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sexta-feira, 29 de abril de 2016

O IMPEACHMENT COMO UMA ANTI-REVOLUÇÃO


Por Leonardo Boff


           Sou um dos poucos que tem dito e repetido que a ascensão do PT e de seus aliados ao poder central do estado, tem significado a verdadeira revolução pacífica brasileira que, pela primeira vez, ocorreu no Brasil.

Florestan Fernandes escreveu sobre “A revolução burguesa no Brasil”(1974) que representou a absorção pelos empreendedorismo pós-colonial de um padrão de organização da economia, da sociedade e da cultura, com a universalização do trabalho assalariado, com uma ordem social competitiva e com uma economia de mercado de bases monetárias e capitalistas (cf.em Intérpretes do Brasil, vol 3, 2002 p. 1512).

Se bem repararmos, não ocorreu propriamente uma revolução mas uma modernização conservadora que alavancou o desenvolvimento brasileiro, mas não teve, o que é decisivo para se falar de revolução, de uma mudança do sujeito de poder. Os que sempre estiveram no poder, sob várias formas, continuaram e aprofundaram seu poder. Mas não houve uma mudança de sujeito do poder como agora.

Pois é isso, que a meu ver, ocorreu com o advento do PT e aliados com a eleição de Lula a presidente. O sujeito não é mais formado pelos detentores de poder, tradicional ou moderno e sempre conservador mas, pelos sem-poder: os vindos da senzala, das periferias e dos fundões de nosso país, do novo sindicalismo, dos intelectuais de esquerda, da Igreja da libertação com suas milhares de comunidades de base. Todos esses, num longo e penoso processo de organização e articulação conseguiram transformar o poder social que haviam acumulado num poder político-partidário. Via PT operaram analiticamente uma autêntica revolução.

Superemos a visão convencional de revolução como um processo de mudança ligado à violência armada. Assumimos o sentido positivo dado por Caio Prado Jr em seu clássico “A revolução brasileira” (1966,p.16): “transformações capazes de reestruturar a vida de um país de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas, e as aspirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas, algo que leve a vida do país por um novo rumo”.

Pois foi isso que efetivamente ocorreu. Conferiu-se um novo rumo ao país. Lula presidente teve que fazer concessões à macroeconomia neoliberal para assegurar a mudança de rumo, mas abriu-se ao mundo dos pobres e marginalizados. Conseguiu montar políticas sociais, algumas inauguradas anteriormente de forma apenas inicial, mas agora oficiais como políticas de estado. Elas “atenderam as necessidades mais gerais e profundas que não haviam sido antes devidamente atendidas”(Caio Prado Jr.).

Enumeremos algumas de todos conhecidas como a Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos e as inúmeras universidades e escolas técnicas, o FIES e os diversos regimes de cotas para o acesso à universidade. Ninguém pode negar que a paisagem social do Brasil mudou. Todos, também os banqueiros e os endinheirados (Jessé de Souza) saíram ganhando.

Logicamente, herdeiros de uma tradição perversa de exclusão e de desigualdades gritantes, muita coisa resta ainda por fazer, particularmente no campo da saúde e da educação. Mas houve uma revolução social.

Por que nos referimos a todo esse processo? Porque está em curso no Brasil a negação de uma reevolução, melhor, de uma anti-revolução. As velhas elites oligárquicas nunca aceitaram um operário como presidente. Relacionada à crise econômico-política (que devasta a ordem capitalista mundial), uma direita conservadora e rancorosa, aliada a bancos e ao sistema financeiro, a investidores nacionais e internacionais, à imprensa empresarial hostil, a partidos conservadores, a setores do judiciário, da PF e do MP sem excluir a influência da política externa norte-americana que não aceita uma potencia no Atlântico Sul ligada aos BRICS, esta direita conservadora está promovendo a anti-revolução. O impeachment da presidenta Dilma é um capítulo dessa negação. Querem voltar ao estado anterior, à democracia patrimonialista, de costas para o povo, pela qual se enriquecem como no passado, usando postos no Estado eà custa do Estado.

Além de defender a democracia e desmascarar o impeachment como golpe parlamentar contra a presidenta Dilma, importa assegurar a revolução brasileira, para a qual esperamos por séculos. Repito o que escrevi e vi num twitter:”Se os pobres soubessem o que estão armando contra eles, as ruas do Brasil seriam insuficientes para conter o número de manifestantes que protestarão contra”.

Leonardo Boff é articulista do Jornal do Brasil on line e escritor



quinta-feira, 28 de abril de 2016

DEUS E O BRASIL


 Por Frei Betto



      ― O que o Senhor achou de tantos deputados acusados de corrupção invocar seu Santo Nome em vão?

      ― Pelo amor de Mim, um horror! Meu Filho se lembrou dos fariseus hipócritas, aquela raça de víboras.

      ― O Senhor não está sendo muito rigoroso? São todos cristãos!

      ― Cristãos eram também Hitler, Mussolini, Franco, Salazar e Pinochet. Posso não me intrometer muito nas mazelas humanas, mas uma coisa é certa: ninguém me engana. Não vejo cara nem coração. Fico de olho é na intenção.
      ― Mas pelo menos, nesse mundo tão descrente, foi um sinal de que ainda há quem creia no Senhor.

      ― Creem da boca pra fora e de olho no dinheiro pra dentro do bolso, ou de algum paraíso fiscal. Muitos ali adoram o bezerro de ouro, o deus do poder, da soberba e da demagogia. Falam em paz e apoiam a bancada da bala. Pregam o amor ao próximo e estimulam a homofobia. Carregam a Bíblia debaixo do braço e escorraçam de suas terras índios e quilombolas, pescadores e lavradores, para espalhar o gado.

      ― Homossexualidade não é pecado?

      ― Pecado é a falta de amor. Onde há amor, aí me faço presente.

      ― Mas há textos bíblicos que condenam a homossexualidade.

      ― Sim, como há outros que mandam passar ao fio da espada adeptos de outras religiões, como hoje faz o Estado Islâmico. Cada texto precisa ser lido dentro de seu contexto. É no mínimo desonestidade intelectual tirar pretextos preconceituosos de versículos bíblicos escolhidos segundo motivações que negam a qualquer ser humano a ontológica sacralidade de ter sido criado à Minha imagem e semelhança.

      ― Mas o Senhor não se sente lisonjeado com a bancada da Bíblia?

      ― Nunca deu certo a religião pretender monitorar a política. Por isso meu Filho entrou em choque com Pilatos e o Sinédrio judaico. Há quem julgue que o Cristianismo converteu o Império Romano no século IV. Foi contrário: Constantino logrou tornar a Igreja uma instituição imperial. E isso resultou em rupturas que hoje o papa Francisco tenta costurar, e na Inquisição, que pretendeu impor a fé a ferro e fogo. Política, Estado e partidos devem ser laicos. Todo fundamentalismo é nocivo. Lembre-se que meu Filho acolheu a mulher samaritana, considerada herege pelos judeus; a mulher fenícia, tida como idólatra; o centurião romano, adepto do paganismo, ressaltando a importância da tolerância religiosa.

      ― Deus, o Brasil tem jeito?

      ― Não enquanto houver estruturas injustas. Não importa quem venha a governá-lo. Podem até colocar remendos novos em pano velho, como esses programas sociais compensatórios. Aliviam mas não emancipam. Coço minha longa barba me perguntando: como, após 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, ainda há tantos sem-terra e sem-teto?

      ― E das pedaladas da Dilma, o que acha o Senhor?

      ― Ela faz muito bem de dar suas pedaladas matinais. Bicicleta não polui nem congestiona o trânsito. Quem atrapalha a República são aqueles que catam mosquitos no olho alheio e vivem engolindo camelos.

      ― Uma curiosidade, Senhor, já que és um ser onisciente: o Lula voltará à presidência?
      ― O maior eleitor dele se chama Michel Temer.
      ― O que vai dar no Senado?
      ― Esse futuro, felizmente, a Mim não pertence! Respeito a liberdade de voto dos senadores. E que tenham presente que estarão votando também na moldura que haverá de enquadrar suas biografias nas páginas da história do Brasil.
      ― Deus é brasileiro?
      ― Também, e vota na justiça como fonte de paz.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
 Copyright 2016 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com
  
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quarta-feira, 27 de abril de 2016

RECONCILIAÇÃO

Amigos! Amigas! 
Agradecemos a Mônica Muggler pela partilha deste artigo de Comblin, acerca da reconciliação.
Fraternalmente,
Alder

Extraído do Artigo “A nova Evangelização da América Latina e o caminho da Reconciliação”, José Comblin – publicado na revista Convergência, novembro 1988.

O tema da reconciliação é central na Bíblia. Deus reconcilia-se com o seu povo: este é o evangelho. O evangelho é o anuncio desta reconciliação. No entanto há um problema. No vocabulário ordinário, a reconciliação usa-se em outros sentidos. Há muitos usos da palavra. O mais popular é naturalmente o que se refere às brigas entre famílias ou indivíduos. Nas santas missões, os missionários preconizam o dia da reconciliação Nesse dia os inimigos de sempre fazem as pazes. Os que nunca conversavam, rompem as barreiras. As famílias esquecem os seus ressentimentos tradicionais. A reconciliação é um grande ato de conversão. Certamente esta reconciliação entre indivíduos e famílias é uma das mediações pelas quais Deus se reconcilia com o seu povo.

A reconciliação, porém, pertence também ao linguajar da politica. Ora, na política a palavra reconciliação está sempre ligada a um contexto específico. A reconciliação pertence ao mesmo discurso que a paz. A paz é uma das grandes metas da política. Todos querem a paz. Mas a paz como tema pertence, sobretudo à ideologia da dominação e dos impérios. A pax romana foi um paradigma. Cada império, porem, defende a sua causa invocando a paz de uma ou outra maneira. A paz está ligada à ordem, grande lema do império bizantino. Os impérios do presente não pregam menos a paz do que os anteriores.

Ora, a paz romana, como já dizia Santo Agostinho, é apenas a máscara que esconde uma imensa operação de banditismo: uma cidade conquistadora explora e domina o mundo inteiro. Quem mais oprime, mais fala em paz e reconciliação.

Quando as classes dominantes de uma sociedade sentem que o seu poder é contestado, apelam para a paz e a reconciliação. Quanto mais opressores, mais entusiasmados pela paz e pela reconciliação. A paz e a reconciliação servem como legitimação da injustiça estrutural. Os dominadores praticam a chantagem da desordem. Pregam que se o seu domínio ficar abalado, haverá desordem, anarquia, confusão: se nos tiram os nossos privilégios, o país será ingovernável, como dizia um presidente.

Nessa reconciliação as vitimas tem que se resignar. A reconciliação consiste nisto, que os oprimidos deixem de exigir os seus direitos, que as vitimas deixem de se queixar. O preço da reconciliação é pago pelos fracos e pelos dominados.

O apelo à reconciliação vem sempre das burguesias e das aristocracias privilegiadas. Quando as Igrejas pregam a reconciliação, elas se tornam consciente ou inconscientemente porta-vozes das classes dominantes. Pois o tema da reconciliação é eminentemente ideológico. Pregar a reconciliação é tomar partido pela ideologia dos privilegiados que nada querem ceder dos seus privilégios.

Os dominadores apelam para a reconciliação também porque sabem que essa palavra tem profundas ressonâncias religiosas. Querem enganar os simples, como se a resignação dos dominados fosse a condição de realização do plano de salvação de Deus. É um caso típico de utilização ideológica do cristianismo.

A reconciliação bíblica é uma realidade escatológica: trata-se de um processo que somente será consumado no outro mundo, na nova Jerusalém. Trata-se de uma longa caminhada. Nesta terra nunca haverá reconciliação total, nunca serão superados os conflitos. Viveremos sempre no meio de conflitos. Querer suprimir os conflitos é praticar uma ideologia. Sempre é algo suspeito de ideologia. Quem quer suprimir os conflitos são os privilegiados, os dominadores, os que exploram e querem abafar a voz dos explorados.

A reconciliação bíblica entra na história humana mediante mediações que precisam ser levadas em conta em toda a sua complexidade e de acordo com a marcha dos tempos, seguindo os sinais dos tempos.

Não se estabelece a reconciliação negando os conflitos, mas resolvendo-os. Ora a superação dos conflitos é uma caminhada árdua e complexa que não depende apenas da boa vontade ou das intenções das pessoas situadas nos polos opostos. O relacionamento entre os homens obedece a leis e forças, a dinamismos e estruturas complexas que são próprios de cada tipo de conflito. A cada tipo de relacionamento convém uma metodologia diferente.

(...)
Os métodos que servem para reconciliar os sexos não servem para reconciliar as raças humanas. Os antagonismos entre brancos e negros, entre brancos e amarelos, etc., como na América Latina os conflitos entre brancos e índios, obedecem a dinâmicas diferentes das dinâmicas sexuais. Não se resolve um problema de luta racial como se resolve um problema de luta social. Cada tipo de conflito tem a sua dinâmica e exige uma metodologia diferente baseada no conhecimento das leis científicas que regulam esse aspecto da realidade.

Os conflitos sociais foram amplamente observados, estudados, interpretados durante os últimos duzentos anos. Foram, sobretudo, os conflitos ligados à sociedade industrial com a sua clara divisão entre proletários e donos dos bens de produção. Os conflitos na sociedade rural são diferentes. Os conflitos na sociedade pós-industrial, em que o Estado desempenha um papel predominante, e as funções terciárias superam de longe as funções primárias ou secundárias, são também diferentes. Os métodos usados numa sociedade industrial clássica não se adaptam a uma sociedade pós-industrial. Nunca a boa vontade ou os bons sentimentos bastam. Geralmente não servem para nada ou quase nada. É necessário conhecer bem os processos sociais, as técnicas que permitem agir sobre eles e ser capaz de manipular as forças sociais em jogo. Frequentemente os cristãos foram ineficazes no campo social porque entraram na área dos conflitos com total ignorância da realidade e perfeita inocência ou ingenuidade. Os sentimentos morais tem pouca influencia nos conflitos humanos e podem provocar o resultado exatamente contrário ao que se desejava.

Na América Latina, se queremos contribuir com a superação dos conflitos e para uma reconciliação da sociedade, precisamos primeiro alcançar uma percepção exata dos conflitos que existem. Quais são as divisões existentes? Qual é a sua importância, a sua profundidade? Qual é o tipo de conflitos que se apresenta? Quais são as analogias históricas que nos permitem compreender melhor os conflitos que estão presentes?

Em segundo lugar, precisaremos conhecer as metodologias, os processos adaptados a cada tipo de conflito. O sentimento moral ajuda pouco. É preciso saber usar s ciências politicas ou sociais, usar a experiência, levar em conta as limitações históricas. Em muitos casos, os conflitos não são solúveis, mas é possível melhorar a condição de tal sorte que seja mais suportável.

Quais são os conflitos na América Latina? Medellín, Puebla, centenas de documentos eclesiais reconheceram o que também dizem centenas de estudos sociais: a situação inicial da América Latina ainda não foi superada. América Latina ainda é um continente dividido entre conquistadores e conquistados. Uma pequena minoria dispõe de todo o excedente da produção, de todo o poder político, de todas as vantagens de uma cultura superior. Esta pequena minoria está associada ao capitalismo multinacional o que lhe garante segurança e privilégios. Este é o conflito fundamental. Até que essa divisão radical seja superada, até que sejam destruídos os privilégios da minoria dominante, pouca coisa poderá ser feita no sentido de uma reconciliação. A concentração da riqueza e do poder impede qualquer justiça social e qualquer ascensão das massas.

Na atualidade, a minoria dominante sente os seus privilégios ameaçados e multiplica os apelos à paz e à reconciliação. Invoca uma ideologia de reconciliação para impedir uma conscientização das massas. Pede a ajuda da Igreja para persuadir as massas e conseguir que continuem tendo paciência como sempre. Promete resolver todos os problemas e afirma precisar apenas de um tempo breve para trazer as soluções.

Outras sociedades já conheceram situações análogas e conseguiram sair delas. Algumas fizeram-no por meio de revoluções violentas, outras por meios mais pacíficos. Poucas vezes os povos podem escolher e a história escolhe para eles. No entanto, alguma forma de interferência voluntária sempre é possível. Os dominadores são cegos e quase nunca agem em virtude de sábias previsões. Precipitam-se no cataclismo com cegueira total. Os dominados pode ser mais ou menos sábios, mais ou menos voluntaristas, mais ou menos pacientes e perseverantes. Mas não se pode falar em reconciliação enquanto não se modifica o quadro geral em que se movem as nações latino-americanas e enquanto não se modifica o relacionamento entre essas nações e o centro dominante do capitalismo ocidental. A condição previa de qualquer reconciliação é a transformação radical da estrutura da sociedade. Nisto concordam plenamente Populorum Progressio, Medellín, Puebla. Laborem exercens, Sllicitudo socialis. Não há reconciliação sem inversão radical da estrutura implantada á 500 anos e sempre consolidada desde então.

Os planos de reconciliação propostos pelos governos procuram prescindir do conflito fundamental, fazendo de conta que somente existem conflitos menores, mais facilmente solúveis. A solução dos problemas menores não será possível sem a mutação global prévia a todas as mudanças menores.
Dentro da divisão fundamental, há também certas divisões especificas, que diversificam o panorama global, mas não lhe tiram a validade, pelo contrário, confirmam a validade do esquema global.

A questão negra é sistematicamente negada pelas elites. Para os brancos não existe a questão racial e não há racismo na América Latina. Essa negação permaneceu a regra no Brasil até a campanha da fraternidade de 1988. É bem sabido que a própria campanha da fraternidade não foi bem acolhida em todas as regiões do Brasil. Em certos lugares a campanha foi marcada por expressões típicas de racismo que provocaram um protesto explicito de um arcebispo negro na assembleia de Itaici de 1988. Em nome da existência do problema racial, muitos brancos queriam impedir que os negros se expressassem. Não queriam que os negros se reunissem, afirmassem a sua identidade, a sua cultura, a sua religião. Os negros deveriam sempre apagar-se no anonimato de expectadores da sociedade branca.

 No Brasil e na América Latina, a questão negra sofre uma repressão consciente e, mais ainda, inconsciente. O conflito é reprimido, mas permanece como uma exigência apesar da repressão. Não se chega á reconciliação racial negando o conflito. Neste caso particular, a primeira condição da reconciliação será permitir que o conflito se manifestasse explicita e publicamente. A pura repressão nada resolve.

A questão indígena é tão grave como a questão negra. Os indígenas são também negados. Os latino-americanos acham-se todos descendentes dos índios. A indianidade teria sido absorvida totalmente numa população mestiça. Desse modo o índio teria desaparecido. Existiria apenas perdido no homem mestiço. A partir desse postulado os índios são negados nos seus direitos: não se lhes reconhece o direito à terra, à língua, à cultura, nem sequer o direito à sua religião, porque se supõe que todos são simplesmente católicos e devem contentar-se com aquilo que a Igreja Católica lhes oferece.

 No haverá reconciliação com o índio apenas na contemplação na natureza mestiça do latino-americano e na suposta cultura mestiça do latino-americano. A reconciliação supõe que os índios possam explicitar o conflito latente que os mantem numa situação de não-ser, de não-cidadãos.

Os maiores conflitos da América Latina ainda não foram explicitados. Ainda não se manifestaram. Os privilegiados, conquistadores e brancos, queriam abafar os conflitos antes que se manifestassem. Queriam falar em reconciliação antes que os oprimidos tivessem sequer a possibilidade de mostrar a sua existência. Queriam uma reconciliação fundada na negação dos problemas. Em tal situação, falar em reconciliação é pura armadilha. Antes que se possa falar em reconciliação é preciso que se manifestem as divisões que são tão profundas que ainda não chegara ao nível da consciência.

Como falar em reconciliação entre brancos e negros se a maioria dos negros ainda não chegou à consciência da profunda rejeição de que são vítimas? Como falar em reconciliação quando a maioria dos camponeses e operários explorados ainda não chegou à consciência do sistema que os explora? Como falar em reconciliação quando as imensas massas de desempregados, biscateiros, favelados ainda não sabem porque foram rejeitados fora da sociedade? Somente pode haver reconciliação na base do reconhecimento da verdade. A América Latina ainda deve passar por uma longa fase de conscientização antes que se possa falar validamente de uma reconciliação a nível político e social.

A Igreja poderia antecipar alguns sinais de reconciliação. A Igreja não é capaz de substituir a história ou de reconstruir outra história. Está subordinada aos tempos e aos momentos. Mas ela pode em si mesma anunciar a reconciliação futura dando alguns sinais.

Por exemplo, a Igreja poderia abrir-se para os pobres. Poderia começar a ser algo de Igreja dos pobres. Poderia abrir espaço para os pobres para que estes se sentissem mais à vontade no recinto eclesial. Isto acontece em algumas comunidades de base, raramente acontece nas paróquias, não acontece nos colégios e universidades católicas. Até agora o clero constitui uma classe privilegiada que não traz a marca dos pobres. Para poder presidir a eucaristia é preciso ter passado da classe dos pobres para uma classe privilegiada. Uma transformação social e econômica é a condição prévia para ser ordenado. Terá que ser sempre assim? Da mesma maneira as congregações religiosas tem um modo de ser e de viver que responde aos cânones da classe média, inclusive muitas vezes de uma classe média alta. Tem que ser assim necessariamente? Enquanto for assim faltarão os sinais de uma futura reconciliação.

A Igreja poderia dar o sinal de uma reconciliação entre brancos negros. Poderia permitir que os negros tivessem as suas reuniões, as suas expressões culturais, a sua liturgia, a sua organização. Poderia então haver diálogo, intercambio, troca. Não há dialogo quando o outro não pode expressar-se. A Igreja poderia abrir-se para cultura negra. Poderia abri espaço para as expressões religiosas do patrimônio negro. Poderia abrir-se para as riquezas das religiões afro americanas. A Igreja poderia ter mais bispos negros, mais sacerdotes negros, mais religiosos e religiosos negros. Poderia adaptar as condições de admissão à situação cultural dos negros em lugar de impor a todos um modelo branco. A Igreja poderia formar comunidades mistas em que negros e brancos compartilhasse sem que um tivesse que ceder sempre ante os valores do outro.

Na caminhada escatológica a Igreja está chamada não a seguir o ritmo da história, mas a mostrar o caminho.  Durante a época colonial e ainda pós-colonial, a Igreja permaneceu prisioneira do mundo dos colonizadores. Permaneceu latina e não chegou a ser americana. Poderia ser menos latina e mais americana. Poderia reivindicar mais autonomia e mais especificidade no conjunto da Igreja universal. Em lugar de ser cópia fiel das igrejas européias, as igrejas americanas poderiam ser mais criativas e dar espaço aos índios e aos negros. Se não fizerem assim, em lugar de ser uma força de reconciliação, servirão para ocultar as divisões e servir à causa dos dominadores, como tantas vezes elas fizeram no passado. No passado a Igreja foi forçada pelos reis, pela força das potencias colonizadores. Dentro de uma América que procura a sua independência, ela poderia ter a audácia da liberdade e emancipar-se da dominação de uma cultura latina que os dominadores lhe impõem para esconder o verdadeiro rosto do povo latino americano, esse rosto que Puebla descobria num texto que ficou famoso.

A reconciliação é uma longa caminhada. Jesus diz que não veio trazer a paz, mas a espada. Ele não promete paz e tranquilidade. Haverá muitas lutas e muitas divisões não porque homens maldosos as estão criando artificialmente, mas porque estão inscritas no passado são a herança do passado. Carregamos o peso do pecado e não adianta querer negar esse pecado. A reconciliação consiste em assumir as lutas necessárias em vista de uma humanidade que consiga superar e não escamotear os seus problemas.

Os povos latino americanos sabem disto. A sua evangelização parte desse mundo e dessa história. Se o evangelho está no clamor dos oprimidos, ele se situa no coração das lutas e das divisões. Proclama a sua confiança numa reconciliação final, mas não tem ilusões quanto aos prazos. Os discursos apocalípticos de Jesus também não deixam ilusões. Haverá muitas guerras e muitas lutas. São os falsos profetas que dizem:  Paz! Paz! Paz!  Os verdadeiros sabem de que tecido é feita a história humana. Sabem os povos qual foi a vida que viveram os seus antepassados.

A Igreja, porém, é a luz que mantem a esperança no meio das trevas. Ele é a luz que mostra o caminho no meio da angustia da história. Ela traz os sinais que fortalecem os ânimos e alimentam a vida. O futuro imediato da América Latina será como o seu presente: feito de sangue, de lagrimas, de fome, de choro, de clamor. Bem aventurados os que choram, porque hão de rir.

A reconciliação é a nossa tarefa: Não há mais diferenças entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher. (Gl 3,28). Aqui na América Latina, não há mais diferença entre dono de terra e boia fria, entre imobiliárias e favelados, entre branco e negro, entre branco e índio, entre civil e militar, entre patrão e empregado, entre homem e mulher. Não que as diferenças existentes sejam negadas  ou esquecidas, mas o que vai acontecer é que elas vão desaparecer. Haverá transformações tais que tudo isso vai desaparecer. Bem sabemos que muitas lutas serão necessárias antes de se chegar a isso. Porque os donos da terra não vão dar a terra sem lutas, porque os patrões não darão participação aos empregados sem lutas, porque os brancos não darão espaço aos negros sem lutas, porque as imobiliárias não darão terra aos favelados sem lutas, porque os civis não submeterão os militares sem lutas, porque os homens não reconhecerão a dignidade da mulher sem lutas.

A Igreja dará sinais. Por causa dos sinais será acusada de incentivar as lutas em lugar de pregar a reconciliação. Mas ela não se deixará intimidar. A lembrança dos mártires impedirá que se torne covarde diante dos poderosos. Saberá romper com os que querem ser os seus donos. Saberá libertar-se para poder trabalhar pela libertação de todos.

terça-feira, 26 de abril de 2016

OS DOIS PULMÕES DA IGREJA

Por Marcelo Barros



“A Igreja cristã tem dois pulmões: o ocidental e o oriental. E precisa dos dois para respirar”. Essas palavras de João Paulo II tornam-se mais atuais nesses dias em que Francisco, o bispo de Roma e Bartolomeu, o patriarca de Constantinopla, juntos, foram à ilha de Lesbos, na Grécia para levar o apoio das duas Igrejas aos migrantes e refugiados, a maioria deles muçulmanos e de outras religiões, praticamente presos em uma espécie de campo de concentração, de onde não podem sair para entrar na Europa. O papa e o patriarca querem chamar a atenção do mundo para o drama humano desses milhares de homens e mulheres privados do direito humano de migrar, direito reconhecido pela ONU já em 1948.

Em fevereiro, o papa Francisco aceitou encontrar-se com Alexis II, patriarca de Moscou. Era a primeira vez em que se encontravam um papa de Roma e um patriarca da Igreja Russa. Como havia muitas dificuldades e obstáculos, a visita foi bem preparada. O patriarca impôs várias condições para o encontro se tornar possível. O papa Francisco deu uma lição de humildade e de profunda busca da unidade ao aceitar todas as condições para que o encontro ocorresse. Tudo para abraçar o patriarca e chamá-lo “irmão”. Em 1964, o papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras cancelaram a excomunhão recíproca que seus ancestrais tinham publicado em 1054 e oraram juntos em Jerusalém. Em 2014, cinquenta anos depois, o papa Francisco e o patriarca Bartolomeu I refizeram o mesmo gesto de orar juntos em Jerusalém.

No plano teológico, a Igreja Católica que, por séculos, tinha  concentrado sua teologia no pecado e em uma espiritualidade medieval muito fixada na paixão e na dor, aprendeu dos cristãos orientais uma espiritualidade mais baseada na bênção divina e na criação. Restaurou a centralidade da ressurreição de Jesus na vida dos crentes e passou a testemunhar uma fé mais centrada na unidade do mistério pascal. Depois que o papa Francisco publicou a encíclica Laudatum sii sobre o cuidado com a casa comum e a urgência de uma Ecologia integral (que integre o cuidado com o ambiente e a justiça social), todos nós nos damos conta de que também nesse caminho, precisamos de nossos irmãos das Igrejas do Oriente que, desde os séculos antigos, têm valorizado muito mais a dignidade da criação como sacramento divino (uma espécie de corpo de Deus presente no mundo). A teologia ortodoxa atual tem desenvolvido mais e de uma forma integrada à fé e à espiritualidade litúrgica cotidiana a responsabilidade das Iglesias frente à atual crise ecológica[1].

Nesses dias, o mundo recebe com sofrimento e se preocupa com as notícias de perseguição e martírio de cristãos orientais em países do Oriente Médio. Quem vive na América Latina sabe que, nesses últimos 50 anos, muitos cristãos, católicos e evangélicos, homens e mulheres sofreram perseguições e muitos deram a sua vida para testemunhar a justiça e a busca da paz. Eles quiseram viver sua fé na solidariedade a lavradores perseguidos, a povos indígenas ameaçados de extinção e a comunidades de periferia, marginalizadas por um sistema social e econômico que exclui os pobres. Essa experiência nos leva a apoiar nossos irmãos e irmãs do Oriente que sofrem perseguições, sejam cristãos, budistas, muçulmanos ou sem religião. Com eles, queremos testemunhar que o martírio não é somente uma forma de morrer, mas de viver. Isso significa viver em comunhão, solidariedade e na luta pacífica por um novo mundo possível.


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.  

[1] - Sobre eso, en septiembre de 2014, en el Monasterio de Bose, en el norte de Italia, ocurrió un Congreso Ecuménico Internacional de espiritualidad ortodoxa sobre “El hombre, guardia de la creación”. En ese congreso han participado representantes de casi todas las Iglesias ortodoxas. 

segunda-feira, 25 de abril de 2016

TRISTE ESPETÁCULO

                               
por Maria Clara Lucchetti Bingemer



            Interrompo a série de reflexões que pretendia fazer sobre a Amoris Laetitia, exortação do Papa Francisco após o sínodo da Família.  Retomarei na semana que vem, se Deus quiser.  Mas, francamente, nesta semana não é possível pensar, discutir ou falar sobre nada mais além do tristíssimo espetáculo da votação na Câmara sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

            Durante todo o processo que desembocou naquela patética sessão, procurei eximir-me de entrar em discussões e debates acalorados, seja pessoalmente, por telefone, nas redes sociais, enfim, em todas as instâncias. Ajudou-me o fato de estar fora do país a trabalho. Porém, após assistir a sessão de tantas horas, julgando algo tão sério como o impedimento da presidente da República, e constatando o nível baixo do comportamento, das atitudes e das palavras daqueles que são representantes do povo, por ele eleitos, não posso deixar de fazê-lo.

            Meu sentimento é de vergonha dos deputados do meu país, com raras exceções. Seus depoimentos ao microfone, em lugar de serem discretos e objetivos, invocavam a mãe, o pai, os filhos, netos, bisnetos e o que mais houvesse de parentes e familiares.  Outros invocavam categorias mais abstratas: o futuro, o país, o amanhã etc. Deus também teve seu Santo Nome várias vezes pronunciado em vão. Como é possível tamanha falta de foco, tamanha negligência e falta de respeito pela seriedade da decisão que ali se tomava?  Como é possível, isso sim, tamanha falta de compostura e decoro?

Minha sensação era a de estar assistindo a um programa de auditório, como os da televisão brasileira da minha juventude - o do Chacrinha, por exemplo -  que hoje se reeditam em vídeo cacetadas etc.  Com a diferença que não tinha a menor graça.  Era lastimável de assistir.  Um coletivo que deve agir com dignidade e nobreza gritando ensandecido, chegando inclusive a agressões verbais e físicas. 

Tudo isso seria tolerável, porém, se não houvesse um clímax de absurdo e falta de sentido que reduziu tudo o mais a menor importância.  Refiro-me ao voto do deputado Jair Bolsonaro.  Além de fazer abertamente a analogia do impeachment de Dilma Rousseff ao golpe de 1964: “Perderam em 64, perderam em 2016”, pronunciou-se em favor da ditadura militar.  Foi um insulto a todas as pessoas que viveram aqueles anos de chumbo – entre as quais me incluo – e que viram o país ser reprimido e censurado, um período de medo e terror.

Na universidade havia espiões que não era possível identificar.  Misturados aos alunos, eles ficavam atentos ao que era dito para depois delatar implacavelmente os “subversivos”, como classificavam os que se opunham ao governo militar e passavam a ser perseguidos e deviam esconder-se para não cair sob as garras do terrível DOI-CODI e passar pela tortura ou serem mortos. 


Os jovens se escondiam sem que as famílias soubessem seu paradeiro.  As prisões eram arbitrárias e o medo reinava e fazia o ar pesado e opaco.  Tudo isso vivemos, deputado.  E o senhor tem a coragem de, em um momento tão grave como o atual, fazer uma homenagem àqueles tempos terríveis de nossa história recente?

Mas não parou por aí a atitude inexplicável do deputado Bolsonaro.  Resolveu personificar sua homenagem à ditadura militar na sinistra figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ligando-o explicitamente a Dilma Rousseff, que por ele foi torturada.  Não foi apenas a presidente que passou pelas mãos nefastas de Ustra.  Muitas outras a seguiram, Sonia, Dora, Iara, Inês...tantas...tantas...Algumas morreram na tortura.  Outras escaparam e foram trocadas por diplomatas sequestrados pelos movimentos de esquerda.  Todas levarão até o tumulo as marcas de Ustra e sua sanha sádica e perversa.  Entre elas figura uma grande amiga minha, de infância, querida e amada.  Penso nela e no coronel Ustra e o nojo se mistura à indignação.

E o deputado Bolsonaro homenageia este torturador. Onde estamos?  Onde está o respeito pelas vítimas de Ustra, essas mulheres, agredidas e humilhadas pelo torturador?  Onde está a dignidade cívica do deputado?  Não sabe que defender a tortura é crime?  Fazê-lo em plena sessão do Congresso Nacional, além de crime é de um mau gosto macabro e a toda prova.

O dia seguinte a esse triste espetáculo foi de tristeza e profundo desânimo.  E percebi não serem apenas sentimentos meus.  Gente que se engajou de corpo e alma na batalha da democracia, de um lado ou de outro, estava muda, calada.  Não houve comemorações.  A vitória de alguns não teve o sabor inebriante que esperavam.  A derrota de outros não chegou a produzir raiva e sim cansaço. 

Na verdade, é de se perguntar:  terá havido vencedores?  Parece-me que o triste espetáculo que resultou na abertura ao processo de  impeachment da presidente Dilma Rousseff ostenta apenas vencidos.  Vencidos estamos todos, brasileiros que olhamos para a frente e não vemos futuro.  Vencidos todos obrigados a presenciar a mediocridade e a falta de qualidade ética e humana da maioria dos que nos representam na Câmara dos Deputados.  Vencidos todos os que sofremos e lutamos com uma sangrenta ditadura militar e vemos um deputado eleito democraticamente homenagear um de seus mais cruéis protagonistas.

Que Deus volte seu rosto misericordioso para nosso país.  Antes de qualquer reforma – política, fiscal, econômica – será preciso reformar nossos mais profundos sentimentos.  Não podemos legar às novas gerações a depressão que agora ameaça tomar-nos o coração e roubar-nos a esperança. 

  Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.  A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)    

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sexta-feira, 22 de abril de 2016

A CRISE BRASILEIRA E A GEOPOLÍTICA MUNDIAL


Por Leonardo Boff



Seria errôneo pensar a crise do Brasil apenas a partir do Brasil. Este está inserido no equilíbrio de forças mundiais do âmbito na assim chamada nova guerra fria que envolve principalmente os EUA e a China. A espionagem norte-americana, como revelou Snowden atingiu a Petrobrás e as reservas do pre-sal e não poupou até a presidenta Dilma. Isto é parte da estratégia do Pentágono de cobrir todos os espaços sob o lema:”um só mundo e um só império”. Eis alguns pontos que nos fazem refletir.

No contexto global há um ascensão visível da direita no mundo inteiro, a partir dos próprios EUA e da Europa. Na América Latina está se fechando um ciclo de governos progressistas que elevaram o nível social dos mais pobres e firmaram a democracia. Agora estão sendo assolados por uma onda direitista que já triunfou na Argentina e está se pressionando todos os países sul-americanos. Falam, como entre nós, de democracia mas, na verdade, querem torná-la insignificante para dar lugar ao mercado e à internacionalização da economia.

O Brasil é o principal atingido e o impedimento da presidenta Dilma é apenas um capítulo de uma estratégia global, especialmente das grandes corporações e pelo sistema financeiro articulado com os governos centrais. Os grandes empresários nacionais querem voltar ao nível de ganho que tinham sob as políticas neo-liberais, anteriores a Lula. A oposição à Dilma e o apoio ao seu impedimento possui um viés patronal. A Fiesp com o Skaf, a Firjan, as Federações do Comércio de São Paulo, a Associação Brasileira da Indústria Eletrônica e Eletrodomésticos (Abinee), entidades empresariais do Paraná, Espírito Santo, Pará e muitas redes empresariais estão já em campanha aberta pelo impedimento e pelo fim do tipo de democracia social implantada por Lula-Dilma.

A estratégia ensaiada contra a “primavera árabe” e aplicada no Oriente Médio e agora no Brasil e na América Latina em geral consiste em desestabilizar os governos progressitas e alinhá-los às estratégias globais como sócios agregados. É sintomático que em março de 2014 Emy Shayo, analista do JB Morgan coordenou uma mesa redonda com publicitários brasileiros ligados à macroeconomia neoliberal com o tema:”como desestabilizar o governo Dilma”. Armínio Fraga, provável ministro da fazenda num eventual governo pós-Dilma vem do JB Morgan (cf.blog de Juarez Guimarães,”Por que os patrões querem o golpe”).

Noam Chomski, Moniz Bandeira e outros advertiram que os EUA não toleram uma potência como o Brasil no Atlântico Sul que tenha um projeto de autonomia, vinculado aos BRICS. Causa grande a preocupação à política externa norte-americana a presença crescente da China, seu principal contendor, pelos vários países da América Latina, especialmente e no Brasil. Fazer frente a outro anti-poder que significam os BRICS implica atacar e enfraquecer o Brasil, um de seus membros com uma riqueza ecológica sem igual.

Talvez o nosso melhor analista da política internacional. Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de “A segunda Guerra Fria – geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos” (Civilização Brasileira 2013) e o deste ano “A desordem internacional”(da mesma editora) nos ajude a entender os fatos. Ele trouxe detalhes de como agem os EUA: ”Não é só a CIA… especialmente as ONGs financiadas pelo dinheiro oficial e semi-oficial como a USAID, a National Endwoment for Democracy, atuam comprando jornalistas e treinando ativistas”. O “The Pentagon´s New Map for War & Peace” enuncia as formas de desestabilização econômica e social através dos meios de comunicação, jornais, redes sociais, empresários e infiltração de ativistas Moniz Bandeira chega a afirmar que “não tenho dúvida de que no Brasil os jornais estão sendo subsidiados…e que jornalistas estão na lista de pagamento dos órgãos citados acima e muitos policiais e comissários recebem dinheiro da CIA diretamente em suas contas”(cf. Jornal GGN de Luis Nassif de 09/03/2016). Podemos até imaginar quais seriam esses jornais e os nomes de alguns jornalistas, totalmente alinhados à ideologia desestabilizadora de seus patrões.

Especialmente o pré-sal, a segunda maior jazida de gás e de petroleo do mundo, está na mira dos interesses globais. O sociólogo Adalberto Cardoso da UERJ numa entrevista à Folha de São Paulo (26/04/2015) foi explícito“Seria ingenuidade imaginar que não há interesses internacionais e geopolíticos de norte-americanos, russos, venezuelanos, árabes. Só haveria mudança na Petrobras se houvesse nova eleição e o PSDB ganhasse de novo. Nesse caso, se acabaria o monopólio de exploração, as regras mudariam. O empeachment interessa às forças que querem mudanças na Petrobrás: grandes companhias de petróleo, agentes internacionais que têm a ganhar com a saída da Petrobrás da exploração de Petróleo. Parte desses agentes quer tirar Dilma “.

Não estamos diante de um pensamento conspiratóro, pois já sabemos como agiram os norte-americanos no golpe militar em 1964, infiltrados nos movimentos sociais e politicos. Não é sem razão que a quarta frota norte-americana do Atlântico Sul está perto de nossas águas.

Devemos nos conscientizar de nossa importância no cenário mundial, resistir e buscar o fortalecimento de nossa democracia que represente menos os interesses das empresas e mais as demandas tão olvidadas de nosso povo e na construção de nosso própro caminho rumo ao futuro.

Leonardo Boff é articulista do JB online e escritor.


quinta-feira, 21 de abril de 2016

A VELHA BÍBLIA E A NOVA ARQUEOLOGIA

por Frei Betto



      Os relatos bíblicos do Antigo Testamento são históricos? Abraão, Isaac, José, Moisés e Davi existiram de fato ou são criações literárias como Ulisses, Dom Quixote e Hamlet?

      Até meados do século XIX, pastores, sacerdotes, teólogos dedicados à pesquisa com a picareta em u’a mão e a Bíblia na outra eram a maioria dos arqueólogos... Desde então, as investigações sobre a historicidade dos relatos passou a depender de uma arqueologia descomprometida de interesses religiosos.

      Novas técnicas são, agora, utilizadas, como o carbono 14, a fotografia aérea, o geo-radar (que revela dados do subsolo), o paleomagnetismo (baseado na inversão da polaridade da Terra),  os métodos de potássio árgon, datação radiométrica, medição da idade da matéria orgânica, termoluminiscência (para calcular a antiguidade da cerâmica), e a interpretação de idiomas antigos, o que quebra a mudez de inúmeros documentos.

      Hoje se questiona se houve, de fato, a suposta migração de tribos provenientes da Mesopotâmia rumo ao oeste, com destino a Canaã. A arqueologia ainda não encontrou nenhum indício daquele deslocamento massivo de população.

      As histórias dos patriarcas bíblicos (2000-1700 a.C.) estão repletas de camelos (Gênesis 24, 10). Ora, o dromedário só foi domesticado no fim do 2º milênio antes da nossa era e teve de esperar mais mil anos para ser utilizado como animal da carga no Oriente Médio.

      É fato histórico o êxodo, a travessia do deserto, ao longo de quarenta anos, pelos hebreus libertados do Egito? Desde o século XVI a.C. o Egito ergueu, das margens do Nilo até Canaã, fortes militares. Nada escapava àquelas guarnições. E quase dois milhões de israelitas em fuga não lhes poderiam passar despercebidos. No entanto, nenhuma estela da época registra aquele movimento migratório. Tal multidão não poderia ter atravessado o deserto sem deixar vestígios. O que se encontram são ruínas de casarios de 40 a 50 pessoas, nada mais. A menos que a horda de escravos libertos, alimentada pelo maná que caía do céu, jamais tenha se detido para dormir e comer...

      Os hebreus nunca conquistaram a Palestina. Sempre viveram ali. Os primeiros israelitas eram pastores nômades instalados nas regiões montanhosas de Canaã desde o século XII anterior à nossa era. Ali, umas 250 comunidades, muito reduzidas e isoladas uma da outra, viveram da agricultura. Eram tribos que passavam, com facilidade, do sedentarismo ao nomadismo.

      Supõe-se que, em fins do século VII a.C., funcionários da corte hebraica foram encarregados de compor uma saga épica, composta de uma coleção de relatos históricos, lendas, poemas e contos populares, para servir de fundamento espiritual aos descendentes da tribo de Judá. Criou-se, assim, uma obra literária, em parte elaboração original, em parte releituras de versões anteriores.

      O conteúdo do Pentateuco ou da Torá teria sido elaborado 15 séculos depois do que se supõe. Os líderes de Jerusalém iniciaram uma intensa campanha de profilaxia religiosa e ordenaram a destruição dos santuários politeístas de Canaã. Ergueu-se o Templo para que fosse reconhecido como o único local legítimo de culto do povo de Israel. Daí resulta o monoteísmo moderno.

      No período persa (538-330 a.C.), o povo hebreu, após o exílio na Babilônia, viveu na pequena província de Yehud. Estava fragilizado econômica e politicamente. Seu Deus havia sido derrotado pelo do império babilônico. Como conciliar tamanha frustração com o sonho de ser o único povo eleito de Javé? Graças ao persa Ciro, que os libertou, os hebreus recuperaram a autoestima ao criar uma coletânea de relatos sobre as façanhas do Deus único, histórico, supranacional e senhor do Universo.

      De Abraão a Davi, a narrativa bíblica é um mito fundacional, assim como Virgílio, em sua Eneida, criou a fundação mítica de Roma por Eneias. Os vencidos reescreveram a história, destacaram-se em uma epopeia acima de todos os povos e resgataram a própria identidade.

      Portanto, a Bíblia não caiu do céu. É obra de um povo sofrido, cujo sentimento religioso o levou a se empenhar em descobrir um novo rosto de Deus e recriar sua identidade histórica. Isso, sim, foi um milagre.

      Tais descobertas científicas não abalam a fé, exceto a daqueles que baseiam suas convicções históricas nos relatos bíblicos. A fé, como o amor, é uma experiência espiritual, um dom divino, e quando madura não se apoia nas muletas da ciência, assim como a matemática e a física não dispõem de equação que possa explicar o que une duas pessoas que se amam.

Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Fontanar), entre outros livros.

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