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terça-feira, 31 de março de 2015

DIGNIDADE E DIREITOS: OUTRO MUNDO É POSSÍVEL


Marcelo Barros


Nesses dias, (de 24 a 28 de março), em Túnis, no norte da África, ocorreu mais uma sessão (a 15a) do Fórum Social Mundial. Sempre com a bandeira de “um outro mundo é possível”. Dessa vez, o Fórum assumiu como tema principal a defesa da dignidade humana e dignidade da vida. Incluem-se nos direitos a serem promovidos os do ser humano, das comunidades originais, assim como os necessários cuidados com a natureza, assim como o estatuto correspondente a direitos do Cosmos, da terra, da água e de todos os seres vivos.

O Fórum Social Mundial é um processo que começou em Porto Alegre em 2001. Desde então percorreu vários continentes. A cada sessão tem reunido organizações sociais, movimentos, intelectuais e militantes de base vindos de todo o mundo em uma assembleia da humanidade. O processo dos fóruns sociais parte da percepção de que a atual forma de organizar o mundo está em crise. No mundo todo, as pessoas sofrem a insegurança de viver em uma sociedade na qual o desemprego é estrutural e desejado pelas empresas que mandam nos Estados. Os cidadãos pagam impostos, mas não veem respeitados seus direitos sociais. Já em 1948, a ONU reconhecia esses direitos como universais e imprescindíveis para toda pessoa humana. A natureza sempre passou por épocas diferentes. Em todas elas, houve catástrofes ecológicas. Mas, em nenhuma outra época, a crise ecológica chegou a esse ponto. Dessa vez, provocada pela ambição e prepotência do ser humano. Diante de tudo isso, o Fórum Social Mundial mostra que não basta protestar. É preciso sentir-se responsáveis e organizar-se para preparar um novo mundo possível. A carta de princípios do Fórum, estabelecida pela Comissão Internacional que organiza o processo, deixa claro que se trata de uma iniciativa não partidária que reúne cidadãos do mundo inteiro. No Fórum, todos são iguais e não existem autoridades que dominam. Em cada fórum, os movimentos e organizações sociais se encontram e organizam atividades autônomas sobre os mais diversos temas. O Fórum não se constitui como “central de movimentos sociais e organizações não governamentais”. Proporciona espaço para que as mais diferentes iniciativas de base e os trabalhos sociais dos diversos grupos se conheçam, dialoguem entre si e se articulem em vista de um caminho comum.  

Desde janeiro de 2001, quando ocorreu o 1o Fórum Social Mundial, até esse final de março, quando a sociedade civil internacional se reuniu em Túnis, no 12o Fórum Social, o mundo mudou muito. Em alguns aspectos para melhor. Na América Latina, nos últimos dez anos, cresceu muito a consciência de uma unidade comum. Nossos povos, desde séculos, submetidos aos impérios do mundo, deram passos na direção de sua autonomia e libertação. É claro que impérios como o governo dos Estados Unidos da América não aceitam isso. Fazem tudo para deter esse caminho. Nesses dias, intelectuais latino-americanos, teólogos da libertação, personalidades que receberam o prêmio Nobel da Paz e o padre Miguel d’Escoto, ex-secretário da assembleia geral da ONU, escreveram uma carta ao presidente dos Estados Unidos. Na carta, insistiram que Obama parasse com essa guerra ideológica. Denunciavam que, durante décadas, o governo norte-americano financiou golpes de Estado e derrubou os governos mais populares em nosso continente. Atualmente, como não tem mais clima para continuar a cometer esse tipo de ações, cria um clima de ameaça e insegurança permanente em países como a Venezuela e Bolívia. Diante de tudo isso, é mais do que urgente pensar juntos novas bases para uma sociedade internacional.

Esse fórum se encerra na véspera da semana na qual as Igrejas cristãs celebram a doação da vida de Jesus e sua Páscoa, ou seja, sua presença viva nas comunidades que continuam o seu caminho e sua missão para realizar no mundo o projeto divino de justiça e de paz. É importante que os cristãos celebrem essa Páscoa como abertura para o diálogo com os outros crentes e como símbolo de um novo fórum mundial de pessoas que creem em Deus e por isso creem mais ainda em um novo mundo possível.

  Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 30 de março de 2015

NOTA DE ESCLARECIMENTO E REPÚDIO DO CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DE PETRÓPOLIS CONTRA A FALSA ACUSAÇÃO DE BENEFÍCIO INDEVIDO DO GOVERNO FEDERAL

por Leonardo Boff



Correu pelas redes sociais uma  falsa afirmação  de que o Centro de Defesa do Direitos Humanos de Petrópolis, do qual sou presidente honorário (sem qualquer remuneração ) teria sido de forma corrupta beneficiado pelo governo federal  do PT. O CDDH desenvolvia, em nome do Governo, desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso, um atividade altamente  perigosa pelo convênio PROVITA. 

O programa era “A proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas”  escondendo-as  com todas as suas famílias, tendo que enviá-las, por vezes,  a outros estados para escapar da perseguição dos que queriam eliminá-las. Trago aqui o testemunho da coordenadora do projeto a partir da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República: “Amigo Leonardo Boff e demais do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis. Tenho plena confiança e certeza da ética com que vocês desenvolvem o trabalho. E, mais do que isso, sou testemunha do quanto o convênio para o PROVITA desestabilizou o Centro, pois buscar solução para essa situação era uma das minhas responsabilidades como Secretaria Nacional na SDH da Presidência: Abraços  Salete".

Em 18 de março de 2015 17:54, Centro de Defesa dos Direitos Humanos
escreveu:

NOTA DE ESCLARECIMENTO E REPÚDIO

O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis foi criado em novembro
de 1979 tendo entre seus fundadores Leonardo Boff, que atualmente é diretor-presidente da instituição. Dentre os diversos projetos desenvolvidos pela instituição desde a sua criação, o CDDH realizou a execução do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Estado do Rio de Janeiro (PROVITA/RJ), em convênio com o governo do Estado do Rio de Janeiro e este conveniando com o Governo Federal, de maio de 2002 até maio de 2014 abarcando governos do PSDB e PT. Por conta da natureza do Programa e suas necessidades, o volume financeiro dos convênios resulta em um montante considerável (mais ainda abaixo de muitos estados que se preocupam com investimento nesta política).


Este convênio, com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, saiu da execução da instituição em maio do ano de 2014 deixando uma dívida de R$ 167.997,29,que está sendo negociada por meio de um Termo de Ajuste de Contas por despesas contraídas para a garantia da vida dos usuários e beneficiários do Programa. 

Todas as atividades do PROVITA/RJ são orientadas e fiscalizadas pelo CONDEL – Conselho Deliberativo do Programa e todos os documentos de prestação de contas de TODOS os convênios institucionais estão em dia com os financiadores da instituição, sejam governamentais ou não.


Para a execução dos projetos, desde a sua fundação, o CDDH conta com a parceria financeira prioritária da cooperação internacional e de parceiros históricos. Com a crise europeia dos últimos anos e a priorização de
recursos destes parceiros para atendimento a outros países, a instituição passou a buscar recursos locais, concorrendo a editais, possibilidades de financiamento e apresentando os projetos a instituições privadas, fundações e empresas de economia mista. O financiamento da Petrobras, para a efetivação do projeto ArticulAção, voltado para jovens moradores de comunidades periféricas da cidade de Petrópolis, foi iniciado em fevereiro de 2014 e desde então, a organização recebeu apenas a primeira parcela do contrato, estando em constante acompanhamento pela equipe de monitoramento desta estatal. 


O CDDH-Petrópolis, para manutenção de seu título de Utilidade Pública Federal, mantém transparência de todos os seus repasses e gastos com projetos.


Leonardo Boff, assim como os outros membros da diretoria da Instituição, são voluntários e, no caso deste, sua contribuição mais valiosa é a dedicação de
seu tempo de modo militante em favor dos pobres e desfavorecidos atendidos pelo CDDH e por outras instituições e movimentos de Direitos Humanos, chamando atenção para este debate.


Salientamos a importância de esclarecer as notas que tentam criminalizar, sem provas, os movimentos sociais e que colocam em risco o trabalho social e político desenvolvido em favor dos excluídos. Infelizmente estas falas soltas, sem qualquer averiguação, objetivam provocar o enfraquecimento da luta por direitos humanos.


Carla de Carvalho / Rafael Coelho Rodrigues
Coordenação Executiva – CDDH-Petrópolis



sábado, 28 de março de 2015

JEJUM: UMA PRÁTICA EM DESUSO?

por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

                   
             
      Dizem que, enquanto um terço da humanidade passa fome, há pelo menos outro terço que come mais do que o necessário e sofre de obesidade.  E há outra expressiva quantidade de pessoas que vivem de dieta, fazendo regime para emagrecer, correndo atrás da última novidade para adquirir o corpinho das modelos que vê na televisão.  Sem falar no outro grupo de pessoas que adoece e morre de anorexia. Por outro lado, há o jejum, praticado por motivos religiosos, sobretudo, mas também éticos e políticos.
      Qual o sentido de jejum?  O dicionário nos ajuda com algumas definições: abstinência ou abstenção total ou parcial de alimentação em determinados dias, por penitência ou prescrição religiosa ou médica; privação ou abstenção de alguma coisa.
      Dentro de certas escolas filosóficas greco-romanas e fraternidades religiosas jejuar, como um aspecto de ascese, foi aproximado à convicção de que a humanidade tinha experimentado um estado primordial de perfeição que foi perdida por uma transgressão original. Por várias práticas ascéticas como jejuar, praticar a pobreza voluntária e a penitência, o indivíduo poderia restabelecer um estado onde a comunicação e a união com o divino foram tornadas possíveis novamente.
       Consequentemente, em várias tradições religiosas, um retorno a um estado primordial de inocência ou felicidade ativou várias práticas de ascese julgadas necessárias ou vantajosas, provocando tal retorno. Para tal se agrupa a suposição subjacente básica de que aquele jejum era de algum modo propício para iniciar ou manter contato com Deus. Em alguns grupos religiosos (por exemplo, Judaísmo, Cristianismo e Islã) jejuar gradualmente se tornou um modo de expressar devoção e adoração a um ser divino específico.
     Além da suposição subjacente básica de que jejuar é uma preparação essencial para revelação divina ou para algum tipo de comunhão com o transcendente ou o sobrenatural, muitas culturas acreditam que o jejum é um prelúdio em tempos importantes na vida de uma pessoa. Purifica ou prepara a pessoa (ou grupo) para maior receptividade em comunhão com o espiritual.
      Dentro da tradição judaica um só dia de jejum foi imposto pela lei de Moisés, o Yom Kippur, o Dia do Perdão (Lv. 16:29-34), mas foram acrescentados quatro dias adicionais depois do exílio babilônico (Zac. 8:19), a fim de fazer memória de desastres que tinham acontecido. As escrituras judaicas fixaram o jejum dentro do contexto da vigilância no serviço de Yahveh (por exemplo, Lv. 16:29ff.; Jz. 20:26), e foi considerado elemento importante como preliminar para profecia (por exemplo, Moisés jejuou quarenta dias no Sinai; Elias jejuou quarenta dias quando foi ao Horeb). 
    No entanto, a Bíblia também entende o jejum em outra chave de leitura: a prática da justiça e a solidariedade com os oprimidos.  O profeta Isaías, em seu capítulo 58, 3-10 diz:

    De que nos serve jejuar, se tu não vês,
  humilhar-nos, se não ficas sabendo?
  Ora, no dia do vosso jejum, sabeis fazer bom negócio
  e brutalizais todos os que por vós labutam.
  Jejuais, mas procurando contenda e disputa
  e golpeando maldosamente com o punho!
  Não jejuais como convém num dia
  em que quereis fazer ouvir no alto a vossa voz.
  Deve ser assim, o jejum que eu prefiro,
  o dia em que o homem se humilha?
  Trata-se por acaso de curvar a cabeça como um junco,
  de exibir na liteira saco e cinza?
  É para isto que tu proclamas um jejum,
  um dia favorável junto ao Senhor?
 O jejum que eu prefiro, acaso não é este:
  desatar os laços provenientes da maldade,
  desamarrar as correias do jugo,
  dar liberdade aos que estavam curvados,
  em suma, que despedaceis todos os jugos?
   Não é partilhar o teu pão com o faminto?
  E ainda: os pobres sem abrigo, tu os albergarás;
  se vires alguém nu, cobri-lo-ás:
  diante daquele que é a tua própria carne, não te recusarás.
 Então a tua luz despontará como a aurora,
  e o teu restabelecimento se realizará o bem depressa.
  Tua justiça caminhará diante de ti
  e a glória do Senhor será a tua retaguarda.
  Então tu clamarás e o Senhor responderá,
  tu chamarás e ele dirá: Aqui estou!
  Se eliminares de tua casa o jugo,
  o dedo acusador o , a palavra maléfica,
   se cederes ao faminto o teu próprio bocado,
  e se aliviares a garganta do humilhado,
  tua luz se levantará nas trevas,
  tua escuridão será como o meio-dia.

      Assim como o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, Jesus de Nazaré também relativiza o jejum formal (Mt. 6:16-6:18).  E justamente porque o primordial é a prática da caridade. Vários textos neo-testamentários o demonstram (cf. Mt 6, 16-18), ao mesmo tempo em que afirmam que o dar de comer a quem tem fome não somente é o centro da mensagem evangélica, mas é critério fundamental para a salvação (cf. Mt 25, 36 ss).
      Esta síntese cristã da prática ascética do jejum não desapareceu da espiritualidade cristã.  Pelo contrário; tornou-se a prática ascética favorita dos monges do deserto. Homens e mulheres viram isto como uma medida necessária para livrar a alma dos apegos mundanos. A própria tradição cristã fixou e desenvolveu gradualmente jejuns sazonais, ou seja, próprios a uma determinada época do ano litúrgico.
      Nos tempos que correm, onde o consumo é estimulado até o paroxismo, onde as ânsias viscerais e os frenesis possuidores se multiplicam, há vários jejuns que, se praticados, nos farão imenso bem.  E refiro-me aqui não somente ao jejum alimentar.  Mas ao jejum dos vícios, legais ou ilegais, quais sejam: o álcool, o fumo, a internet em quantidade desordenada e excessiva, o jogo, o consumo desenfreado.  E tantos, tantos outros.  Neste movimento de despojamento que o jejum dos impulsos vários que nossa ânsia consumista inventa e estimula, estaremos mais livres para receber e perceber as graças que Deus nos dá e as necessidades e dores que o irmão sofre.
      Que um jejum sensato e criativo não seja uma prática em desuso para nós.  Eis um saudável testemunho a dar neste início de milênio.

A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco. 
   
 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

      

quinta-feira, 26 de março de 2015

EUFEMISMO, A ARTE DE ENGANAR

Por Frei Betto


      Em seu livro Pernas pro ar (L&PM), Eduardo Galeano recorda que, na era vitoriana, era proibido mencionar calças na presença de uma jovem.

      Hoje em dia, diz ele, não cai bem utilizar certas expressões perante a opinião pública: “O capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado; imperialismo se chama globalização; suas vítimas se chamam países em via de desenvolvimento; oportunismo se chama pragmatismo; despedir sem indenização nem explicação se chama flexibilização laboral” etc.

      A lista é longa. Acrescento os inúmeros preconceitos que carregamos: negro é chamado de afrodescendente (embora ninguém nunca tenha dito que sou iberodescendente ou eurodescendente); ladrão é sonegador; lobista é consultor; fracasso é crise; especulação é derivativo; latifúndio é agronegócio; desmatamento é investimento rural; lavanderia de dinheiro escuso é paraíso fiscal; acumulação privada de riqueza é democracia; socialização de bens é ditadura; governar a favor da maioria é populismo; tortura é constrangimento ilegal; invasão é intervenção; peste é pandemia; magricela é anoréxica.  

      Nessa crise política e econômica que o Brasil atravessa, aumento de conta de luz virou realinhamento dos preços de energia; recessão, retração; sonegação, evasão fiscal; cortes e aumento de impostos, ajuste fiscal ou reversão de ações anticíclicas...

      Eufemismo é a arte de dizer uma coisa e acreditar que o público escuta ou lê outra. É um jeitinho de escamotear significados. De tentar encobrir verdades e realidades.

      Posso admitir, por exemplo, que pertenço à terceira idade, embora esteja na cara: sou velho. Velho e assumido, pois não tinjo e cabelo nem fiz plástica. Há quem prefira outros eufemismos: melhor idade, dign/idade etc.

      Ora, poderia dizer que sou seminovo! Como carros em revendedoras de veículos. Todos velhos! Mas o adjetivo seminovo os torna mais vendáveis. Ainda mais quando o comprador ignora que, hoje em dia, não é difícil adulterar o marcador de quilometragem. Como tantos velhos que se empenham, ridiculamente, em disfarçar a idade
.
      Em São Paulo há notório racionamento de água. O governador Alckmin não gosta da expressão, embora lhe tenha escapado da boca. Prefere “contenção hídrica”.

      No dia 20 de janeiro deste ano, uma segunda-feira, houve apagão em onze estados e no Distrito Federal. O Planalto veio a público tentar negar o óbvio – milhões de pessoas privadas de energia. Falou em “desligamento técnico”.

      Coitadas das palavras! Parafraseando Lampedusa, são distorcidas para que a realidade, escamoteada, permaneça como está. Não conseguem, contudo, escapar da luta de classes: pobre é ladrão, rico é corrupto. Pobre é puta, rica é modelo. Pobre é viciado, rico é dependente químico.

      Em suma, eufemismo é um truque semântico para tentar amenizar os fatos.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
     
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com



quarta-feira, 25 de março de 2015

AS PESSOAS NÃO PENSAM

Por Eduardo Hoornaert


Não é tarde demais para voltar às manifestações de domingo, 15 de março pp., que tomaram ruas e avenidas das grandes cidades do Brasil. Poderíamos imaginar uma pesquisa de opinião com a seguinte pergunta: ‘você foi à rua porque pensou que devia ir ou porque sentiu vontade de ir?’. Penso que muitos teriam dificuldade de entender o sentido da pergunta, o que confirma o seguinte: a grande maioria foi à rua, impulsionada por sentimento, não por pensamento. Simplesmente acompanhou a multidão. Ainda bem que Fernando Henrique Cardoso disse que não era o momento de pensar em impeachment de Dilma, senão mais pessoas teriam gritado: ‘Fora Dilma!’. Nesse momento, o ex-presidente fez jus à sua fama de intelectual, ou seja, de uma pessoa que pensa.

Trago aqui outro indício alarmante em torno dessa questão do pensamento. Sem alarde, a TV Globo divulgou na semana passada os resultados de uma pesquisa acerca das instituições mais respeitadas do Brasil. A imprensa (leia: os grandes meios de comunicação) saiu em primeiro lugar, seguida pelas ‘redes sociais’. Em terceiro lugar veio a igreja católica, seguida pelo exército. Suponho que a pesquisa tenha sido tecnicamente bem feita e, nesse caso, o resultado é, mais uma vez, inquietante. O público em geral não sabe nem quer saber como funcionam os grandes meios de comunicação. Simplesmente liga a TV para assistir à novela ou ao Jornal do Brasil.

Quanto às universidades, o quadro não é menos desolador. Percebe-se uma falta de interesse em formar pessoas que pensam, embora a escola exista para ensinar a pensar. Importante, hoje, é formar técnicos e funcionários a ser ulteriormente engolidos por poderosos sistemas burocráticos em troca de um salário. Muitos desses funcionários não se dão ao trabalho de pensar de que modo funcionam as instituições que eles mesmos sustentam com seu trabalho. Basta receber o dinheiro.

Concordo plenamente com a análise feita por Leonardo Boff, quando afirma que há na sociedade um sentimento de ódio irrefletido que, aparentemente, se dirige contra Lula, Dilma e o PT, mas que na realidade expressa o desconforto de pessoas bem situadas que hoje se encontram com pessoas que entram em aviões e shoppings de bermuda, dirigem seus próprios carros e aparecem na cena política.  Aqui também, pensar serviria para superar esse sentimento, mas as pessoas não costumam pensar.

Concordo igualmente com Ivone Gebara quando, por ocasião das matanças em Paris um mês atrás (Charlie Hebdo), lembra o tema da ‘banalidade do mal’, trabalhado por Hannah Arendt em seu livro ‘Eichmann em Jerusalém’. Nesse livro, a autora mostra que o grande ‘carrasco nazista’ não era um monstro, mas uma pessoa de bom trato, polido e educado, enfim, uma pessoa comum. Ele simplesmente não pensava, agia como eficiente executivo dentro de uma complicada engrenagem burocrática que tinha como finalidade matar pessoas. Bastava não pensar para mandar milhões de pessoas para o crematório por meio de expedientes burocráticos. Quando o ‘não pensar’ chega a tais dimensões, ficamos perplexos. Mas, o que fazer com nosso ‘não pensar’ do dia-a-dia?

Como posso estimular hoje a minha capacidade de pensar? Informações não me faltam, mas será que são confiáveis? A notícia do dia que aparece no meu Smartphone é confiável? Por que não largar, de vez em quando, esse Smartphone e ler um livro? Há pessoas em meu redor com quem posso falar sem logo ouvir reações como: ‘você é PT, já sei o que você pensa’? Essa reação significa que é melhor não pensar e seguir o que diz a ‘opinião pública’, ou seja, o que ‘todos dizem’.  Enfim, um bom ponto de partida consiste em reconhecer que eu também, vez por outra, falo sem pensar.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

Fonte: http://www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/


terça-feira, 24 de março de 2015

ROMERO, PROFETA PARA O MUNDO ATUAL


Por Marcelo Barros


           Na América Latina, de vez em quando, nas ruas das cidades, uma loja coloca na fachada um aviso: “Precisam-se de balconistas”. Um restaurante avisa: “Precisam-se de cozinheiros/as”. Seria bom que as Igrejas também colocassem nos seus templos: “Precisam-se urgentemente de profetas”. Essa necessidade não é só da América Latina. É de todo o mundo. Para despertar essa vocação e mostrar que profeta não é coisa do passado distante, é bom nos unirmos às comunidades cristãs populares do mundo inteiro e a todo o povo de El Salvador que, nessa 3ª feira,  celebram os 35 anos do martírio do arcebispo Oscar Romero.

Quando, em 1977, Romero foi nomeado arcebispo de San Salvador, capital do país, ele era um bispo tradicional, eclesiástico e, de certa forma, ingênuo.  Naquele tempo, o país estava mergulhado em uma guerra civil sangrenta já há 40 anos. Um governo militar impunha uma ordem social e econômica que massacrava os mais pobres. Qualquer pessoa que contestasse isso desaparecia.

Na missa de corpo presente de Romero, o bispo Artur Rivera y Damas afirmou: “Poucos dias depois da posse do arcebispo, assassinaram o padre Rutílio Grande, um de seus colaboradores mais próximos. O assassinato do padre, junto com um lavrador e um filho pequeno, provocou uma mudança na atitude de Dom Romero. A partir daí ele mudou.  Passou a assumir a defesa dos perseguidos e a denunciar o que estava ocorrendo no país ”. O teólogo Jon Sobriño, amigo do arcebispo,  declarou: “Em geral, com 59 anos, as pessoas se acomodam em suas estruturas mentais, principalmente quando se recebe cargo de poder, como é o caso de um bispo. Ao contrário, Romero foi capaz de mudar de pensamento e de modo de vida. Mudou o modo de ser bispo”. E pouco dias depois do martírio de Romero, Jon Sobriño escreveu: “Ainda que me pareça simples ou estranho dizer isso, Romero foi um homem que acreditou em Deus ”.

Hoje, essas palavras de Sobrino, ao insistir que um bispo católico acreditava em Deus, ganham mais força ainda. Sobrino reflete sobre  o que significa “crer em Deus” e que consequências essa fé teve para a vida de Romero. Ele teve a coragem de crer em Deus, desfazendo as imagens de Deus unidas ao poder e ao status-quo. Para Romero, crer em Deus significou assumir radicalmente a causa de Deus, a vontade divina. Na Universidade de Louvain, o arcebispo declarou: “Estar a favor da vida ou da morte. Não há neutralidade possível. Ou servimos à vida, ou somos cúmplices da morte de muitos seres humanos. Aqui se revela qual é a nossa fé: ou cremos no Deus da vida, ou usamos o nome de Deus, servindo aos algozes da morte”.

            Monsenhor Romero trabalhou por mudanças de estruturas no país. Dizia que a pobreza extrema dos lavradores tocava no coração de Deus. Quando se nega a dignidade do ser humano se nega a existência de Deus. Por causa disso, depois de várias ameaças de morte, na tarde de 24 de março de 1980, Romero foi assassinado, quando celebrava a missa em uma capela de hospital da cidade.
O assassinato do arcebispo chamou a atenção do mundo todo. Provocou uma tal consciência mundial sobre a realidade iníqua de El Salvador que, alguns anos depois, a ditadura caiu. Desde alguns anos, o povo consegue eleger governos democráticos e mudar, em alguns aspectos, a estrutura da sociedade. A realidade do país, no entanto, continua sendo de grande desigualdade social. Porém, ao menos, a violência do Estado foi superada e El Salvador vive um processo de integração no continente latino-americano e busca restabelecer a justiça para o povo empobrecido.

No mundo todo, a figura de Oscar Romero é símbolo de um profeta dos pobres e mártir da justiça. Na Catedral Anglicana de Londres, desde a celebração do novo milênio em 2000, Oscar Romero figura entre os mártires cristãos do século XX. Depois de 35 anos da morte de Romero, a Igreja Católica conta agora com o papa Francisco. Ele insiste que os bispos e padres recoloquem a Igreja no caminho da profecia e deem prioridade à solidariedade aos mais empobrecidos do mundo. Nessa linha, ele decidiu retomar o processo de canonização de Romero que estava, há anos,  parado. De certa forma, isso já não interessa tanto aos cristãos da América Latina, para os quais, desde sua morte, Romero é chamado de “São Romero das Américas”.

A América Latina assiste, hoje, a uma verdadeira ressurreição de muitos povos indígenas, há décadas considerados em extinção. Existe no mundo inteiro uma articulação de movimentos sociais que buscam um novo socialismo democrático para o século XXI. Atualmente, esses grupos se sentem ameaçados pelas pressões das elites sociais, políticas e econômicas que continuam impondo suas armas e o seu modo de organizar a sociedade contra os pobres e contra a natureza. Esses movimentos sociais e a própria Mãe Terra podem continuar proclamando as palavras que no domingo, véspera do seu martírio, Monsenhor Oscar Romero falou em sua homilia:


“Frequentemente tenho sido ameaçado. Como cristão, não creio em morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho” (…) Ofereço a Deus o meu sangue pela libertação e pela ressurreição do meu país. O martírio é uma graça que não creio merecer. Mas, se Deus aceitar o sacrifício de minha vida, que meu sangue seja semente de liberdade e o sinal de que, em breve, a esperança se tornará realidade. (…) Um bispo vai morrer, mas a Igreja de Deus que é o seu povo não morrerá nunca”.

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 23 de março de 2015

CONVERGÊNCIAS NAS NOVAS DEMOCRACIAS LATINO-AMERICANAS

Por Leonardo Boff



        Nos dias 12, 13 e 14 de março do corrente ano o Ministério da Cultura da Argentina organizou um fórum internacional sobre o tema Emancipação e Igualdade.

         Estes dois temas estão intimamente ligados, pois quanto maior foi a igualdade social tanto mais se pode realizar a autonomia de um país. Dada a profunda desigualdade que ainda vigora na América Latina, estas duas realidades não encontraram até o momento uma forma satisfatória de concretização. No Brasil se deram, nos últimos anos, passos importantes, pois passamos do terceiro país mais desigual do mundo para o 15º. Mesmo assim persiste um fosso considerável que estigmatiza nossa sociedade.

         A este forum acorreram pessoas de toda a América Latina e algumas celebridades mundiais como Noam Chomsky dos EEU, Gianni Vattimo, filósofo italiano, Ignacio Ramonet, do Le Monde Diplomatique, Jean-Luc Mélenchon. da França, Marisa Matias, de Portugual, representantes da nova agremiação política espanhola Podemos e um representante do novo governo da Grécia, conturbada por grave crise economico-social e por fim estava presente também o bispo Marcelo Sánchez Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano, representando o Papa Francisco de Roma.

         Da Arméria Latina estavam representantes do pensamento progressista e das novas democracias de base popular que vicejaram após as ditaduras militares. Do Brasil apontava Emir Sader e este que escreve estas linhas.

         Notável foi a presença de Gabriela Montaño Viaña, presidente do Senado no governo de Evo Morales Ayma. Testemunhou um fato inédito, de ressonância mundial: mais de 50% do Parlamento boliviano é constituído por mulheres. Seguramente darão um cunho singular à política, pois a forma de as mulheres exercerem o poder vai na linha do cuidado da coisa pública e de dar centralidade às questões que têm a ver com a vida em geral e com a vida cotidiana das pessoas que mais devem lutar para atingir níveis mínimos de participação e de dignidade social.

         Cada representante relatava a situação das novas democracias, cuja base social não repousa mais nas classes que detinham tradicionalmente o poder, o ter, o saber e a comunicação social, mas na vasta rede de movimentos sociais surgidos ao largo de toda a América Latina, seja como resistência aos regimes autoritários dos militares, seja como caminhada própria, levantando a bandeira de um novo tipo de democracia que vá além da mera representação e delegação e que busca formas mais avançadas de participação, a partir de baixo.

         A reunião se deu no belíssimo teatro Cervantes no qual cabiam cerca de 500 pessoas. Mas como a ocorrência, especialmente de jovens, ultrapassava os espaços de teatro, dois grandes telões exteriores permitiam que centenas pudessem acompanhar os debates internos. Estes jovens criaram uma atmosfera de entusiasmo, o que revelou forte conscientização política, no sentido de pensar o destino dos diferentes países face aos desafios que nos vêm da globalização da macroeconomia neoliberal, da rearticulação dos estratos mais conservadores da sociedade que procuram voltar ao poder que pelas eleições perderam e da necessária vontade política de projetar um projeto nacional de autonomia e de superação das desigualdades sociais, mas sempre aberto à nova fase da humanidade, a fase das comunicações globais.

         Dois temas expressaram a convergência dos participantes: a urgente solidariedade fraternal entre os vários povos e países. Sem essa solidariedade, vinda de baixo, dificilmente se poderá fazer frente às pressões do sistema econômico imperante, mais de cunho especulativo que produtivo e dos grupos interessados em manter o status quo que os beneficiava no passado e que retrocedeu, em parte, graças à presença de novos sujeitos históricos, vindos dos movimentos sociais que sustentam as novas democracias.

         O segundo tema recorrente era o da Pátria Grande, o sonho dos libertadores Bolivar e San Martin, entre outros. Para nós brasileiros esse ponto passa quase desapercebido. Mas para os demais latino-americanos trata-se de um projeto nunca abandonado e sempre de novo ressuscitado por diferentes líderes políticos de cariz libertário. É importante que o Brasil se associe a este projeto que ganhou expressão pela Tele Sur, pela ALBA e pelo Banco Sur. Finalmente pertencemos à essa totalidade latino-americana que deverá se interconectar mais e mais para darmos um passo rumo a um Continente que tem algo a contribuir no processo de planetização da humanidade. Somos, como Continente, o mais galardoado em termos ecológicos e portador de uma riqueza natural que faz falta à humanidade.

         Cabe enfatizar o sentido ético e humanístico dado às reflexões políticas. Como, juntos, podemos ser mais fraternos e solidários, especialmente, com aqueles países que mais lutam para superar a pobreza e a desigualdade e por fim mais cuidadores da riqueza natural e cultural que nos foi confiada.

Leonardo Boff escreveu Que Brasil queremos depois de 500 anos, Vozes 2000.



sábado, 21 de março de 2015

FRATERNIDADE, ÊXODO E SERVIÇO

por  Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



Um dos pontos que o Papa Francisco mais tem realçado é seu desejo de que a Igreja viva em permanente êxodo.  Que seja uma Igreja em saída.  Assim, o Pontífice chama todos os batizados a uma conversão missionária.

O mandato missionário recebido de Jesus Cristo (cf. Mt 28,19-20) pede uma Igreja em saída para testemunhar a alegria do Evangelho, da vida em Jesus Cristo.  Diz o Papa: “Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro”; e ainda: “Mais do que temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção”

Nesse sentido, o Papa exorta os cristãos a não ter medo de entrar na trama desigual e, por vezes, sufocante do tecido da realidade social e ali agir em meio à polis, engajando-se concretamente na política.  Em suas palavras: “Devemos implicar-nos na política, porque a política é uma das formas mais elevadas da caridade, visto que procura o bem comum.”

Inspirada pelas palavras do Papa, a CNBB lançou a Campanha da Fraternidade deste ano, que já vai avançada, tal como o tempo da Quaresma, que vive suas últimas semanas.  O tema da solidariedade e do serviço encontra-se no centro dessa mobilização nacional que procura voltar os olhos dos fiéis a uma ideia-chave que os motive a uma real conversão de vida no seguimento de Jesus Cristo e na vivência do Evangelho. O serviço realizado na transformação da realidade na direção de mais justiça e equidade está no centro dessa conversão que, neste momento, a Igreja pede a todos e todas.

Ao fundo dessa exortação está o antigo e sempre vivo binômio já tão presente na Escritura: fé  e justiça.  Esse binômio percorre toda a palavra de Deus presente nos textos sagrados, convidando incessantemente o povo a não se deixar seduzir pelos ídolos, nem tampouco ceder à tentação de tomar atitudes injustas que oprimem o outro, sobretudo os mais desprotegidos: o pobre, o órfão, a viúva, o estrangeiro. Toda fé em Deus que não se apoie em uma radical prática da justiça, segundo a Bíblia, é falsa e idolátrica.

A Doutrina Social da Igreja e o magistério eclesial na América Latina têm enfatizado essa prioridade muito concretamente nos últimos cinquenta anos. Assim, o documento de Aparecida, ao dirigir-se aos cristãos leigos convidando-os a serem discípulos e missionários, não os convoca apenas nem sobretudo para atividades intra-eclesiais, mas ao contrário, explicita claramente o desejo de vê-los comprometidos na ordem temporal. Destacando o papel que a Doutrina Social da Igreja tem desempenhado na formação dos leigos do continente para animar-lhes o testemunho e a ação solidária, Aparecida diz que os leigos do continente “se interessam cada vez mais por sua formação teológica como verdadeiros missionários da caridade, e se esforçam por transformar de maneira efetiva o mundo segundo Cristo.”

Registra-se portanto um duplo polo positivo da atuação dos leigos na história e no crescimento de sua Igreja: um, relativo à sua inserção intereclesial (“se interessam cada vez mais por sua formação teológica”); o outro diz respeito à sua atuação transformadora no mundo (“se esforçam por transformar de maneira efetiva o mundo, segundo Cristo”). Eclesialidade e cidadania serão, portanto, um binômio constitutivo da identidade, vocação e missão de todo cristão.

Embora muito seja dito sobre o papel dos cristãos dentro da estrutura eclesial (sua eclesialidade), há uma preocupação explícita em reforçar inequivocamente a índole secular da vocação laical (sua cidadania). Cremos mesmo poder dizer que esta segunda tendência é a que vai predominar de forma explícita nestes cinquenta anos posteriores ao Concílio Vaticano II. A partir deste evento de tanta importância no século XX, os cristãos serão convocados explicitamente a formar-se para interferir efetivamente na vida pública, mais concretamente na formação dos consensos necessários e na oposição contra a injustiça.

Esse é o caminho que segue o texto base da Campanha da Fraternidade deste ano de 2015.  Ao escolher como lema a frase de Jesus de Nazaré, “Eu vim para servir”, utilizando ao mesmo tempo uma imagem do Papa Francisco durante a cerimônia da Semana Santa chamada lava-pés, a Igreja do Brasil põe-se a caminho de Jerusalém, a fim de celebrar a Páscoa de olhos e ouvidos bem abertos para a realidade que a circunda.

E essa realidade é marcada pela injustiça, pela opressão, pela violência e pelos conflitos.  E, por isso mesmo, chama à solidariedade e ao serviço gratuito, humilde e desinteressado.  As expressões usadas pelo Papa ao dirigir-se aos católicos, instigando-os a terem “cheiro de ovelha”, a “promoverem agitação”, a transformarem a Igreja em um “hospital de campanha” dão bem a nota deste movimento que ele espera de uma Igreja que seria suicida se permanecesse imóvel enquanto a realidade grita ao seu redor.

Se Jesus, com seu Evangelho, deslocou o eixo central da religião do templo para o ser humano, a Igreja não pode fazer diferente. Seu lugar é em meio ao mundo, à sociedade, dialogando e interagindo com os problemas que afligem as pessoas que uma comum filiação ao mesmo Pai fez irmãos. 

Fraternidade entre a Igreja e a Sociedade é, portanto, o caminho da conversão para esta Quaresma.  A alienação é incompatível com a fé e com o seguimento de Jesus.  Só a solidariedade e o serviço são salvadores, no sentido de que nos fazem cada vez mais humanos e, portanto, cada vez mais de acordo ao coração de Deus.

A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão"(Edusc) 
 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 19 de março de 2015

TERESA, UM CASO DE AMOR


Por Frei Betto


      A 28 de março comemoram-se 500 anos do nascimento da espanhola Teresa de Ahumada, mais conhecida como Teresa de Jesus ou Teresa de Ávila, mística e doutora da Igreja Católica.

      Teresa salvou minha vocação religiosa. Eu não completaria neste ano cinco décadas de pertença à Ordem Dominicana – que em 2016 celebrará 800 anos de fundação – se não fossem os livros de Teresa: “Vida” (autobiografia), “Caminho da perfeição”, “Castelo interior”, “Conceitos de amor”, “Exclamações”, e suas cartas e poemas.

      Em 1965, deixei a militância estudantil (no ano anterior havia sofrido minha primeira prisão sob a ditadura, no Rio), a faculdade de jornalismo, e ingressei no noviciado dominicano, em Minas.

      Três meses depois, sofri profunda crise de fé. Decidi deixar o convento. Frei Martinho Penido Burnier, meu diretor espiritual, sugeriu-me paciência. Introduziu-me na leitura de Teresa. Foi uma paixão à primeira vista.

      Em sete meses de “noite escura”, ela operou em mim o que caracteriza sua mística: deslocou Deus das abóbadas celestiais, dos conceitos catequéticos, para o íntimo do coração. Na boca da alma, provei o sabor do Transcendente.
      Bernini a esculpiu, flechada pelo anjo, em expressão de indescritível orgasmo, na imagem exposta na igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma. Isto é Teresa: Deus como caso de amor. Não o deus dos castigos eternos, das culpas irremediáveis, do moralismo farisaico. Deus como paixão incontida. Tanto ansiava por ele, que ousava repetir: “Morro por não morrer.”

      Teresa foi uma feminista avant la lettre, numa época em que, na Europa, mulheres eram relegadas ao analfabetismo e, as místicas, atiradas à fogueira da Inquisição como bruxas. Leitora compulsiva, reformou a Ordem das carmelitas, indignada com os conventos transformados em depósitos de mulheres cujos maridos vinham explorar as riquezas do Novo Mundo.

      Teresa rompe com o Carmelo convencional, e também com a mediação do clero entre a pessoa e Deus. Peregrina incansável, funda comunidades de mulheres vocacionadas à exclusividade do amor divino.

      O representante do papa na Espanha, indignado, a acusa de “mulher irrequieta e andarilha, desobediente contumaz, que a título de devoção inventa má doutrina, andando fora da clausura, contra a ordem do Concílio de Trento e dos bispos, ensinando como mestra, à revelia do preceito de São Paulo de que as mulheres não devem ensinar.”

      Salvou-a da condenação como herética e maluca a intervenção de seus confessores e teólogos, que se tornaram seus discípulos. Em 1970, o papa Paulo VI concedeu-lhe o título de Doutora da Igreja.

      Seu principal discípulo e cooperador não foi uma mulher, e sim um homem, João da Cruz, patrono dos poetas espanhóis. A dupla reformou a vida carmelita e introduziu entre os católicos o saudável exercício da meditação – embora esta palavra não apareça em seus escritos e a Igreja Católica, ainda hoje, nutra injustificável preconceito em relação à sua prática, o que arrefece, entre os fiéis, a contemplação.

      Com exceção de Francisco de Assis, nenhum outro santo atrai tanto a atenção de artistas, intelectuais e psicoterapeutas quanto Teresa. Nela se realizou, em plenitude, a promessa de Jesus: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos a nossa morada” (João 14, 23).

      Teresa transvivenciou aos 67 anos, em 1582. Suas obras completas, encontráveis em qualquer livraria católica, nos ensinam a beber do próprio poço.

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros. 


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terça-feira, 17 de março de 2015

A LAICIDADE E O SAGRADO

por Marcelo Barros


De acordo com a Constituição, o Brasil é um país laical, isso é, não tem nenhuma religião oficial. Respeita a diversidade de crenças e defende a liberdade de todos os cultos. Reconhece e garante os direitos de todos os cidadãos, religiosos ou não, brasileiros e estrangeiros que vivam ou estejam entre nós, unidos pelo laço comum de sermos cidadãos da mesma família humana e membros da comunidade dos seres vivos que habitam o planeta Terra. No entanto, até as pedras sabem que, ainda no Brasil de hoje, a religião continua a ter um poder imenso sobre os destinos da sociedade e, uma vez ou outra, é usada para fins políticos e interesses individuais ou grupais que nada têm a ver com o projeto da fé. 

Nesses dias, está novamente em discussão, um projeto de acordo entre a Igreja Católica, representada pelo Vaticano e o Estado Brasileiro. Em tempos não tão remotos, uma Concordata semelhante garantia alguns privilégios especiais para as instituições católicas no país. Ao mesmo tempo, sabe-se que alguns grupos visam tornar o Brasil um país de cultura “pentecostal”. Na Câmara, uma bancada de deputados se auto-intitula “evangélica”. Sem maiores preocupações éticas e em nome da fé, esses deputados vetam projetos que lhes parecem contrários ao modo como eles compreendem ao pé da letra alguns preceitos bíblicos, enquanto fazem questão de esquecer outros. E, ao mesmo tempo, como se fosse uma missão sagrada, defendem os interesses das empresas que financiaram suas campanhas ou de seus grupos ditos religiosos.  

A dificuldade de relacionar a laicidade dos Estados com as questões religiosas não existe somente no Brasil. Atualmente, em vários continentes, aparecem sob a forma de fortes tensões e violências. Em países como o Senegal e o Paquistão, muitas pessoas foram feridas e algumas mortas em conflitos inter-religiosos. Na Nigéria e em outros países africanos, dezenas de Igrejas cristãs, principalmente evangélicas, foram incendiadas e muitas pessoas foram assassinadas. Cristãos africanos pagaram um preço alto porque alguns jornais da Europa, considerada pelos muçulmanos fundamentalistas, como cristã, insultam Maomé e os princípios da fé islâmica. Da mesma forma, minorias islâmicas são discriminadas e perseguidas em alguns países da Europa e em algumas regiões da Índia. Na Irlanda ainda persistem conflitos culturais e políticos que se manifestam como divisão entre católicos e protestantes.

Na Europa ocidental, uma boa parte da sociedade política e cultural considera que as religiões estão moribundas ou mesmo acabadas. Por isso, sentem-se com o direito de insultar a fé das pessoas e usar o nome de Deus como motivo para chacota e caricaturas de cunho pornográfico e de baixo calão. E defendem esse modo de proceder como direito e liberdade de expressão. Em nome da laicidade, o governo francês proíbe que a mulher muçulmana use o véu islâmico nas ruas e ambientes públicos. No entanto, as freiras católicas viajam de trem ou avião, com o véu religioso e nenhuma foi acusada de desrespeitar a lei.

Arautos do Capitalismo veem nesses conflitos um choque de civilizações. Na verdade, é apenas um choque de cinismos e simplificações racistas. No Brasil, feriados religiosos ainda são impostos a todo país, mas contanto que eles sejam católicos. Em muitos lugares, para não perder o emprego, adventistas do sétimo dia são obrigados a trabalhar no sábado. E quase a cada dia, um templo de algum culto afro-brasileiro é vítima de violência e preconceito.

Ao celebrar nesses dias a Quaresma, as Igrejas mais antigas leem textos do evangelho como as acusações de Jesus contra os sacerdotes do templo que exploravam viúvas pobres e ensinavam que Deus precisa de sacrifícios para abençoar e proteger as pessoas. Jesus revelou que o mais sagrado de tudo é a vida. Deus mora no coração de todas as pessoas humanas e pede a cada um/uma de nós descobri-lo no outro, no respeito às outras culturas e religiões, como no cuidado com a natureza e na comunhão com todo ser vivo. 


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países