Por Marcelo Barros
Na América Latina, de vez em quando, nas ruas das cidades,
uma loja coloca na fachada um aviso: “Precisam-se de balconistas”. Um
restaurante avisa: “Precisam-se de cozinheiros/as”. Seria bom que as Igrejas
também colocassem nos seus templos: “Precisam-se urgentemente de profetas”.
Essa necessidade não é só da América Latina. É de todo o mundo. Para despertar
essa vocação e mostrar que profeta não é coisa do passado distante, é bom nos
unirmos às comunidades cristãs populares do mundo inteiro e a todo o povo de El
Salvador que, nessa 3ª feira, celebram
os 35 anos do martírio do arcebispo Oscar Romero.
Quando, em 1977, Romero foi nomeado arcebispo de San
Salvador, capital do país, ele era um bispo tradicional, eclesiástico e, de
certa forma, ingênuo. Naquele tempo, o
país estava mergulhado em uma guerra civil sangrenta já há 40 anos. Um governo
militar impunha uma ordem social e econômica que massacrava os mais pobres.
Qualquer pessoa que contestasse isso desaparecia.
Na missa de corpo presente de Romero, o bispo Artur Rivera y
Damas afirmou: “Poucos dias depois da posse do arcebispo, assassinaram o padre
Rutílio Grande, um de seus colaboradores mais próximos. O assassinato do padre,
junto com um lavrador e um filho pequeno, provocou uma mudança na atitude de Dom
Romero. A partir daí ele mudou. Passou a
assumir a defesa dos perseguidos e a denunciar o que estava ocorrendo no país ”.
O teólogo Jon Sobriño, amigo do arcebispo, declarou: “Em geral, com 59 anos, as pessoas
se acomodam em suas estruturas mentais, principalmente quando se recebe cargo
de poder, como é o caso de um bispo. Ao contrário, Romero foi capaz de mudar de
pensamento e de modo de vida. Mudou o modo de ser bispo”. E pouco dias depois
do martírio de Romero, Jon Sobriño escreveu: “Ainda que me pareça simples ou
estranho dizer isso, Romero foi um homem que acreditou em Deus ”.
Hoje, essas palavras de Sobrino, ao insistir que um bispo
católico acreditava em Deus, ganham mais força ainda. Sobrino reflete
sobre o que significa “crer em Deus” e
que consequências essa fé teve para a vida de Romero. Ele teve a coragem de
crer em Deus, desfazendo as imagens de Deus unidas ao poder e ao status-quo.
Para Romero, crer em Deus significou assumir radicalmente a causa de Deus, a
vontade divina. Na Universidade de Louvain, o arcebispo declarou: “Estar a favor
da vida ou da morte. Não há neutralidade possível. Ou servimos à vida, ou somos
cúmplices da morte de muitos seres humanos. Aqui se revela qual é a nossa fé:
ou cremos no Deus da vida, ou usamos o nome de Deus, servindo aos algozes da
morte”.
Monsenhor Romero trabalhou por
mudanças de estruturas no país. Dizia que a pobreza extrema dos lavradores
tocava no coração de Deus. Quando se nega a dignidade do ser humano se nega a
existência de Deus. Por causa disso, depois de várias ameaças de morte, na
tarde de 24 de março de 1980, Romero foi assassinado, quando celebrava a missa
em uma capela de hospital da cidade.
O assassinato do arcebispo chamou a atenção do mundo todo. Provocou uma
tal consciência mundial sobre a realidade iníqua de El Salvador que, alguns
anos depois, a ditadura caiu. Desde alguns anos, o povo consegue eleger
governos democráticos e mudar, em alguns aspectos, a estrutura da sociedade. A
realidade do país, no entanto, continua sendo de grande desigualdade social. Porém,
ao menos, a violência do Estado foi superada e El Salvador vive um processo de
integração no continente latino-americano e busca restabelecer a justiça para o
povo empobrecido.
No mundo todo, a figura de Oscar Romero é símbolo de um profeta dos
pobres e mártir da justiça. Na Catedral Anglicana de Londres, desde a
celebração do novo milênio em 2000, Oscar Romero figura entre os mártires
cristãos do século XX. Depois de 35 anos da morte de Romero, a Igreja Católica
conta agora com o papa Francisco. Ele insiste que os bispos e padres recoloquem
a Igreja no caminho da profecia e deem prioridade à solidariedade aos mais
empobrecidos do mundo. Nessa linha, ele decidiu retomar o processo de
canonização de Romero que estava, há anos,
parado. De certa forma, isso já não interessa tanto aos cristãos da
América Latina, para os quais, desde sua morte, Romero é chamado de “São Romero
das Américas”.
A América Latina assiste, hoje, a uma verdadeira
ressurreição de muitos povos indígenas, há décadas considerados em extinção. Existe
no mundo inteiro uma articulação de movimentos sociais que buscam um novo
socialismo democrático para o século XXI. Atualmente, esses grupos se sentem
ameaçados pelas pressões das elites sociais, políticas e econômicas que
continuam impondo suas armas e o seu modo de organizar a sociedade contra os
pobres e contra a natureza. Esses movimentos sociais e a própria Mãe Terra
podem continuar proclamando as palavras que no domingo, véspera do seu
martírio, Monsenhor Oscar Romero falou em sua homilia:
“Frequentemente tenho
sido ameaçado. Como cristão, não creio em morte sem ressurreição. Se me matam,
ressuscitarei no povo salvadorenho” (…) Ofereço a Deus o meu sangue pela
libertação e pela ressurreição do meu país. O martírio é uma graça que não
creio merecer. Mas, se Deus aceitar o sacrifício de minha vida, que meu sangue
seja semente de liberdade e o sinal de que, em breve, a esperança se tornará
realidade. (…) Um bispo vai morrer, mas a Igreja de Deus que é o seu povo não
morrerá nunca”.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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