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domingo, 30 de abril de 2023

Martin Luther King: 60 anos de um sonho e um discurso

 



 Maria Clara Lucchetti Bingemer 

 

            Em agosto serão completados sessenta anos que um homem, em Washington, capital dos Estados Unidos, país mais poderoso do mundo, fez um discurso. O homem era negro. E tinha um sonho. Liderava um grupo de homens e mulheres que aumentava a cada dia e se convertia em multidão. Organizava eventos e marchava silenciosa e pacificamente em protesto contra a violência racial e o desrespeito aos direitos humanos em seu país. Chamava-se Martin Luther King Jr.

 Quando esse pastor batista e doutor em Teologia começou sua caminhada em prol da igualdade racial e da paz, o racismo em seu país era lei e não crime. Uma lei que cavava uma fenda profunda na sociedade estadunidense, mantendo os negros separados dos brancos nos transportes públicos, nas instituições de ensino, nos restaurantes, nos banheiros. O sonho do pastor negro era que essa discriminação tivesse um fim de forma pacífica e não violenta.

 Na origem desse sonho de paz e liberdade está o gesto de uma mulher: Rosa Parks, aquela que um dia, ao voltar do trabalho em um ônibus, sentada na parte do veículo proibida aos negros, recusou-se a ceder seu lugar a um homem branco. Foi presa e penalizada, mas seu gesto de desobediência fez com que cinquenta líderes da comunidade afro-americana, chefiados pelo então quase desconhecido pastor Martin Luther King Jr., reagissem à violência contra ela cometida.

 O movimento organizou e deflagrou um boicote de 381 dias ao sistema segregacionista de ônibus do Alabama. A partir daí seguiu-se a luta dos negros norte-americanos contra a segregação e pelo respeito aos direitos, do qual a estrela foi o Pastor King., que se tornou um ícone da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e ganhou o Prêmio Nobel da Paz anos depois. Sempre reconhecido àquela que havia sido a agente detonadora de seu movimento, Martin Luther King Jr. dizia: "Na verdade, ninguém pode compreender a ação da Sra. Parks, a menos que realize que, eventualmente, a taça da capacidade de suportar transborda e a personalidade humana grita: "Eu não posso mais aguentar".

Em 1963, o pastor negro continuava seu movimento, reivindicando a igualdade de direitos de todos, o fim da discriminação racial e a paz. Suas marchas eram cada vez maiores em volume e em consistência. Naquele ano a marcha sobre Washington, a capital do país, convocava 250 mil pessoas.

 Ali Luther King falou de seu sonho. O sonho da igualdade e da liberdade. Disse sonhar que um dia os filhos dos descendentes de escravos e dos descendentes de donos de escravos pudessem sentar-se juntos à mesa da fraternidade.

O pastor vivia um momento difícil, com ameaças, frustrações. Sentia o conflito que se armava ao redor dele. Mas sonhava para as gerações futuras. Sonhava com a possibilidade de que seus quatro filhos pudessem viver em uma nação onde seriam julgados pelo caráter e não pela cor da pele. O sonho de Luther King era recheado de liberdade e comunhão. Sonhava em fazer chegar mais rápido “o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar...” Sonhava o sonho que sonhou também Jesus de Nazaré e tantos profetas antes dele e tantas testemunhas depois dele. 

King entrou para a história não apenas pelo que fez, mas também e talvez principalmente pelo que sonhou: um mundo onde ninguém seja discriminado por sua raça ou pela cor da pele; onde todos tenham direito de voto e acesso a empregos e serviços públicos; onde todos possam dizer livremente aquilo em que crêem e praticar o que acreditam. Um mundo onde a paz não seja apenas a ausência de guerras, mas situação vital e dinâmica construída no diálogo e na interação franca e transparente. O sonho do Dr. King continua, mais vivo que nunca. Continua nos grupos afro-americanos que seguem lutando por igualdade e enfrentando as discriminações de que são objeto. Faz-se visível nos jovens migrantes, chamados sintomaticamente de “dreamers”, que reivindicam seu direito de sonhar com a cidadania no país que escolheram para viver uma vida melhor. Vive em todo homem e mulher que em qualquer continente ou latitude deseja a justiça, a igualdade e a liberdade, e luta para que aconteçam. 

Como dizia, no Brasil,  o poeta Zé Vicente: “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só.  Sonho que se sonha junto é realidade.“ Sonhemos, pois, para que se faça realidade o sonho belo ainda que tão difícil da igualdade. 

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Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Santidade: chamado à humanidade (Paulinas), entre outras obras.

  

Copyright 2023 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

GOVERNO LULA – 100 DIAS, PRIMEIROS PASSOS


 Frei Betto

 

 

Hoje completam-se 100 dias do novo governo. O Lula 3 difere do que se viu nos dois primeiros mandatos. Agora, é menos sensível às diatribes do Mercado e mais aos direitos dos excluídos. Mais preocupado com o chão da sobrevivência digna que o teto de gastos. Mais com políticas sociais que fiscais. O Bolsa família, além do pagamento mínimo de R$ 600 por família, incluiu o adicional de R$ 150 por criança até 6 anos.

Nesses 100 dias, Lula, com respaldo do STF, salvou a nossa frágil democracia ao intervir no governo do Distrito Federal, prender e indiciar a horda terrorista que invadiu a Praça dos Três Poderes a 8/1. E as Forças Armadas voltaram a ter ciência de que estão “sob a autoridade suprema do Presidente da República”, conforme reza a Constituição. Lula tirou a Abin do controle dos militares e entregou-a à Casa Civil; deu 9% de aumento ao funcionalismo federal e isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 2.640; e aumento real do salário mínimo que, em maio, será de R$1.320,00. Há 60,3 milhões de pessoas com rendimentos referenciados no salário mínimo.

Na política externa, reforça a integração latino-americana e caribenha ao valorizar a Celac, em Buenos Aires e, diante do reaquecimento da guerra fria e do conflito geopolítico entre EUA e China , do qual a guerra na Ucrânia é resultado, posiciona o Brasil como promotor da paz em sintonia com a mais expressiva liderança pacifista da atualidade, o papa Francisco. Recebido por Biden na Casa Branca e, em breve, por Xi Xinping em Pequim, recoloca o Brasil como protagonista no xadrez da globalização.

O governo promoveu a retirada de garimpeiros do território Yanomami, assumiu o cuidado da saúde dessa nação indígena, mas ainda precisa reduzir o desmatamento na Amazônia e no Cerrado.

Lula atuou com presteza no socorro às vítimas da catástrofe climática no litoral Norte paulista; quebrou o sigilo de 100 anos de documentos oficiais que visavam a ocultar desmandos do governo anterior; reabriu a Farmácia Popular; criou o Conselho de Participação Social e o Conselho Político de Coalizão, que reúne 14 siglas partidárias; recriou o Conama, o Consea e o Conselho LGBTQIA+; aprimorou o Minha Casa, Minha Vida com a Medida Provisória para financiamento de imóveis usados em áreas urbanas e rurais. Com a correção feita pelo governo, o orçamento para compra de merenda escolar passa de R$ 4 bilhões para R$ 5,5 bilhões.

Na economia, o governo age com transparência malgrado a “tornozeleira eletrônica” da Lei Complementar no. 179/2021, que garante autonomia do Banco Central e mantém seu atual presidente, bolsonarista assumido, até o fim de 2024. Este insiste em manter elevada a taxa básica de juros (Selic), apesar do recuo da inflação. Isso trava o crescimento econômico. Lula convocou o apoio da opinião pública ao denunciar a exorbitância da taxa de juros e considerar “uma bobagem” a autonomia do BC.

Segundo o DataFolha (3/4), 80% acham que Lula acerta ao forçar a queda da Selic, e apenas 16% discordam. Por enquanto, Lula tenta transformar água em vinho ao misturar, no arcabouço, ingredientes que devem resultar em austeridade fiscal com margem para investimentos em políticas sociais.

Agora é desbolsonarizar o governo; desmilitarizar a administração pública; rever a reforma trabalhista de Temer, fortalecendo a negociação coletiva e os sindicatos; exorcizar o Ministério da Educação da ameaça da gestão empresarial da educação pública e revogar o “novo” ensino médio. E descobrir e punir quem matou Marielle e Anderson. Apesar da coalizão partidária que mistura alhos com bugalhos, foi positiva a recriação de grupos de trabalho interministeriais com participação da sociedade civil organizada. Sem educação política do povo e mobilização popular Lula não vencerá os imensos desafios que o Brasil tem pela frente.

E viva a criação do Ministério dos Povos Indígenas!

 

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros. (Livraria virtual: freibetto.org)

 



 

Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 12 de abril de 2023

PALAVRAS DE PEDRO - PAIXÃO

 

Dom Pedro Casaldáliga



 Tu, leproso e desprezado... Varão

de dores, sem glória, que pisaste

sozinho – e ébrio – o lagar, e te manchaste

do mosto de amargura...

tu, que trazes, Senhor, o Coração

rompido sob a pressão do pecado.

Verme e não homem, que em sanção

aos teus próprios amores condenado,

és o grande Pecado sem perdão!

Mediste, Amador, o louco excesso

que tirou-te do Sétimo Dia...?

Não foi suficiente cobrir-te de empréstimos?

Não te basta ser preso pelo modesto embrulho de um pão?

Por que não te rendes, Forte,

à agonia e à cilada trêmula de um beijo?

 

Pedro Casaldáliga, Palavras Ungidas

Desenho: Cerezo Barredo

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#PereCasaldàliga

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

terça-feira, 11 de abril de 2023

Páscoa – parto de Vida e Liberdade

 

Marcelo Barros


 

Nestes dias, as Igrejas cristãs celebram a festa da Páscoa. Paróquias e congregações cantam hinos de alegria e proclamam: O Cristo ressuscitou! Comunidades e grupos que, além dos ritos, seguem a missão profética do Cristo gritam para toda a humanidade: O Amor Divino ressuscitou Jesus e essa subversão da Vida tem de provocar força nova para que possamos juntos vencer o desamor e a morte.

Na Amazônia, a dança dos Xapiris faz renascer a floresta e mantém o mundo de pé. Isso traz novo respiro contra garimpos e os males com os quais, durante séculos, a civilização do dinheiro tenta exterminar os povos originários. A teimosia dos Xamãs em invocar os espíritos da floresta é algo de próprio da cultura Yanomami, mas do seu modo, corresponde ao Aleluia da Páscoa cristã. No Nordeste, o Toré indígena nas aldeias e a dança da Jurema nas periferias urbanas têm seu valor autônomo. Não podem ser vistas apenas como tradução para outras culturas de expressões cristãs. No entanto, mesmo com suas características próprias, correspondem do seu jeito ao que para os cristãos é o anúncio alegre e feliz da ressurreição. Cremos que é o mesmo Espírito do Cristo Ressuscitado que, como cantamos, “enche o universo. Tudo abraça em seu saber e tudo enlaça em seu amor”. Esse Espírito é reconhecido pelas comunidades do Santo Daime como o Caboclo Juramadan, pelos povos indígenas do Nordeste no culto dos Encantados e pelas comunidades negras como Orixás, Inquices e Caboclos, cada qual com sua originalidade e características próprias. No entanto, essas diversas expressões de espiritualidade celebram a vitória da vida sobre a morte e da amorosidade sobre o desamor.

Atualmente, a Biologia confirma: o Mistério da Vida se dá pelo entrelaçamento e interdependência das células e dos corpos. O amor é, antes de tudo, fenômeno biológico.  Agora, a mensagem pascal nos diz que a culminância desta evolução é uma forma de  Amor-doação gratuita, que cria comunhão entre nós e nos impulsiona a fazer tudo o que é possível para que a humanidade se torne uma comunidade de irmãos e irmãs.

Para nós, cristãos e cristãs, as festas pascais são sempre ocasião para novamente acreditarmos que é possível recomeçar o caminho da Boa Nova. A ressurreição de Jesus confirma em nós o amor divino. Este amor toma conta de nossas vidas e nos dá força para impregnar de amor as estruturas da vida e da sociedade.

Neste momento brasileiro, um bom número de pessoas católicas e evangélicas, em nome de Jesus apoia políticas de direita contrárias aos interesses dos mais pobres e testemunha um Deus cruel e sectário, amigo dos que o adoram e vingativo com os que não aderem à Igreja. A boa notícia da ressurreição tem de ser profeticamente contrária a esse tipo de religião. Por isso, grupos cristãos de várias Igrejas preparam um Mutirão da Profecia para reafirmar ao mundo que seguir Jesus Ressuscitado é optar pela justiça, paz e misericórdia anunciada nas bem-aventuranças do evangelho. Desta Páscoa, até o 7 de setembro, quando no Brasil, ocorre o Grito dos Excluídos, muitos grupos cristãos se preparam para reafirmar o compromisso de comunhão com os mais pobres. A Páscoa nos faz viver uma Igreja a serviço de toda a humanidade e não somente das pessoas que creem.

Junto com todas as pessoas famintas e sedentas de justiça e paz, acendamos sobre a terra o fogo novo da paz e da solidariedade. A partir da alegria de crermos que Jesus ressuscitou, a nossa missão, como dizia Pedro Casaldáliga, é sair pelo mundo semeando e espalhando ressurreição.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Dez anos de Francisco: Feliz Aniversário

 

    Maria Clara Bingemer


 

Há dez anos o  Cardeal Jorge Mario  Bergoglio foi eleito Papa e escolheu para si o nome de Francisco.  Desde então, tem mostrado ao mundo, entre muitas coisas, a importância primordial do encontro com o outro.   Diz e repete que encontramos pessoas "não apenas vendo, mas olhando, não apenas ouvindo, não apenas cruzando caminhos com as pessoas, mas ficando com elas, não apenas dizendo "Que pena! Pobres pessoas", mas deixando-nos comover pela compaixão.  E isso implica aproximar-se, tocar e dizer  "não chores, e dar pelo menos uma gota de vida".  Este é, segundo Francisco, o caminho para criar uma “cultura do encontro”. 

A intenção básica da proposta desta cultura é combater a indiferença que prevalece em nossa sociedade de descarte, de velocidade, de superficialidade para chegar a um encontro verdadeiro e profundo com os outros. Mas para consegui-lo, devem ser estabelecidas certas condições. E é o próprio Papa quem as aponta: "Temos que ser pacientes se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: as pessoas não se expressam plenamente quando são simplesmente toleradas, mas quando percebem que são verdadeiramente bem-vindas. Se tivermos um desejo genuíno de ouvir os outros, aprenderemos a olhar para o mundo com olhos diferentes e a apreciar a experiência humana tal como ela se manifesta em diferentes culturas e tradições”

As ruas do mundo são o lugar desta cultura de encontro, o "locus" onde as pessoas vivem, onde elas são efetiva e afetivamente acessíveis. O testemunho cristão, portanto, não é oferecido através de um  bombardeio de pessoas com mensagens religiosas, mas por uma vontade de se entregar aos outros através de um desejo de responder paciente e respeitosamente às suas perguntas e dúvidas sobre o caminho da busca da verdade e do significado da existência humana.

De Bergoglio a Francisco encontramos o ponto central de uma mudança no próprio estilo de ser Papa. O mesmo Bergoglio que no documento de Aparecida influiu para que se valorizasse o encontro interpessoal com Deus e com o outro, revela-se na pessoa e na linguagem de Francisco como uma proposta audaciosa e avançada de criar uma "cultura do encontro". O Papa sabe que não basta converter alguns indivíduos isolados para que haja uma real transformação na sociedade e na Igreja.  Importa, sim, criar uma cultura, que significa tocar e converter atitudes, valores, costumes, tradições.

No balcão em frente às multidões à espera do anúncio do novo Papa, em 13 de Março de 2013, o Papa Francisco mostrou a sua disponibilidade para viver esse encontro,  com palavras e gestos. Apresentou-se a si próprio como bispo de Roma, enraizado no fim do mundo, onde repousam suas origens.  Pediu também a bênção do povo  antes de abençoá-lo, invertendo a ordem do costume e da tradição. 

Desde então, os dez anos do seu pontificado têm sido cheios de surpresas e novidades.  Trata-se de algo que tem agradado a muitos e desagradado talvez a muitos mais.  Francisco é, sem dúvida, um Papa diferente.  E o seu estilo de ser, comover-se, falar e agir surge certamente como uma surpresa para muitos. Mas encanta e conquista a outros. E isso talvez o faça mais amado fora da Igreja do que dentro dela. 

A mim – católica e teóloga – é como uma lufada de ar fresco numa Igreja que parecia deixar para trás a primavera do Concílio.  De repente, nas palavras do Papa, encontrei novamente a linguagem conciliar, ancorada na antropologia e na história.  A linguagem de uma Igreja que queria ser perita em humanidade, como diz a Constituição Pastoral  Gaudium et Spes. 

Ao longo desses 10 anos pude também redescobrir nos discursos pontifícios muito do que a Igreja latino-americana havia tentado construir no período pós-conciliar e que parecia haver estado tristemente sob suspeita em determinado momento: a prioridade dos pobres; a atenção à cultura popular e a valorização das suas festas, histórias e criações; a crítica não só aos indivíduos mas também aos sistemas que são injustos e oprimem pessoas e comunidades inteiras. 

A encíclica Laudato Si, de 2015, inaugura um novo capítulo na história da doutrina social da Igreja.  A transparência do texto, o discurso que tão harmoniosamente combina teologia com ciência e com poesia e mística, capta a preocupação do momento presente e das novas gerações por um planeta sob constante ameaça e sob ataque diário. Igualmente ensina que somos seres criados em meio a uma comunidade de outros seres vivos, não apenas humanos.  Toda vida merece respeito, reverência e cuidado.  O Papa Francisco, em nível pastoral, convocou a uma mudança de paradigma em toda a Igreja e a sociedade, onde o cuidado deve ser o centro e o norte da vida.  Os seres humanos são chamados a abandonar sua postura arrogante e predatória e a integrar-se na comunidade de todos os seres vivos, a fim de a protegerem, uma vez que as primeiras vítimas da desordem ambiental em que vivemos são os pobres.  A ecologia e a justiça andam, portanto, juntas. 

Em 2020 veio à luz outra encíclica, sintonizada com a Laudato Si. O título fala por si só:  Fratelli Tutti. Reflete sobre a amizade social, refletindo em torno da parábola do Bom Samaritano, situada no capítulo 10 do Evangelho de Lucas. O texto pontifício mostra que se a humanidade progrediu na construção da liberdade e da igualdade, o mesmo não aconteceu em relação à fraternidade.  Passar da lógica do sócio para a do irmão/irmã é o convite que ressoa neste documento, que reflete muito da experiência e do trabalho deste argentino, acostumado à companhia dos mais pobres e entusiasta dos movimentos populares. 

Finalmente, como teóloga, acredito que o Papa abriu novos e esperançosos caminhos para aqueles de nós que trabalham com a inteligência da fé. E por isso sinto-me muito em sintonia com a concepção de teologia que ele mostra ser a sua própria.  Em carta ao cardeal Poli, arcebispo de Buenos Aires, por ocasião da celebração do bicentenário da faculdade de teologia da Universidad Católica Argentina (UCA), escreve  com clareza que "o teólogo deve ser uma pessoa capaz de construir a humanidade à sua volta, transmitir a verdade cristã divina numa dimensão verdadeiramente humana, e não um intelectual sem talento, um moralista sem bondade ou um burocrata do sagrado". 

Mais recentemente, em  sua mensagem à Pontifícia Comissão Teológica Internacional, além de destacar os dois pilares da teologia - vida espiritual e eclesialidade - afirma que "o teólogo deve ir à frente, deve estudar o que vai além; deve também confrontar coisas que não são claras e assumir riscos na discussão". Acrescenta ainda que não se deve trazer questões controversas para o povo, mas sim uma doutrina sólida. O papel do catequista, portanto, não seria o mesmo do teólogo. Francisco entende a vocação da teologia  ancorada na fé, tendo uma identidade intelectual, sem medo de fronteiras e da pesquisa sobre os desafios do mundo e da sociedade. 

Ao comemorar esses 10 anos, olho com gratidão para o pontificado de Francisco.  Ao longo do mesmo, pode-se sentir o esforço incessante de promover este encontro entre as pessoas, que não deve ser algo episódico, mas uma verdadeira cultura.  Ele vê e comunica esta proposta com uma base firme em uma antropologia que concebe o ser humano feito para a alteridade e a diferença, e capaz de construir a comunhão. O encontro só pode ter lugar, como ele próprio sublinha, de baixo para cima, para que ninguém fique de fora desta comunhão difícil de construir, mas tão bela em termos de ideal e de objetivo.

Feliz aniversário, Santidade! Que venham  outros aniversários e celebrações!

 

Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Santidade: chamado à humanidade (Paulinas), entre outras obras. 

 

Copyright 2023 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com

 

 

Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com

domingo, 9 de abril de 2023

Renascer

 



 

Renasce das cinzas

Depois das queimadas

E segue em frente ...

Despe das dores de outrora,

Das flechas arrancadas da alma,

E ama...

Despedida mágoas,

Revisitar a alegria de saborear A Vida!

Degustar com delicadeza

Os verdadeiros afetos,

Perdoa o passado

E segue...

Deixa as correntes caírem,

Solta as armadilhas,

Abre os alçapões,

E voa...

Voa alto, voa livre...

Livre da dor, livre do peso do rancor...

Redescobre o Amor

Como caminho de vida

Como caminho de Luz,

E ressuscita!

03/04/2023

Goretti Santos

sábado, 8 de abril de 2023

Como viver a Páscoa no meio de tantas crises?

 




                                     Leonardo Boff

         Muitas crises  estão assolando a humanidade: a crise econômica derrubando grandes bancos nos países centrais, a crise política com o ascenso mundial das políticas de direita e de extrema-direita, s crise das democracias em quase todos os países, a crise do Estado cada vez mais burocratizado, a crise do capitalismo globalizado que não consegue resolver os problemas que ele mesmo criou,gerando uma acumulação de riqueza em pouquíssimas mãos num mar de probreza e de miséria, a crise ética, pois não contam mais valores da grande tradição da  humanidade, mas o vale tudo pós moderno (every think goes), a crise do humanismo pois impera relações de ódio e de barbárie nas relações sociais, a crise de civilização que começou a introduzir a inteligência artificial autônoma que articula bilhões de algorítmos, toma decisões, independente da vontade humana, pondo em risco nosso futuro comum, a crise sanitária que atingiu toda a humanidade pelo Covid-19, a crise ecológica que, se não cuidarmos da biosfera, nos alerta para uma tragédia possível e terminal do sistema-vida e do sistema-Terra. Por detrás de todas estas crise há uma crise ainda maior: a crise do espírito que representa uma crise da vida humana neste planeta.

O espírito é aquele momento da vida consciente no qual nos damos conta de que pertencemos a um todo maior, terrenal e cósmico,que estamos à mercê de uma Energia poderosa e amorosa que sustenta todas as coisas e a nós mesmos. Temos a faculdade específica de com ela poder  dialogar e a ela nos abrir,identificando um Sentido maior que tudo perpassa e que atende ao nosso impulso de infinitude. A vida do espírito (que neurólogos chamam de”ponto Deus” no cérebro) vem soterrada pela votande irrefleável de acumulação de bens materiais, pelo cnsumismo, pelo egoismo e pela falta profunda de solidariedade.

Depois de agosto de 1945, os USA lançando duas bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, nos sbriu a consciência de que podemos nos auto-aniquilar. Esse risco aumentou com a corrida armamentista,incluindo nove nações, com armas químicas, biológicas e cerca de 16 mil ogivas nucleares. A atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia fez com que Putin ameaçasse o uso de armas nucleares, trazendo o temor apocalíptico do fim da espécie humana.

Nesse cenário como celebrar a maior festa da cristandade que é a Páscoa, a ressurreição do Crucificado, Jesus de Nazaré? Ressurreição não deve ser entendida como  a reanimação de um cadáver como o de Lázaro. Ressurreição, nas palavras de São Paulo representa a irrupção do “novissimus Adam (1Cor 15,45), vale dizer, do ser humano novo, cujas infinitas virtualidades presentes nele (somos um projeto infinito) afloram totalmente. Desta forma comparece como uma revolução na evolução, uma antecipação do fim bom da vida humana. O Ressuscitado ganhou uma dimensão cósmica, nunca mais deixou o mundo e enche todo o universo.

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Nesse sentido a ressurreição não é a memória de um passado, mas a celebração de um presente, sempre presente a nos suscitar alegria, o suave sorriso na certeza de que a morte matada de Jesus de Nazaré, a sexta-feira santa, é só uma passagem para uma vida, livre da morte e plenamente realizada: a ressurreição. O horizonte sombrio se desanuviou e o irrompeu o Sol da esperança.

Pensando em termos do processo cosmogênico que tudo engloba, a ressurreição não está fora dele. Ao contrário, é uma emergência nova da cosmogênese e daí seu valor universal, para além do salto da fé. A ressurreição é a síntese da dialética, de onde Hegel tirou sua dialética, da vida (tese), da morte (antítese) e da ressurreição (síntese).Esta é o termo de tudo, agora antecipado para nossa alegria.  É o gênesis verdadeiro, não do começo, mas do fim já alcalçado.

Considero a versão do evangelho de São Marcos sobre a ressurreição a mais realista e verdadeira.Ele termina se texto com Jesus ressuscitado,dizendo às mulheres:”ide dizer aos apóstolos e a Pedro que ele (o Ressuscitado) vos precede na Galiléia. Lá o vereis com vos disse”(Mc 16,7). E assim termina. As aparições relatadas, é covicção dos estudiosos, seria um acréscimo posterior. Quer dizer: todos estamos a caminho da Galiléia para encontrar o Ressuscitado. Ele pessoalmente ressuscitou mas sua ressurreição não se completou enquanto seus irmãos e irmãs e a inteira natureza ainda não ressuscitaram.Estamos a caminho, esperados pelo Ressuscitado que ainda não se mostrou totalmente. Por esta razão, o mundo fenomenoligicamente continua o mesmo ou pior, com guerras e momentos de paz, com bondades e perversidades, como se não tivesse havido a ressureição como sinal de superação desta realidade ambigua.

Mesm assim depois que Cristo ressuscitou não podemos mais ficar tristes: o fim bom está garantido.

Boa festa de Páscoa para todos os que puderem realizar este percurso e também para aqueles que não o podem realizar.

Leonardo Boff escreveu: A ressurreição de Cristo e a nossa na morte, Vozes 1972 várias edições.

 

Ensinamentos

 



 Meu coração se alegra em receber

Ensinamentos que vem aquecer

A alma que deseja conhecer

Jesus de Nazaré para crescer

 

Na cidade vivo vida política

Entro no universo do humano mítico

Onde contemplo meu encontro místico

Com o outro de mim e com minha  Ética

 

Procuro reconhecimento e afeto

Desde o útero quando fui um feto

Em potência que carrega o Divino

 

Dar a vida para alguns é loucura

Para outros, escândalo sem cura

Para o poeta, amor de menino

 

 

Recife, 02 de abril de 2023

Luiz Carlos Bezerra

 

Neste dia as igrejas das CEBS celebram o domingo de Ramos.

 

Salves as Páscoas.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

GOVERNO LULA: RESGATE DE UMA PRIORIDADE

 

Frei Betto


 

      Lula já declarou que 4 anos passam muito rápido e ele tem pressa. Sabe que seu desafio prioritário é administrar um conjunto de medidas socioambientais: reduzir a desigualdade social; erradicar a fome e diminuir a insegurança alimentar; fazer a inflação refluir; evitar o desmatamento de nossos biomas; proteger os povos indígenas; preservar a floresta amazônica; reindustrializar o país; aumentar investimentos em infraestrutura.

      São medidas semelhantes às de seus dois primeiros mandatos e que o fizeram deixar o governo com 87% de aprovação. Na época, seu polo opositor era o PSDB que, visto de hoje, pode ser comparado a uma elegante dama que, numa batalha de canhões, empunha luzidia esgrima.

      O golpe liderado por Temer em 2016, que resultou na derrubada da presidenta Dilma; a prisão ilegal de Lula pela dupla Dallagnol-Moro; e a eleição de Bolsonaro em 2018; comprovaram que um governo não se sustenta apenas com boas ações administrativas. Nem com maioria parlamentar. É imprescindível outro ingrediente capaz de respaldar as lideranças políticas ainda que elas se encontrem fora do governo: apoio popular. Maquiavel demonstrou que sem o apoio do povo o príncipe não reina, ainda que não perca a majestade. 

      Como se conquista apoio popular em uma conjuntura na qual a mais extremada direita se parece a um pitbull que ladra forte, enquanto a esquerda emite fracos miados? Eis um desafio que os governos do PT jamais priorizaram em suas pautas – a politização do povo brasileiro. Basta dizer que as prefeituras de Maricá (RJ) e Ipatinga (MG) foram administradas por quatro mandatos petistas e nas eleições de 2022 os dois municípios deram vitória a Bolsonaro no primeiro e no segundo turnos. 

      O leitor talvez se pergunte como Bolsonaro, um obscuro deputado federal, foi capaz de se eleger presidente, arrebatar tantos apoiadores e mobilizar a turba fanática que vandalizou a Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro e, ainda hoje, prossegue disseminando o terrorismo presencial e virtual. 

      Bolsonaro apenas serviu de estopim para um bomba que vinha sendo alimentada há décadas, desde que o Brasil cometeu o erro de não acertar contas com três vergonhosas manchas de seu passado: a escravidão (hoje os negros são duplamente discriminados: por serem negros e por serem pobres, pois foi negado aos libertos o acesso à terra); a ditadura de Vargas (derrubado em 1945, o ditador voltou à presidência da República, por voto popular, em 1950); e a ditadura militar (torturadores e assassinos foram inocentados por uma esdrúxula lei da anistia). 

      Além dessas graves omissões, vivemos em um sistema capitalista que favorece as forças de direita ao exaltar a acumulação privada da riqueza acima dos direitos humanos; o supremacismo branco; a lei do talião como medida de justiça; o belicismo como solução às contendas. Toda essa conjuntura foi anabolizada por dois fenômenos, um atual – as  redes digitais e, outro, velho como o cachimbo de Adão - o fundamentalismo religioso.

      As redes digitais, controladas por plataformas visceralmente ligadas ao capital, favorecem o individualismo e o narcisismo, e proporcionam um relativo distanciamento propício à manifestação de nossos impulsos atávicos mais agressivos. Para muitos de seus usuários, elas são convenientes porque cancelam o diálogo e impõem o monólogo (mesmo quando coletivo e fechado em uma bolha identitária); permitem a emoção se sobrepor à razão; promovem a mentira à condição de pós-verdade; encobrem a verdadeira identidade do emissor; e escapam da legislação vigente, o que as torna inimputáveis. 

      O fundamentalismo religioso internaliza nos fiéis a “servidão voluntária”, induzindo-os a identificar a palavra do padre ou pastor com a de Deus; abdicar da razão crítica; negar a laicidade do Estado e mirar a política pela ótica da confessionalização, exigindo leis que reflitam os preceitos religiosos de determinado segmento eclesial. 

      Diante desse quadro, só resta ao governo Lula abraçar, como prioridade número 2, a educação política de nossa população. Tarefa que ele delegou à Secretaria Geral da Presidência da República e requer urgência no seu desempenho, tanto na capilaridade alcançada nacionalmente pelo governo federal (como as 22 milhões de famílias do Bolsa Família), quanto da poderosa máquina de comunicação do governo, como a EBC, a Voz do Brasil e a transversalidade da ação interministerial. 

      Para assegurar sua governabilidade, um governo necessita duas pernas: maioria parlamentar e apoio popular. Sabemos todos que a primeira é falha na atual legislatura. Resta a Lula desencadear intenso trabalho político para reforçar a segunda. E, para isso, não bastam boas ações administrativas, como Minha Casa, Minha vida, aumento do salário mínimo ou do emprego. É preciso trabalhar o universo epistêmico das pessoas, mudar a ótica de visão da realidade, o que só se consegue com educação. 

      É hora de trocar, definitivamente, Paulo Guedes por Paulo Freire. 

 

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

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