano e a sabedoria da vida se alcança quando conseguimos que essas três dimensões diversas se harmonizem em uma dança íntima que, mesmo na idade adulta, pode parecer espiritualmente uma cantiga de ninar. Esse mesmo mistério que é arte como o de bailar em um contexto nem sempre favorável à dança do amor, se revela em nós, como mistério de Deus. Mistério que está em nós, mas nos ultrapassa. É maior do que nós. Nele, Deus em nós se revela como Pai de amor maternal, com o qual nós, cristãos só podemos nos relacionar intimamente através de Jesus, seu Filho, ressuscitado em nossa comunhão humana e no Espírito que se manifesta como mãe e alma do universo. É mistério de amor presente no mais íntimo de cada um de nós. Essa Terna Trindade não existe fora de nós, em um céu distante, mas presente e atuante em nossa comunhão de amor, no cuidado com a Terra, a água e todos os seres vivos.

A Ternura é uma palavra que corresponde a uma expressão muito querida, tanto da tradição bíblica, como do Zen-budismo e do Dalai Lama: a palavra  compaixão. No hebraico, o termo Rahamin significa literalmente “amor uterino”. Quer dizer que quando somos capazes de um amor uterino somos capazes de ternura. O que seria esse amor uterino? No seu discurso de Benarés, Buda diz que devemos olhar o outro, o nosso semelhante, como uma mãe olha o filho esperado que está ainda em seu útero. Esse amor uterino é o amor divino em nós. É o amor de pura ternura. Cada pessoa tem momentos e situações que provocam ternura. Entretanto, são momentos circunstanciais. Não bastam. 

É necessário assumirmos a Ternura como princípio básico e permanente do nosso jeito de viver. Para isso, é preciso um método de vida que a gente cultive e exerça tanto quando as situações favorecem, principalmente quando a realidade que nos envolve não é tão favorável assim. Os Evangelhos testemunham: Jesus viveu a partir deste princípio. Era como um jeito de viver. Então mesmo quando ele se irritava, ou devia denunciar o mal, era movido por este princípio da Misericórdia ou da Ternura[1]. Por isso, precisamos de uma verdadeira terapia interior para conseguir colocarmos nossa vida na sintonia com o Princípio Ternura, novo estado de consciência, mais respeitoso para com a Terra e cuidadoso com a vida. Nesse caminho, devemos valorizar mais a razão cordial e a inteligência emocional e criar espaço para a espiritualidade, fonte de contemplação, gratuidade e veneração. Dizia Kallil Gibran: “Quando você conseguir viver a Ternura como princípio, não diga ‘tenho Deus no coração'. Diga: “estou no coração de Deus”.

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.


[1] - Jon Sobrino explica isso muito bem no seu livro: Princípio Misericórdia, Ed. Vozes. Eu prefiro dizer “Princípio Ternura”

segunda-feira, 28 de maio de 2018

CHILE: A PEDOFILIA E A VERDADE QUE LIBERTA



Por Maria Clara Bingemer

 A Igreja do Chile vive tensos momentos. Depois de seguidas denúncias de abusos sexuais por parte de sacerdotes e o encobrimento das mesmas por membros da hierarquia católica, o Papa Francisco foi procurado pelas vítimas. Em um primeiro momento não aceitou as denúncias por considerá-las falsas.  Uma vez convencido por seus emissários que investigaram os fatos in loco, constatou que havia sido mal informado, pediu perdão às vítimas e convocou todos os bispos do país a Roma.
A reunião entre os bispos e o Papa foi dura, dolorosa, mas franca e transparente. Ao final da mesma, a Igreja e o mundo se surpreenderam ao saber que todos os bispos se colocaram à disposição do pontífice para que atuasse com toda liberdade quanto ao futuro deles. Trata-se de algo inusitado em termos eclesiais. E por isso não se sabe o desfecho que terá.
Quem permanecerá? Quem sairá?  Quem será confirmado na missão que desempenha agora?  Quem deverá deixá-la? Sobre isso nada se sabe.  Sabe-se, porém, que neste tema tão tenebroso da pedofilia na Igreja pela primeira vez as feridas são expostas sem complacência ou meias medidas.  O processo poderá ser muito difícil, mas existe uma real oportunidade de sanar o futuro.
Desde o momento em que constatou claramente que as vítimas diziam a verdade com suas denúncias, Francisco atuou de forma transparente. Ao reunir-se por três dias com os bispos chilenos, entregou-lhes um documento de dez páginas.  Nele, não poupava expressões e chamava as coisas pelo nome: negligência, omissão, erros graves, vergonha. Os bispos refletiram sobre o que lhes era dito e chegaram conjuntamente à posição de deixar o Papa  decidir e agir com toda liberdade
Não é de hoje que o fantasma da pedofilia assombra a Igreja Católica. Todos recordamos o drama que Bento XVI teve que enfrentar logo no início de seu pontificado. O caso do Chile soma-se a essa lamentável lista de escândalos  que fragiliza o tecido eclesial e a credibilidade da instituição. Por ser tão grave, não pode ser tratado com medidas paliativas.  Há que reconhecer o erro, pedir perdão e procurar reconstruir integralmente o que foi destruído. 
O gesto dos bispos é admirável em sua radicalidade.  Agradecem às vítimas por haver, com suas denúncias, permitido que a verdade venha à luz. Elogiam sua perseverança e coragem ao expor publicamente suas feridas e persistir em tentar ser ouvidos em meio às incompreensões e ataques inclusive da comunidade eclesial. Pedem perdão à Igreja como um todo e particularmente à do seu país. Agradecem ao Papa sua escuta paternal, sua correção fraterna e o honesto diálogo que com eles manteve.
Admirável igualmente foi a atitude de Francisco.  Se em um primeiro momento não aceitou as denúncias por considerá-las falsas, não deixou de mandar apurar e investigar os fatos.  E uma vez constatada a pertinência do que diziam as vítimas, teve a coragem de pedir perdão e mudar sua decisão.
Por mais chocante que pareça todo o acontecido, na verdade, o decurso de todo o processo deixa perceber claramente a força do Espírito que conduz à verdade e é  verdade em si mesmo.  Já diz a Escritura que o outro nome do demônio é Pai da mentira.  Tudo que é falso, camuflado, encoberto não vai na direção da justiça, da paz e do amor.  Entra, pois, em rota de colisão com a Boa Nova que o Evangelho traz e não sintoniza com o projeto do Reino de Deus. 
É preciso, pois, romper.  E foi essa ruptura – dura e dolorosa – mas poderosamente sanadora que aconteceu. Aconteceu no confronto do qual foram personagens as vítimas dos abusos, os bispos chilenos e o Papa. Aconteceu na percepção de Francisco de onde estava a verdade que urgia que se corrigissem rumos e tomassem medidas enérgicas.  Aconteceu na abertura sincera dos bispos que renunciaram a controlar seu destino e o puseram em mãos do Papa. 
De fato, com tudo que tem de sombrio, trata-se de um evento luminoso. Finalmente está para sempre banida a secreta convicção de que o clericalismo que ainda habita a Igreja protege os abusadores, confiantes no silêncio das vítimas.  É evidente que estas não mais estão dispostas a calar seu sofrimento e o dano que lhes foi feito. Isso permite esperar para as novas gerações um clero mais responsável e adulto.  Igualmente um episcopado mais cuidadoso na formação de seus seminaristas e mais vigilante sobre o que se passa em suas comunidades. 
Fica claro igualmente que quando se busca com sinceridade o caminho do bem, o medo é vencido e emerge a honesta disposição de reparar os erros cometidos. Mesmo que não seja fácil, que isso implique viver momentos de incerteza e de insegurança, confiando apenas na misericórdia divina. 
O que sucede neste momento com a Igreja do Chile permite esperar tempos melhores com respeito às relações intra eclesiais. A pedofilia acontece em todos os setores da sociedade.  Não é prerrogativa da Igreja Católica tê-la em suas fileiras.  No entanto, talvez o modo como essa mesma Igreja, sob a direção do Papa Francisco, está administrando algo tão conflitivo possa ser um testemunho que ajude a sociedade como um todo ao deparar-se com o mesmo problema. 
Se. como disse Jesus Cristo, só a verdade liberta, parece que há reais motivos para celebrar o processo libertador que hoje vive a Igreja do Chile. 

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão, entre outras obras. 

 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sexta-feira, 25 de maio de 2018

A CRISE BRASILEIRA E A DIMENSÃO DE SOMBRA




por leonardo boff

A crise brasileira generalizada, afetando todos os setores, pode ser interpretada por diferentes chaves de leitura. Até agora prevaleceram as interpretações sociológicas, políticas e históricas. Pretendo apresentar uma derivada das categorias de C.G.Jung com sua psicologia analítica pois é esclarecedora.
Avanço já a hipótese de que o atual cenário não representa uma tragédia, por mais perversas que continuam sendo as consequências para as maiorias pobres e para o futuro do país com o estabelecimento do teto de gastos (PEC 55). É mais que o congelamento de gastos, significa a impossibilidade de se criar um Estado Social e com isso jogar no lixo o bem comum que inclui a todos.
A tragédia, como mostram as as tragédias gregas, terminam sempre mal. Creio que não é o caso do Brasil. Estimo que estamos no centro de uma incomensurável crise dos fundamentos de nossa sociedade. A crise acrisola, purifica e permite um salto de qualidade rumo a um patamar mais alto de nosso devir histórico. Sairemos da crise melhores e com nossa identidade mais integrada.
Cada pessoa e também os povos revelam em sua história, entre outras, duas dimensões: a de sombra e a de luz. Outros falam de demens (demente) e sapiens (sapiente) ou da força do positivo e a força do negativo, da ordem do dia e da ordem da noite ou do thanatos (morte) e de eros (vida) ou do reprimido e do conscientizado. Todas estas dimensões sempre vêm juntas e coexistem em cada um.
A atual crise fez aparecer as sombras e o reprimido por séculos em nossa sociedade. Como observava Jung o “reconhecimento da sombra é indispensável para qualquer tipo de autorealização e, por isso, em geral, se confronta com considerável resistência”(Aion &14). A sombra é um arquétipo coletivo (imagem orientadora do insconsciente coletivo) de nossas nódoas e chagas e fatos repugnantes que procuramos ocultar porque nos causam vergonha e até despertam culpa. É o lado “sombrio da força vital”que atinge pessoas e inteiras nações, observa o psicólogo de Zurique.(&19).
Assim existem nódoas e chagas que constituem o nosso recalcado e a nossa sombra como o genocídio indígena em todo tempo de nossa história até hoje; a colonização que fez o Brasil não uma nação mas uma grande empresa internacionalizada de exportação e que, na verdade, continua até os dias atuais. Nunca pudemos criar um projeto próprio e autônomo porque sempre aceitamos ser dependentes ou fomos refreados. Quando começou a se formar, como nos últimos governos progressitas, logo foi atacado, caluniado e barrado por mais um golpe das classes endinheiradas, descendentes da Casa Grande, golpe sempre ocultado e reprimido como o de 1964 e a de 2016.
A escravidão é a nossa maior sombra pois durante séculos tratamos milhões de humanos trazidos à força de Àfrica como “peças”, compradas e vendidas. Uma vez libertos, nunca receberam qualquer compensção, nem terra, nem instrumentos de trabalho,nem casa; eles estão nas favelas das nossas cidades. Negros e mestiços constituem a maioria do povo. Como mostrou bem Jessé Souza, o desprezo e ódio jogado contra o escravo foi transferido aos seus descententes de hoje.
O povo em geral segundo Darcy Ribeiro e José Honório Rodrigo, são os que nos deram o melhor de nossa cultura, a língua e as artes mas, como Capistrano de Abreu bem sublinhava foi “capado e recapado, sangrado e ressangrado”, considerado um jeca-tatu, um ignorante e por isso colocado à margem de onde nunca deveria sair.
Paulo Prado em seu Retrato do Brasil :ensaio sobre a tristeza brasileira,1928) de forma exagerada mas, em parte, verdadeira, anota esta situação obscura de nossa história e conclui:”Vivemos tristes numa terra radiosa”(em Intérpretes do Brasil,vol.2 p.85). Isso me faz lembrar a frase de Celso Furtado que levou ao túmulo sem resposta: “Porque há tantos pobres num país tão rico?” Hoje sabemos: o porquê: fomos sempre dominados por elites que jamais tiveram um projeto Brasil para todos apenas para si e sua riqueza. Como é possível que 6 milhardários tenham mais riqueza que 100 milhões de brasileiros?
A atual crise fez irromper a nossa sombra. Descobrimos que somos racistas, preconceituosos, de uma injustiça social de clamar aos céus e que ainda não nos foi possível refundar um outro Brasil sobre outras bases, princípios e valores. Daí a difusão da raiva e da violência. Ela não vem das maiorias pobres. Vêm difundidas pelas elites dominantes, apoiadas por meios de comunicação que conformam o imaginário dos brasileiros com suas novelas e a desinformação. Para Jung “a totalidade que queremos não é uma perfeição, mas sim um ser completo”(Ab-reação,análise dos sonhos e transferência & 452) que integra e não recalca, a sombra numa dimensão maior de luz. É o que desejamos como saída da atual crise: não reprimir a sombra mas incluí-la, conscientizada, no nosso devir superando os antagonismos e as exclusões, para vivemos juntos no mesmo Brasil que Darcy Ribeiro costumava dizer ser:”a mais bela e ridente provincia da Terra”.
Leonardo Boff é filósofo,eco-teólogo e escreveu Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes 2018


quinta-feira, 24 de maio de 2018

ARQUIVOS DA DITADURA E MEMÓRIA SUBVERSIVA





Por Frei Betto

      As Forças Armadas brasileiras preferem tergiversar a respeito dos arquivos da ditadura. Insistem na versão de que foram queimados. Não haveria nada a ser trazido a público. Ora, impossível apagar a memória daqueles 21 anos de atrocidades.

Mais de 70 anos após o inferno nazista, novos dados ainda vêm à tona. Não será aqui no Brasil que haverão de borrar da história o longo período no qual crimes hediondos foram cometidos pelo Estado, em nome do Estado e por ordem do Estado chefiado por militares, como constam nos documentos da CIA.

      À semelhança do genocídio nazista, aqui também vítimas sobrevivem. E jamais haverão de esquecer o tempo em que a arma do Direito deu lugar ao direito das armas. Há mortos e desaparecidos, conforme apurou a Comissão da Verdade, e seus parentes e amigos não admitem que se adicione à supressão de suas vidas o selo indelével do silêncio.

      O governo dos EUA, que patrocinou o golpe militar de 1964 e adestrou muitos de seus oficiais, mantém robusto arquivo com o registro das confissões dos algozes. A história é feita de fatos cujos significados dependem de versões. Raramente a versão do poder prevalece sobre a dos vencidos, ainda que esta última demore a emergir, como foi o caso do genocídio indígena cometido por espanhóis e portugueses na colonização da América Latina.

      O exemplo emblemático de memória subversiva é a que coloca no centro da história do Ocidente um jovem palestino preso, torturado e assassinado na cruz há mais de dois mil anos. Tudo se fez para que as versões do Império Romano prevalecessem. Os discípulos de Jesus de Nazaré foram perseguidos e mortos, a cidade na qual ele morreu foi invadida e arrasada no ano 70, e os historiadores da época, como Flávio Josefo e Plínio, não lhe dedicaram mais do que uma linha.

      Seus feitos e suas palavras, no entanto, não caíram no olvido. As comunidades mediterrâneas que nele reconheceram Deus encarnado preservaram os relatos daqueles que com ele conviveram. Trinta anos depois de o pregarem na cruz, as narrativas, hoje conhecidas como evangelhos, se difundiram. O que se tentou apagar veio à luz.

      As Forças Armadas brasileiras podem insistir em não separar o joio do trigo, ao contrário do que fizeram os militares da Argentina, do Uruguai e do Chile, que se livraram do estigma de cumplicidade com o horror. Jamais, porém, haverão de apagar da memória nacional as graves violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura.

      O pacto de silêncio não cala a voz da história. A memória subversiva não confunde anistia com amnésia. Somente o silêncio das vítimas poderia salvar os algozes. Mas isso é impossível. O grito parado no ar ressoa. E exige justiça. 

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

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terça-feira, 22 de maio de 2018

A DIVINA DIVERSIDADE NAS DIFERENÇAS HUMANAS






Por Marcelo Barros

Nesse domingo 20, as Igrejas cristãs concluíram os 50 dias da celebração anual da Páscoa com a memória do dia no qual, conforme a tradição cristã, a ressurreição de Jesus deu como fruto a vinda do Espírito Santo como presença permanente de Deus nas pessoas e no mundo.

A partir de então, pode-se crer em Deus como Amor presente e atuante nas pessoas e nas relações entre todos os seres. Cada vez mais os cientistas aceitam que, por trás da evolução cósmica e convergente do universo, existe uma inteligência amorosa que dá vida e consistência a tudo. Para a tradição judaica e cristã, esse Amor que fecunda o universo se chama Deus. É Amor que cria amor em nós e no mundo. Na Bíblia, o termo espírito é feminino (ruah). Deus é mãe carinhosa que nos educa, conforta e fortalece nas lutas da vida.

Na abertura das celebrações de Pentecostes, as Igrejas antigas cantam uma palavra do livro da Sabedoria: "O Espírito do Senhor, o universo todo encheu. Tudo abarca em seu saber e tudo enlaça em seu amor. Aleluia, aleluia". Isso significa que todo o universo está cheio da energia amorosa de Deus. Os seres vivos testemunham que o amor divino é único, mas se manifesta de formas diversas na natureza e nas pessoas. Assim, o próprio Deus assume a diversidade como algo que é seu e através da qual ele se manifesta para nós.

Nesses dias, a ONU comemora duas datas nas quais se acentua a importância da diversidade. Nessa segunda-feira, 21 de maio, a cada ano, se comemora o Dia Mundial das Diversidades Culturais. Na terça-feira, 22, a ONU nos convida a refletir sobre a Diversidade biológica ou biodiversidade. Embora sejam comemorações independentes, as duas datas revelam a importância do respeito às diversidades. Na primeira comemoração, se trata das diversidades culturais e humanas. Na segunda, a preocupação é a diversidade biológica. Atualmente, os cientistas estão de acordo: o próprio fenômeno da vida acontece como uma rede de relações entre células diferentes e entre organismos diversos. Para se manter e se desenvolver, a vida precisa da biodiversidade. Quando, em nome do lucro, os proprietários de terra fazem monocultura e transformam imensas paisagens de terra em plantações de cana de açúcar, de soja ou, pior ainda, de pasto para o gado, é a própria vida que é ameaçada. O agronegócio troca a vida para todos pelo lucro para poucos.

Do lado da fé, a festa cristã de Pentecostes lembra que a primeira manifestação do Espírito de Deus aos discípulos de Jesus foi torná-los capazes de se comunicarem com pessoas de diferentes idiomas e formarem uma unidade a partir da diversidade cultural e étnica (Atos 2).

Por muito tempo, as Igrejas pensavam que a proposta divina da unidade excluía quaisquer diferenças entre si. Todos tinham de pensar igual, agir na mesma linha e dizer uma palavra única. No século III, o bispo Cipriano de Cartago já advertia: "A unidade abole as divisões, mas respeita as diferenças". E a cada ano, para preparar essa festa do Espírito que os cristãos celebram nesse domingo, várias Igrejas diferentes se unem em orações pela unidade dos cristãos. Compreendem que se trata de unidade de fé e de amor na diversidade das instituições e das formas de ser cristãos. Nada de uniformidade. Como é a realidade do universo: os astros se relacionam e se harmonizam na grande diversidade cósmica.

Na situação social e política atual, diversos movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos, ligados aos interesses do povo mais pobre se juntam em uma grande frente de esquerda. Querem deter a onda do Fascismo, cada vez mais defendido e apregoado por grandes meios de comunicação e pelas elites brasileiras. Ao ouvir notícias contraditórias, há pessoas que ficam sem saber o que pensar. Alguns se perguntam de que lado devem se colocar. Um bom critério é ver de que lado estão os movimentos sociais e as pessoas e grupos mais ligados aos pequenos e deserdados da sociedade. Como disse Jesus no evangelho: "Pai, eu te dou graças porque escondeste tuas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos" (Mt 10, 25 ss).

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

ESSE TROÇO DE MATAR...





Por Maria Clara Bingemer
           
            Matar, assassinar, pôr fim a vidas alheias com motivos políticos, religiosos, ideológicos é algo que a humanidade tem perpetrado frequente e abundantemente ao longo de sua história milenar. As motivações para isso são várias: assalto, autodefesa, paixão não correspondida, ciúmes.  Porém, existe uma motivação que se destaca de todas as outras por sua extensão e crueldade: eliminar, exterminar.
Quem mata elimina o outro da existência e de tudo que a constitui: convívio, troca, relação, participação, liberdade. E com essa eliminação, persegue um objetivo mais radical: exterminá-lo, aniquilá-lo.  Quando essa eliminação e consequente extermínio tomou, ao longo da história, proporções volumosas e se revelou não como um assassinato pontual com motivações individuais, mas como um projeto coletivo e orquestrado com um fim mais abrangente, foi chamada genocídio. 
            Muitos genocídios aconteceram na história da humanidade.  O que nos é mais próximo foi certamente o holocausto, o extermínio de judeus na segunda guerra mundial, que em sua fase mais aguda chamou-se “solução final”.   Tratava-se de limpar a Europa e posteriormente o mundo de todos os judeus.  Ao lado destes entravam na lista exterminatória ciganos, homossexuais, comunistas, enfim, todos aqueles que apareciam como incômoda diferença dentro do projeto ariano e nazista que perseguia um mundo formado apenas pela “raça pura”.
Eliminar quem é diferente, quem pensa diferente, quem crê diferente e assim obstaculiza os projetos de determinado grupo é algo que aconteceu e acontece desde que o mundo é mundo.  Quando essa eliminação toma proporções coletivas e aumentadas, é considerada crime contra humanidade e, como tal, não prescreve, devendo ser sua memória para sempre execrada e banida da história humana.
            O país foi surpreendido recentemente pelas revelações de um documento da CIA tornado público pelo pesquisador de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas Matias Spektor. Nele, o personagem destacado é o general Ernesto Geisel, considerado pelos que acompanham a recente história brasileira, como o homem que iniciou o processo de abertura para a redemocratização do Brasil. A figura de homem honrado, de princípios, que começou a distender os chamados anos de chumbo, emerge do documento secreto como alguém que, ao contrário, apoiava e respaldava as execuções dos guerrilheiros e ativistas de esquerda como algo necessário para o bem do país. Ressaltava, no entanto, que apenas os “subversivos perigosos” deveriam ser executados e que a aprovação prévia do general  João Figueiredo – sucessor de Geisel – seria necessária.
            O documento comprova, sem deixar lugar a dúvidas, o que já havia aparecido nos registros de diálogos que constam do livro do jornalista Elio Gaspari no terceiro volume da coleção “Ditadura”.  Ali é registrada conversa do então presidente Geisel com o então chefe do Centro de Informações do Exército, Vicente Dale Coutinho, onde é avaliado que o crescimento econômico que o país então experimentava só se deu quando se começou a matar.  Comenta Geisel que “...esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”
            Aos 104 executados da lista apresentada por Coutinho, Geisel, com uma frase banal, acabava de abrir uma possibilidade de crescimento exponencial. Os assassinatos continuaram a acontecer, agora com a bênção presidencial.  A mesma política teve continuidade quando o general Figueiredo subiu ao poder.
            É impressionante perceber os pontos de contato que têm essas declarações do ex-presidente Geisel com outras do ex-presidente argentino Jorge Rafael Videla, entrevistado na prisão pouco antes de sua morte, em 2013.  A entrevista feita pelo jornalista Ceferino Reato chocou o continente e o mundo quando o ex-ditador argentino confessa ter usado uma metodologia sistemática de “desaparecimento “ de vários milhares de militantes de esquerda (30 mil, segundo informações de associações de direitos humanos no país).
            Tal como Geisel, o general Videla explica que era necessário matar esses subversivos para organizar a sociedade argentina e fazê-la caminhar rumo ao modelo do liberalismo econômico.  Mas como não era conveniente que a sociedade se desse conta do massacre genocida, escolheram métodos discretos, quais sejam: os voos da morte, quando os corpos das vítimas eram atirados no Rio da Prata para não serem encontrados;  a não existência de listas de nomes  que pudessem posteriormente ser encontrados.  Em suma:  apagar qualquer rastro dos crimes.
            A esse projeto genocida o general Videla – um católico de missa diária – chama de “Disposição Final”.  Impossível ignorar a analogia com a terminologia nazista “solução final” dos últimos anos da guerra, quando milhões de judeus passavam pelas câmaras de gás e os fornos crematórios.
            Pelo visto, “...esse troço de matar”, segundo o General Geisel, é um vírus do qual a humanidade não está livre. Continua ferindo de morte o ethos humano e carcomendo como verme imundo as entranhas da identidade dos povos que lutam por liberdade.  Não data apenas de seis décadas, mas foi reproduzido há três.  E continua vivo e solto hoje, se voltarmos as costas ao que a memória, com seu poder subversivo e libertador, insiste em desvelar sobre nosso passado recente.
 
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).   


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quinta-feira, 17 de maio de 2018

INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO


por Frei Betto


       É avassalador o fluxo de informação que recebemos atualmente. Não conseguimos retê-lo. Nossa memória é inteligentemente seletiva. Se me perguntam se ontem vi inúmeras peças publicitárias por ruas e mídias, digo que sim. Se me pedem para mencioná-las, poderia apontar apenas quatro ou cinco.

       A mente “pesca” se possui “isca”, ou seja, se focada no que pretende apreender. Isso ocorre quando pesquiso na internet a arte de Aleijadinho ou a política de felicidade do reino do Butão. Então a informação se transforma em conhecimento.

       Em visita a uma escola, pedi aos alunos para registrarem no papel quanto tempo cada um navegou na internet no dia anterior. Em média, três horas. Em seguida, solicitei escreverem dez temas apreendidos naquelas horas. A maioria não chegou a enumerar cinco. O que comprova que não navegam; de fato, naufragam... Tempo perdido devido à mente dispersa, desatenta.

      Transformar informação em conhecimento requer pedagogia. A informação pode ser falsa, como a de alimentos saborosos destituídos de propriedades nutricionais positivas à saúde. Por isso a publicidade é repetitiva. Empenha-se em nos convencer de que o supérfluo é necessário e está impregnado de valor social. Mexe com a nossa autoestima. Faz-nos sentir que não podemos ser felizes ao prescindir daquele produto, refrigerante ou sanduíche que traz felicidade.

       Para que a informação se transforme em conhecimento precisa ser contextualizada. Não basta saber que os EUA disputam com a China a hegemonia mundial. É preciso conhecer por que a China é uma potência; por que os EUA adotam uma política protecionista; por que a ONU propõe a não proliferação de armas nucleares e, ao mesmo tempo, aceita em seu Conselho de Segurança países detentores de ogivas nucleares; por que se admite que EUA e Rússia possuam, juntos, mais de 14 mil ogivas nucleares, capazes de aniquilar várias vezes o nosso planeta. 

       A mente é um polvo com vários tentáculos. Armazena conhecimento na memória racional. Nem sempre, porém, nos lembramos do que aprendemos, até mesmo nomes de pessoas próximas. 

       Já a memória emocional grava melhor a informação. Porque nos faz sentir, além de nos fazer pensar. Desperta deleite ao recebermos convite para jantar o prato de nossa preferência ou revisitar uma cidade que nos encanta; ou ojeriza, ao nos deparar com quem nos ofendeu; ou medo ao andar à noite por ruas inseguras.

      A informação se faz tanto mais conhecimento quando mais o texto é inserido em seu contexto. Um brasileiro é mais apto a apreender a obra de Machado de Assis do que um alemão, por viver no contexto em que o texto foi produzido. Já o alemão apreende melhor as obras de Goethe. 

      Daí a importância da experiência na assimilação da informação a ser transformada em conhecimento. Isso não significa que os sentidos sejam confiáveis. Copérnico desbancou Ptolomeu ao provar que o sol não gira ao redor da Terra, como se nos aparenta. Ocorre o contrário. 

       Em resumo, toda informação precisa ser devidamente comprovada e contextualizada para que mereça ser absorvida como conhecimento. E todo conhecimento exige reflexão crítica para não ser assimilado como verdade. 



Frei Betto é escritor, autor de “Parábolas de Jesus – ética e valores universais” (Vozes), entre outros livros.



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terça-feira, 15 de maio de 2018

A UNIDADE DOS CRISTÃOS E A TAREFA DA LIBERTAÇÃO



por Marcelo Barros

Desta segunda, 13 ao domingo 20 de maio, em muitos lugares do hemisfério sul, cristãos das mais diferentes Igrejas se unem na Semana de Orações pela Unidade dos Cristãos. É uma iniciativa que nasceu, há mais de cem anos, tanto no ambiente católico, como em meios evangélicos. No hemisfério norte, essa semana é celebrada em janeiro. No Sul, as igrejas históricas costumam ligar esse evento com a semana anterior à festa de Pentecostes. Pedem a graça da unidade visível de todas as pessoas batizadas, já que se acredita que "há um só batismo, uma só fé e um só Senhor" portanto a unidade fundamental já existe. Só que não se vê. O que se vê é divisão, indiferença a outras Igrejas e a arrogância de se pensar a única Igreja de Cristo.

Atualmente, todas as Igrejas envolvidas nesse caminho da unidade têm consciência de que é preciso superar a divisão, mas a diversidade é boa e deve ser mantida. Ninguém deseja a uniformidade. A meta é a unidade na diversidade e a serviço da humanidade. Nesse ano, o tema da Semana da Unidade se inspira em um verso do livro do Êxodo e diz "A mão de Deus une e liberta". Os subsídios para as reflexões e cultos foram preparados por cristãos do Caribe. Ao mesmo tempo, essas meditações sobre a unidade propõem unir as Igrejas na defesa dos migrantes e refugiados, expostos aos mais graves riscos de vida e vendo os seus direitos humanos violados.

A divisão das Igrejas impede um testemunho mais forte e unificado de todas as comunidades cristãs em favor da paz, da justiça e do cuidado com a Terra e a natureza. No mundo atual, existem mais de 20 guerras internacionais. Em muitos desses conflitos, para se matarem uns aos outros, os grupos ou povos envolvidos invocam, além de interesses econômicos e políticos, também motivos religiosos. O Estado de Israel oprime os palestinos por uma visão imperialista e racista da história. No entanto, mesmo se muitos grupos judeus e muçulmanos trabalham pelo diálogo e pela solidariedade inter-religiosa, a divisão entre as duas culturas religiosas ainda é um fator que não ajuda. No sul da Índia, se opõem muçulmanos e hinduístas, na Nigéria, muçulmanos e cristãos. Hans Kung, teólogo suíço, afirmou: “O mundo não terá paz se as religiões não aprenderem a dialogar entre elas e as religiões não dialogarão se as Igrejas cristãs não se unirem”.

Nos anos 60, o papa João XXIII convocou em Roma todos os bispos católicos do mundo no Concílio Vaticano II. Quando o papa pensou o Concílio, sua primeira intenção era abrir a Igreja Católica à unidade com as outras Igrejas. O Concílio ensinou que o projeto de Deus é a unidade, tanto dos cristãos, como de toda a humanidade. "A divisão dos cristãos é contrária à vontade divina. Contradiz o evangelho do amor e, por isso, é um obstáculo para a missão da Igreja" (U.R. 1). Se a divisão é expressão do nosso pecado, a unidade só se fará através da conversão do coração e da oração. A unidade é dom de Deus. Portanto, precisamos pedi-la e nos dispor para recebê-la do Pai. Na véspera de sua paixão, Jesus orou ao Pai pela unidade de todos/as os que um dia viessem a crer nele: “para que sejam Um, assim como Eu e Tu somos um. Que eles (elas) sejam unidos, para que o mundo possa crer que Tu me enviaste” (João 17, 19- 21).

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

A MATERNIDADE E SEUS DISCURSOS






por Maria Clara Bingemer

             O Dia das Mães vem se tornando uma data sobretudo comercial. Produtos se propõem fazer mais felizes aquelas que um dia geraram filhos. Para além dos presentes, no entanto, a data relembra a experiência mais primordial da humanidade desde seus primórdios: a relação entre mãe e filho.

            Sendo nas sociedades primitivas algo natural, parte do ciclo biológico da vida que se reproduz e se multiplica, a maternidade passou a ser pensada pela razão e a cultura.  Para isso produziu discursos que atravessaram séculos e conheceram transformações segundo épocas e contextos.

            Nas grandes religiões encontra-se a presença de deusas mães que marcam as crenças com o selo da fertilidade e da fecundação. Seu ritmo é o da mãe terra com suas estações, mortes e renascimentos. Já as religiões monoteístas são urânicas, marcadas por movimento da revelação de um Deus único e transcendente invocado com nomes masculinos como Senhor, Forte Guerreiro, Pai.

            No discurso do Cristianismo, porém, há uma novidade introduzida pela maternidade: a pessoa da mãe de Jesus. O Cristianismo afirma que a pessoa divina do Verbo se encarna no ventre da jovem Maria de Nazaré.  É a mãe que dá carne, humanidade, a esse que os cristãos proclamam humano e divino. E esse mistério da maternidade divina configurará toda a tradição cristã.

            Paulo de Tarso, judeu filho de judeus, cidadão romano e primeiro teólogo, dirá na Carta aos Gálatas: “Na plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho nascido de mulher”. E por isso, porque inaugura uma plenitude transcendente dentro da temporalidade histórica, a relação da Mãe com o Filho é geradora de vida e sentido para a humanidade. Maria é mãe, gerando quem a gerou, sendo anterior ao filho em sua humanidade, mas posterior por sua divindade. Ultrapassa os limites da ginecologia e da biologia, sendo reconhecida e cultuada como virgem e mãe simultaneamente.

O imaginário religioso cristão cria assim uma nova matriz para uma rede de outras relações muito complexas: a de Deus com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe entre outras muitas.  E deixa patente o fato de que o discurso sobre a maternidade da Virgem Maria foi, sem dúvida, o mais forte que o Ocidente já conheceu.

Forçoso é reconhecer, apesar disso, a grande contribuição que a crítica feminista tem feito com respeito ao mito do amor materno.  Chavões sobre a incondicionalidade do amor da mãe que se sacrifica até o fim pelo filho esquecendo-se de si própria, sintetizados no famoso “ser mãe é padecer no paraíso”, são hoje rejeitados.  Da mesma forma o antigo preconceito de a maternidade ser vista como único e irrevogável destino da vida de uma mulher não se sustenta atualmente.

As mulheres se emanciparam, entraram no espaço público e no mercado de trabalho.  As jovens mães muitas vezes dividem com os esposos e companheiros o cuidado dos filhos e combinam os deveres da maternidade com as obrigações profissionais. Algumas planejam sua maternidade, escolhem o tempo e o momento em que desejam procriar. Outras já não desfrutam desse privilégio.  Esmagadas pela pobreza ou pela violência ou por ambas, são engravidadas ainda adolescentes por um parente próximo que pode até ser o próprio pai, dentro de casa.

No entanto, é fato que nada ainda conseguiu substituir a experiência única de gerar e hospedar em seu próprio corpo outra vida. E por isso a primeira experiência de alteridade e relação que qualquer ser humano tem ou terá será aquela que se inicia no ventre materno.  Por mais traumática que seja, por mais negativa.  É o milagre de habitar em outro e ser por ele habitada que ali acontece. Do santo ao criminoso, do gênio ao iletrado, do rico ao pobre, todos, sem exceção, são - somos – filhos e filhas de mulher.  Temos mãe.

Muitas, além de termos mãe, somos mães.  Um dia sentimos pulsar outro coração junto ao nosso.  Vimos nosso corpo se transformar ao ritmo do outro que em nós crescia e se desenvolvia. E ao termo desse processo de intimidade e comunhão com a outra vida que em nós acontecia, vivemos a plenitude de dar à luz e receber em nossos braços aquele pequeno ser que nos fez e faz sentir que o mundo começa e recomeça.

Para todas, neste dia, desejo a consciência da graça de viver essa plenitude.  Não só para Maria de Nazaré chegou a plenitude dos tempos com o nascimento de seu Filho a quem deu o nome de Jesus, que quer dizer Deus salva. Em cada mãe que viveu a experiência do alumbramento, essa plenitude chegou.

Por isso é urgente recuperar o discurso da maternidade, algo obscurecido por discursos outros que predominam na modernidade e na secularização.  Se a maternidade não voltar a encontrar sua cidadania plena na vida humana hoje, é de se temer que caminhemos para uma perigosa decadência sem esperança de volta. 

Que se presenteiem as mães. Não esquecendo, porém, que para elas o maior presente já foi dado. Presente que é graça recebida chamada a converter-se em doação permanente.  Ser humana e mortal e ao mesmo tempo morada da vida.  Ser portadora do desejo do amor que é fértil e que se reproduz.  Ser frágil e perecível mas carregar em si o segredo da vida que não morre porque continua a acontecer para sempre e continuamente.

Feliz Dia das mães para todas.

 Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).  

 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>