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segunda-feira, 10 de abril de 2023

Dez anos de Francisco: Feliz Aniversário

 

    Maria Clara Bingemer


 

Há dez anos o  Cardeal Jorge Mario  Bergoglio foi eleito Papa e escolheu para si o nome de Francisco.  Desde então, tem mostrado ao mundo, entre muitas coisas, a importância primordial do encontro com o outro.   Diz e repete que encontramos pessoas "não apenas vendo, mas olhando, não apenas ouvindo, não apenas cruzando caminhos com as pessoas, mas ficando com elas, não apenas dizendo "Que pena! Pobres pessoas", mas deixando-nos comover pela compaixão.  E isso implica aproximar-se, tocar e dizer  "não chores, e dar pelo menos uma gota de vida".  Este é, segundo Francisco, o caminho para criar uma “cultura do encontro”. 

A intenção básica da proposta desta cultura é combater a indiferença que prevalece em nossa sociedade de descarte, de velocidade, de superficialidade para chegar a um encontro verdadeiro e profundo com os outros. Mas para consegui-lo, devem ser estabelecidas certas condições. E é o próprio Papa quem as aponta: "Temos que ser pacientes se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: as pessoas não se expressam plenamente quando são simplesmente toleradas, mas quando percebem que são verdadeiramente bem-vindas. Se tivermos um desejo genuíno de ouvir os outros, aprenderemos a olhar para o mundo com olhos diferentes e a apreciar a experiência humana tal como ela se manifesta em diferentes culturas e tradições”

As ruas do mundo são o lugar desta cultura de encontro, o "locus" onde as pessoas vivem, onde elas são efetiva e afetivamente acessíveis. O testemunho cristão, portanto, não é oferecido através de um  bombardeio de pessoas com mensagens religiosas, mas por uma vontade de se entregar aos outros através de um desejo de responder paciente e respeitosamente às suas perguntas e dúvidas sobre o caminho da busca da verdade e do significado da existência humana.

De Bergoglio a Francisco encontramos o ponto central de uma mudança no próprio estilo de ser Papa. O mesmo Bergoglio que no documento de Aparecida influiu para que se valorizasse o encontro interpessoal com Deus e com o outro, revela-se na pessoa e na linguagem de Francisco como uma proposta audaciosa e avançada de criar uma "cultura do encontro". O Papa sabe que não basta converter alguns indivíduos isolados para que haja uma real transformação na sociedade e na Igreja.  Importa, sim, criar uma cultura, que significa tocar e converter atitudes, valores, costumes, tradições.

No balcão em frente às multidões à espera do anúncio do novo Papa, em 13 de Março de 2013, o Papa Francisco mostrou a sua disponibilidade para viver esse encontro,  com palavras e gestos. Apresentou-se a si próprio como bispo de Roma, enraizado no fim do mundo, onde repousam suas origens.  Pediu também a bênção do povo  antes de abençoá-lo, invertendo a ordem do costume e da tradição. 

Desde então, os dez anos do seu pontificado têm sido cheios de surpresas e novidades.  Trata-se de algo que tem agradado a muitos e desagradado talvez a muitos mais.  Francisco é, sem dúvida, um Papa diferente.  E o seu estilo de ser, comover-se, falar e agir surge certamente como uma surpresa para muitos. Mas encanta e conquista a outros. E isso talvez o faça mais amado fora da Igreja do que dentro dela. 

A mim – católica e teóloga – é como uma lufada de ar fresco numa Igreja que parecia deixar para trás a primavera do Concílio.  De repente, nas palavras do Papa, encontrei novamente a linguagem conciliar, ancorada na antropologia e na história.  A linguagem de uma Igreja que queria ser perita em humanidade, como diz a Constituição Pastoral  Gaudium et Spes. 

Ao longo desses 10 anos pude também redescobrir nos discursos pontifícios muito do que a Igreja latino-americana havia tentado construir no período pós-conciliar e que parecia haver estado tristemente sob suspeita em determinado momento: a prioridade dos pobres; a atenção à cultura popular e a valorização das suas festas, histórias e criações; a crítica não só aos indivíduos mas também aos sistemas que são injustos e oprimem pessoas e comunidades inteiras. 

A encíclica Laudato Si, de 2015, inaugura um novo capítulo na história da doutrina social da Igreja.  A transparência do texto, o discurso que tão harmoniosamente combina teologia com ciência e com poesia e mística, capta a preocupação do momento presente e das novas gerações por um planeta sob constante ameaça e sob ataque diário. Igualmente ensina que somos seres criados em meio a uma comunidade de outros seres vivos, não apenas humanos.  Toda vida merece respeito, reverência e cuidado.  O Papa Francisco, em nível pastoral, convocou a uma mudança de paradigma em toda a Igreja e a sociedade, onde o cuidado deve ser o centro e o norte da vida.  Os seres humanos são chamados a abandonar sua postura arrogante e predatória e a integrar-se na comunidade de todos os seres vivos, a fim de a protegerem, uma vez que as primeiras vítimas da desordem ambiental em que vivemos são os pobres.  A ecologia e a justiça andam, portanto, juntas. 

Em 2020 veio à luz outra encíclica, sintonizada com a Laudato Si. O título fala por si só:  Fratelli Tutti. Reflete sobre a amizade social, refletindo em torno da parábola do Bom Samaritano, situada no capítulo 10 do Evangelho de Lucas. O texto pontifício mostra que se a humanidade progrediu na construção da liberdade e da igualdade, o mesmo não aconteceu em relação à fraternidade.  Passar da lógica do sócio para a do irmão/irmã é o convite que ressoa neste documento, que reflete muito da experiência e do trabalho deste argentino, acostumado à companhia dos mais pobres e entusiasta dos movimentos populares. 

Finalmente, como teóloga, acredito que o Papa abriu novos e esperançosos caminhos para aqueles de nós que trabalham com a inteligência da fé. E por isso sinto-me muito em sintonia com a concepção de teologia que ele mostra ser a sua própria.  Em carta ao cardeal Poli, arcebispo de Buenos Aires, por ocasião da celebração do bicentenário da faculdade de teologia da Universidad Católica Argentina (UCA), escreve  com clareza que "o teólogo deve ser uma pessoa capaz de construir a humanidade à sua volta, transmitir a verdade cristã divina numa dimensão verdadeiramente humana, e não um intelectual sem talento, um moralista sem bondade ou um burocrata do sagrado". 

Mais recentemente, em  sua mensagem à Pontifícia Comissão Teológica Internacional, além de destacar os dois pilares da teologia - vida espiritual e eclesialidade - afirma que "o teólogo deve ir à frente, deve estudar o que vai além; deve também confrontar coisas que não são claras e assumir riscos na discussão". Acrescenta ainda que não se deve trazer questões controversas para o povo, mas sim uma doutrina sólida. O papel do catequista, portanto, não seria o mesmo do teólogo. Francisco entende a vocação da teologia  ancorada na fé, tendo uma identidade intelectual, sem medo de fronteiras e da pesquisa sobre os desafios do mundo e da sociedade. 

Ao comemorar esses 10 anos, olho com gratidão para o pontificado de Francisco.  Ao longo do mesmo, pode-se sentir o esforço incessante de promover este encontro entre as pessoas, que não deve ser algo episódico, mas uma verdadeira cultura.  Ele vê e comunica esta proposta com uma base firme em uma antropologia que concebe o ser humano feito para a alteridade e a diferença, e capaz de construir a comunhão. O encontro só pode ter lugar, como ele próprio sublinha, de baixo para cima, para que ninguém fique de fora desta comunhão difícil de construir, mas tão bela em termos de ideal e de objetivo.

Feliz aniversário, Santidade! Que venham  outros aniversários e celebrações!

 

Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Santidade: chamado à humanidade (Paulinas), entre outras obras. 

 

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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com

 

 

Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com

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