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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

PARA ALÉM DAS NAÇÕES, CONSTRUIR A TERRA





por leonardo boff

Um anúncio-propaganda de um dos canais de televisão mostra um grupo multi-étnico cantando: “Minha pátria é a Terra”. Aqui se revela um outro estado de consciência que deixou para trás a ideia convencional de pátria e de nação. Com efeito, vivemos ainda sob o signo das nações, cada qual se auto-afirmando, fechando ou abrindo suas fronteiras e lutando por sua identidade. Essa fase, ainda vigente, pertence a outra época da história e da consciência. A globalização não é apenas um fenômeno econômico. Representa um dado político, cultural, ético e espiritual: um novo passo na história do planeta Terra e da Humanidade.
Há alguns milhares de anos a espécie humana saiu de África de onde surgimos no processo evolutivo (somos todos africanos) e conquistou todo o espaço terrestre constituindo vilas, cidades e civilizções. Fernão de Magalhães fez em três anos (1519-1522) a circum-navegação da Terra e comprovou empiramente que ela é efetivamente redonda (não plana como uma obtusa visão ainda sustenta). Depois da expansão, chegou o tempo da concentração, do retorno do grande exílio. Todos os povos estão se encontrando num único lugar: no planeta Terra. Descobrimo-nos, para além das nacionalidades e das diferentes etnias, que formamos uma única espécie, a humana, ao lado de outras espécies da grande comunidade de vida.
À custa estamos ainda aprendendo a conviver acolhendo as diferenças sem deixar que se transformem em desigualdades. Respeitando a riqueza acumulada pelas nações e etnias, que revelam os vários modos de sermos humanos, somos confrontados com um desafio novo, nunca antes havido: a construção da Terra como Casa Comum. Cresce a consciência de que Terra e Humanidade possuem um destino comum. Xi Jin Ping, chefe de Estado da China, o formulou bem: temos o dever de construir a “Comunidade de Destino compartido para a Humanidade”.
O êxito desta construção nos trará um mundo de paz, um dos bens mais ansiados por todos. Viver em paz, oh que felicidade! Essa paz é que nos falta nos dias atuais. Ao contrário, vivemos em guerras regionais letais e uma guerra total movida contra Gaia, a Terra viva, nossa Mãe Terra atacada em todas as frentes, a ponto de ela mostrar sua indignação através do aquecimento global e da exaustão de seus bens e serviços, sem os quais a vida corre risco.
Nesse contexto vale revisitar um clássico do pensamento ocidental, um filósofo, Immanuel Kant (+1804), um dos primeiros a pensar uma República Mundial (Welrepublik), embora nunca tenha saído de sua pequena cidade de Königsberg na Alemanha. Ela só se consolida se conseguir instaurar uma “paz perene”. Seu texto famoso de 1795 se chama exatamente “Para uma paz perene” (Zum ewigen Frieden).
A paz perene se sustenta, segundo ele, sobre duas pilastras: a cidadania universal e o respeito aos direitos humanos.
Esta cidadania se exerce primeiramente pela “hospitalidade geral”. Precisamente ela porque, diz ele, todos os humanos têm o direito de estar nela e visitar seus lugares e os povos que a habitam. A Terra pertence comunitariamente a todos.
Face aos pragmáticos da política, geralmente pouco sensíveis ao sentido ético nas relações sociais, enfatiza: ”A cidadania mundial não é uma visão de fantasia mas uma necessidade imposta pela paz duradoura”. Se queremos uma paz perene e não apenas uma trégua ou uma pacificação momentânea, devemos viver a hospitalidade e respeitar os direitos.
Outra pilastra são os direitos universais. Estes, numa bela expressão de Kant são “a menina-dos-olhos de Deus” ou “o mais sagrado que Deus colocou na terra”. O respeito deles faz nascer uma comunidade de paz e de segurança que põe um fim definitivo “ao infame beligerar”.
O império do direito e a difusão da cidadania planetária expressa pela hospitalidade devem criar uma cultura dos direitos, gerando de fato a “comunidade dos povos”. Esta comunidade dos povos, enfatiza Kant, pode crescer tanto em sua consciência, que a violação de um direito num lugar é sentida em todos os lugares, coisa que mais tarde repetirá por sua conta Ernesto Che Guevara.
Esta visão ético-política de Kant fundou um paradigma inédito de globalização e de paz. A paz resulta da vigência do direito e da cooperação juridicamente ordenada e institucionalizada entre todos os Estados e povos.
Diferente é a visão de outro teórico do Estado e da globalização, Thomas Hobbes (+1679). Para ele, a paz é um conceito negativo, significa a ausência da guerra e o equilíbrio da intimidação entre os estados e povos. Esta visão funda o paradigma da paz e da globalização fundado do poder do mais forte que se impõe aos demais. Ele predominou por séculos e hoje voltou poderosamente pelo bizarro presidente dos USA, Trump que ainda sonha com um só mundo e um só império, o norte-americano.
Os EUA decidiram combater o terrorismo com o terrorismo de Estado. É a volta ameaçadora do Estado-Leviatã, inimigo figadal de qualquer estratégia de paz. Nesta lógica não ha futuro para a paz nem para a humanidade.
Hoje somos confrontados com este cenário: se forem ativados os arsenais de armas nucleares pela insanidade de um governante ou pela Inteligência Artificial Autônoma, poderá ser o fim de nossa espécie. Et tunc erat finis. Teremos tempo e sabedoria suficientes para mudar a lógica do sistema implantado há séculos que ama mais a acumulação de bens materiais do que a vida? Isso dependerá de nós.
Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu: Cuidar da Terra e proteger a vida:como escapar do fim do mundo, Record 2010.


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

ESCOLA COMPARTIDA





Frei Betto

         Eis aqui um exemplo de Escola Compartida, democrática, oposta à proposta de Escola sem Partido.

         Confirmada a vitória de Bolsonaro em 29 de outubro de 2018, estudantes de Porto Alegre, alunos de uma escola pública (Aplicação) e três particulares (Marista Rosário, Bom Conselho e Santa Inês) promoveram manifestações contrárias ao eleito. Exibiram faixas com as cores LGBT+ e bradaram: “Seremos resistência!”

         No Marista, outro grupo revidou vestido de verde e amarelo, empunhando a bandeira do Brasil e gritando “Mito” e “Fora PT”.

         Pais bolsonaristas protestaram junto à direção das escolas e exigiram a expulsão dos manifestantes insatisfeitos com o resultado da eleição. O Marista esclareceu que a manifestação “foi espontânea e voluntária” e defendeu a liberdade de expressão: “Salientamos a importância de diálogo para a discussão sobre a promoção e a defesa dos direitos, fortalecendo a nossa missão de formar cidadãos comprometidos com a promoção da vida e da cultura de paz.”

         O Aplicação emitiu comunicado “em defesa da liberdade de expressão, e considera o ambiente escolar e universitário como um lugar plural, de discussão e pensamento crítico.” Os outros dois colégios se posicionaram na mesma linha, ressaltando a isenção partidária.

         O protesto dos jovens fez surgir, na capital gaúcha, a Associação Mães & Pais pela Democracia, suprapartidária, que acaba de lançar o livro “Educação com amor e liberdade – ensaios sobre maternidade, paternidade e política” (Tomo Editorial), organizado por Aline Kerber, socióloga especialista em segurança pública.

         Os depoimentos reunidos são impactantes pelo modo como mães e pais, todos profissionais liberais com graduação universitária, declaram que anseiam ver seus filhos, quando adultos, livres de preconceitos e atitudes discriminatórias. Descrevem o que significa ser pai e mãe nessa conjuntura na qual ainda vigoram o racismo, o trabalho infantil, a perseguição ideológica e as tentativas de impor nas escolas o pensamento único contrário aos direitos humanos.

         O movimento Mães e Pais pela Democracia reage contra os pais que, à porta das escolas e pelas redes digitais, defendem o medo, a educação acrítica, e até mesmo absurda, quando abraçam a hipótese de que “a Terra é plana”, e consideram a educação escolar mera mercadoria pela qual pagam e, portanto, se sentem no direito de tratar os professores como seus empregados.

         Sublinha Diana Corso no prefácio, “como todos os ideais, a capacidade de ser democráticos se demonstra na prática: nossos filhos não se pautam pelo que dizemos, eles se formam a partir do que observam que realmente fazemos.”

         Na Escola Compartida ou Compartilhada, pais, professores, alunos e funcionários se empenham na formação, não apenas de profissionais qualificados para o mercado de trabalho, mas, sobretudo, de cidadãos dotados de consciência crítica e responsabilidade social.

         O Brasil precisa exorcizar, urgentemente, sua herança escravagista, que faz o patrão se julgar dono do funcionário; o doutor se considerar melhor que o analfabeto; o político mirar os eleitores como mera massa de manobra. Não há ninguém mais culto do que outro. Existem culturas distintas e socialmente complementares. O juiz é mais culto do que a cozinheira analfabeta? Faça-se a pergunta: quem pode prescindir da cultura do outro? É um engodo confundir escolaridade com cultura. Grandes atrocidades foram cometidas por pós-doutorados, como as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki.

         Sem base ética e liberdade de expressão, a educação se torna mero adestramento para fomentar, na expressão de La Boétie, a “servidão voluntária”, o que será agravado com essa nova medida do governo Bolsonaro de criar um canal para receber denúncias contra professores. Eis o Ministério da Deseducação.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.
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quarta-feira, 27 de novembro de 2019

MONSENHOR CASALDÁLIGA – PEDRO LIBERDADE



Por Roberto E. Zwetsch

Dom Pedro, pastor, poeta, profeta,
Pedro irmão, amigo, defensor
De gente humilde, esquecida,
Como abandonado era o sertão onde ele foi morar
Viver, evangelizar.

E então ser bispo, articulador, semente de resistência.
São Félix do Araguaia nunca mais foi a mesma
Depois que ele chegou!

A carta de uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio
E a marginalização (1971)
Inaugurou um grito, instituiu o que mais tarde
Passaria a se chamar “uma igreja com rosto amazônico”.

Mas foi como uma senha,
Causou furor nos inimigos da gente pequena,
Espantou os governantes, fruto de um golpe militar e
Civil, apoiado pela elite de sempre.

O golpe outro, aquele que durou 21 anos,
Que hoje se repete no novo golpe deste século 21
E já nasce torto, obscuro, violento,
Dominado pelo conluio de forças
Midiáticas, parlamentares, judiciais,
Que agem amparadas na lei higienicamente burlada,
Forçada, quebrada ao sabor dos interesses.

Mas não menos covarde como outrora.

Pedro entre nós resiste, chora, ora, preservando
A mesma verve, embora o corpo sofra e grite.

A lucidez o mantém vivo, alerta, solidário sempre
Com a Amazônia, os povos da floresta,
O papa Francisco, o último Sínodo,
Aquele da ecologia integral
Que uniu num só espírito
A luta da terra e a luta dos pobres.

Pedro sonhou com este conclave maior fazia muito
E o viveu na solidão do sertão do Mato Grosso
Cercado pelo carinho do seu povo e da comunidade.

Teria estado lá com seus irmãos e irmãs
Não fosse a debilidade vivida no limite,
Na fé e na ousadia teimosa de quem aprendeu
– a duras penas – a dizer: Não!

À injustiça, à desigualdade, à violência, ao crime hediondo,
Diante da desfaçatez, ele foi sempre enfático: Não!

E pagou um alto preço pela ousadia.

Em seu lugar, pregou a união dos diferentes,
A comunhão dos pequenos, a partilha do pouco,

A vivência da fé na coragem de ser,
A alegria da festa comunitária, a criançada
A correr feliz na beira do grande rio
Que ele conheceu como poucos em suas muitas
Travessias, atento às margens, aos pássaros,
Às tartarugas e aos peixes voadores.

Nunca se furtou à conversa com os canoeiros,
Os peões de fazenda, as moças das vilas,
Os jovens das escolas,
As avós famintas, os lavradores sem terra
Que produziam feijão, macaxeira, banana,
As frutas do quintal.

Essa gente amiga que sempre o abrigou
Nas casas de palha, de barro batido,
Onde havia rede e um café passado na hora.
Por isso mesmo, casa fraterna e mesa repartida.

Pedro teve por báculo o remo tapirapé,
Como anel, o tucum dos povos indígenas,
Por mitra, o chapéu de palha
E por calçado a sandália de borracha.
Escândalo episcopal, profecia encarnada no corpo,
Na mente e no espírito inquieto da
Insurreição do evangelho.

Viveu a colegialidade do ministério com
O clero, as religiosas e o povo das comunidades
Sempre à escuta da sabedoria popular.
Hoje vive sua própria páscoa, travessia,
Na entrega do corpo, da vida, da inteligência,
Da fé, dos sonhos que sonhou
de olhos abertos e espírito apaixonado.

Uma entrega que se mostra símbolo de utopia
E do compromisso maior
Na senda aberta pelo Senhor dos Passos,
O Cristo Jesus de Nazaré e de todos os povos.

Em comunhão com Pedro, seguiremos seu caminho
Na unidade do Espírito da Liberdade.

O Deus de toda paz o cubra de bênção, de amor
De misericórdia e de compaixão.
A alegria do evangelho vencerá,
Ah, vencerá mesmo, Pedro,
Ainda que a maldade pareça infinita.

Vem, Senhor Jesus!
No fim, permanecem a fé, a esperança e o amor.
Mas o maior é e sempre será o Amor!

Pelotas, novembro de 2019.
Roberto E. Zwetsch
Pastor luterano


terça-feira, 26 de novembro de 2019

“TEOLOGIAS DA LIBERTAÇÃO PARA OS NOSSOS DIAS”




Por Marcelo Barros

Esse é o título de meu novo livro que, nessa semana saiu pela editora Vozes e terá o seu lançamento nacional nessa quarta-feira, 27, na Igreja das Fronteiras, onde Dom Helder Camara viveu por 40 anos e ali faleceu. Mais do que título de livro, se trata de um programa que consiste em juntar as diversas teologias contextuais que, na América Latina têm sido desenvolvidas. Assim, a eco-teologia, as teologias índias, negras, feministas, gays e outras são chamadas a dialogar e a se unirem. Devem dar uma resposta de fé e de ação solidária nesse mundo que, cada vez mais, aumenta a criminosa desigualdade social e ameaça a continuidade da vida no planeta Terra. No prefácio desse novo livro, afirma Leonardo Boff: “Podemos resumir tudo nesta preocupação fundamental que se faz um denominador comum em todas as formas de Teologias da Libertação: ‘Como testemunhar o amor e a justiça de Deus presente nas bem-aventuranças de Jesus, em um mundo sem amor e sem justiça? Como fortalecer a esperança dos oprimidos e excluídos do mundo em meio a uma sociedade que, cada vez mais, se afunda em um caminho de desamor e de crueldade?’. Só o podemos e com isso tornamos a fé cristã crível e aceitável, se nos empenharmos no apoio aos próprios oprimidos em suas organizações, movimentos e redes sociais, reforçando seu protagonismo e sua força histórica de transformação”.

A realidade atual da América Latina é cada vez mais difícil. O império norte-americano tem encontrado novas formas de colonialismo. As expressões que, vindo da Europa ou da América do Norte, através dos colonizadores, o Colonialismo tomou ainda precisam ser descontruídas para dar lugar a uma teologia e espiritualidade não ocidental e decolonial.

Na Igreja Católica, o papa Francisco propõe uma Igreja em saída,  a partir da comunhão e da solidariedade com os empobrecidos e excluídos da sociedade dominante. Até hoje, esse modo de interpretar a fé não é plenamente aceito por muitos bispos, padres e fieis que insistem em uma religião cultual e ligada ao poder. O recente sínodo dos bispos católicos sobre a Amazônia defendeu a Ecologia Integral como meta da missão eclesial. Pediu aos missionários e missionárias que valorizem as tradições culturais e religiosas dos povos originários. Mesmo para quem se coloca a favor dessas novas propostas, esse caminho não se fará espontaneamente, ou de forma experimental. É preciso o aprofundamento de novas teologias da libertação para os nossos dias. Desde o começo desse século, tem havido um diálogo fecundo entre as Teologias da Libertação e as teologias do Pluralismo cultural e religioso. As novas teologias da libertação são pluralistas e decoloniais.

Algumas intuições da primeira Teologia da Libertação nos anos 70 são sempre atuais e necessárias. No entanto, há muitos desafios novos e a própria compreensão do pobre, hoje, se desdobra não somente no oprimido social, mas em categorias de raça (negro, indígena, etc) e em relações de gênero. A partir de uma intuição de Leonardo Boff, o próprio Sínodo da Amazônia, que colocou a Igreja à escuta do grito do pobre, pediu que se unisse esse grito ao clamor da Terra que está invadida, saqueada e ferida pelo mesmo sistema capitalista que oprime os pobres e mata a vida.

Desde os seus inícios, a Teologia da Libertação sempre insistiu na prioridade da espiritualidade. A inserção junto aos oprimidos do mundo é caminho de intimidade com o Deus de Jesus. Por isso, essas novas teologias da libertação para os nossos dias conferem realce especial à espiritualidade e à mística, presentes no meio do povo. Não qualquer espiritualidade e mística, mas aquela espiritualidade dos olhos abertos sobre as feridas da realidade dos sofredores e das mãos operosas para saná-las. As novas teologias pluralistas da libertação  desenvolvem uma mística profunda como intimidade do amor a Deus, que se expressa por motivações e convicções-força que dão sentido e rumo à vida.

Nesse contexto atual, temos de ter coragem de enfrentar questões novas, como o desafio das redes sociais, a radicalização do neoliberalismo, o fenômeno da ascensão da direita em nível mundial e nacional. As novas teologias da libertação não podem se eximir de tratar as formas diversas de convivência afetiva, além da matrimonial, as importantes contribuições do Oriente para a humanidade e mesmo o significado espiritual do Tantra. Não se trata de aceitar tudo isso como uma miscelânea de crenças e propostas e sim de verificar cada uma à luz do evangelho de Jesus que veio não para nos entregar doutrinas, mas para nos ensinar a viver os valores do Reino: o amor incondicional, a compaixão, a solidariedade e a ternura.

As novas teologias da libertação para os nossos dias podem nos entusiasmar e convocar à com-paixão pelos condenados e ofendidos. Elas nos animarão para, junto com outros, assumirmos um compromisso de libertação do ser humano todo e de todos os seres humanos, seja à luz da fé cristã, seja motivados/as pelo chamado do Espírito de Amor em todas as tradições espirituais da humanidade.


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br   



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

LIVRO: UMA PAIXÃO






            por Maria Clara Lucchetti Bingemer


      As centenas de feiras literárias organizadas todos os anos nas capitais, nas cidades do interior, no sertão, no semiárido e nas periferias nos dão uma boa oportunidade para prestar homenagem a esse grande, fiel e inseparável amigo, feito de papel, cola, grampo, linhas e letras que é o livro.  Essa moldura recheada de conteúdos os mais diversos: paixão, aventura, amor, dor, suspense e, sobretudo, a mais elevada forma de atividade do espírito humano: a atividade literária, a criação do texto, a inspiração poética.

     Lamentavelmente vamos ficando poucos os que ainda nos aproximamos do livro com paixão ansiosa. Trata-se de uma verdadeira aventura amorosa abrir um novo livro, virar suas páginas, tocar seu papel e sentir-lhe a consistência, cheirá-lo e finalmente mergulhar em seu conteúdo, absorvendo ávida e deliciosamente as palavras mágicas que nos fazem viajar, sofrer, chorar, rir, amar, refletir, rezar...
     As novas tecnologias entraram com força em nossas vidas, atraindo-nos e conquistando-nos por inteiro com sua rapidez, eficiência e imediatez.  O clique de um botão envia pela internet a antes carta perfumada e laboriosamente escrita, que passava pelas etapas do selo, do correio, do carteiro.  O telefone celular agora não se limita a receber e enviar chamadas telefônicas, mas envia e recebe mensagens eletrônicas, toca música, apresenta os mais variados jogos.  A rede faz chegar do outro lado do mundo livros inteiros em questão de minutos e mesmo segundos.  E disponibiliza bibliotecas, periódicos e artigos onde se pode, sem sair da frente da tela do computador, fazer o que antes se fazia das páginas impressas do livro.

     Há ainda a televisão, que a cada dia apresenta capítulos de novela e sessões de “reality shows”. Breve será interativa e poderemos “conversar” com ela e através dela, tal como já fazemos através da internet no computador.

    E, no entanto...será que se trata da mesma coisa?  Será idêntica a experiência que temos e vivemos diante de um computador ou de uma televisão e aquela que desafia todas as nossas energias e faculdades mentais diante das páginas de um livro novo, recém aberto, ou de um livro antigo e tão amado que se tornou amigo de infância e que não cansamos de revisitar e reler?

     Não há dúvida que as novas tecnologias revolucionaram para melhor nossas vidas e nos trouxeram contribuições inestimáveis em termos de possibilidades de aceder mais veloz e diligentemente a toda e qualquer informação que desejamos. Porém, é inegável que essas mesmas tecnologias podem criar em nós uma espécie de dependência, de vício, que funciona como uma droga que nos impede de estar abertos e disponíveis a outras coisas. É assim que as novas gerações podem passar horas brincando em um computador, em salas de "chat" na internet em conversas que muitas vezes não são tão produtivas.  Ou não perder um capítulo de novelas e “reality shows” que vão encurtando e atrofiando cada vez mais sua potencialidade criativa, não estimulada por contribuições sempre menores e menos significativas.

     Enquanto a leitura do livro nos desafia, nos exige e nos ajuda a fazer novas interpretações e sínteses que vão nos permitir viver as situações vitais com maior preparação e um quadro de referências mais ricas, muitas das novas tecnologias, sobretudo se utilizadas com excesso e falta de discernimento, podem instaurar uma comunicação veloz, sim, mas sem muita consistência. A prova disso é o tamanho dos poucos textos que acompanham a louca dança das imagens na internet: são cada vez mais curtos, escritos em estilo menos elaborado, cheios de erros de português ou eivados de uma gíria própria que exclui as gerações nela não iniciadas.

     A leitura exige tempo, calma e investimento.  Ler um grande texto, uma bela poesia, um denso ensaio pede atenção, concentração, reflexão.  Parece ser coisa que não se está mais disposto a exercitar nos tempos que correm.  Rezar diante de uma passagem bíblica, de um salmo, ou de um poema religioso pede que toda a pessoa - corpo e espírito - esteja voltada para as letras que na escritura desenham paciente e paulatinamente o rosto do divino buscado ansiosa e amorosamente.

      As feiras literárias conseguem trazer-nos de volta um pouco da velha paixão e respeito que merecem esses tão fiéis e adoráveis amigos que são os livros. Quem sabe, também e não menos, conseguem nos devolver algo do sentimento tão profundamente humano que vê e sente a leitura como um ato que tem algo de profundo e de sagrado?
 Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc), entre outros livros

Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>



quinta-feira, 21 de novembro de 2019

LIBERDADE E JUSTIÇA SOCIAL




Frei Betto

        Na década de 1980, visitei com frequência países socialistas. As viagens decorreram de convites dos governos daqueles países, interessados no diálogo entre Estado e Igreja. Acreditavam que a Teologia da Libertação poderia contribuir nesse sentido.

        Do que observei concluí que socialismo e capitalismo não lograram vencer a dicotomia entre justiça e liberdade. Ao socializar o acesso a bens materiais básicos e direitos elementares (alimentação, saúde, educação, trabalho, moradia e lazer), o socialismo implantara um sistema mais justo que o capitalismo.

        Ainda que incapaz de evitar a desigualdade social e, portanto, estruturas injustas, o capitalismo instaurou, aparentemente, liberdades – de expressão, reunião, locomoção, crença etc. – que não se viam nos países socialistas.

        Residiria o ideal um sistema capaz de reunir a justiça social predominante no socialismo com a liberdade individual vigente no capitalismo? Ora, a dicotomia é inerente ao capitalismo. A liberdade que nele predomina não condiz com os princípios de justiça. Seus pressupostos paradigmáticos – competitividade, livre iniciativa, hegemonia do mercado – são antagônicos aos princípios socialistas (e evangélicos) de solidariedade, partilha, defesa dos direitos dos pobres e da soberania da vida sobre os interesses do capital.

        No capitalismo, a apropriação individual, familiar e/ou corporativa da riqueza é direito protegido por lei. E a aritmética ensina que, quando um se apropria em demasia, muitos são desapropriados. A opulência de poucos decorre da carência de muitos. A história da riqueza no capitalismo é uma sequência de guerras, saques, roubos, invasões, anexações, especulações etc.

        Hoje, a riqueza da maioria das nações desenvolvidas decorre da pobreza dos países ditos emergentes. Ainda agora os parâmetros que regem a OMC são claramente favoráveis às nações metropolitanas e desfavoráveis aos países exportadores de matérias-primas e mão-de-obra barata.

        Um país capitalista que agisse segundo os princípios da justiça social cometeria suicídio sistêmico; deixaria de ser capitalista. Nos anos 1980, fui questionado, ao proferir palestra em Uppsala, por que o Brasil, com tanta fartura, não conseguia erradicar a miséria, como fizera a Suécia. Perguntei-lhes: “Quantas empresas brasileiras estão instaladas na Suécia?” Fez-se prolongado silêncio. Naquela época, nenhuma empresa brasileira operava naquele país. Em seguida, indaguei: “Sabem quantas empresas suecas estão presentes no Brasil?” Todos sabiam que havia marcas suecas em quase toda a América Latina, como Volvo, Scania, Ericsson e a SKF, mas não precisamente quantas no Brasil. “Vinte e seis”, esclareci. (Hoje são mais de 100). Como falar em justiça quando um dos pratos da balança comercial é obviamente favorável ao país exportador em detrimento do importador?

        Se a injustiça social é inerente ao capitalismo, poderia alguém objetar: mas não é verdade que neste sistema o que falta em justiça sobra em liberdade? Nos países capitalistas não predominam o pluripartidarismo, a democracia, o sufrágio universal, e cidadãos não manifestam com liberdade suas críticas, crenças e opiniões? Não podem viajar livremente e até mesmo escolher viver em outro país, sem precisar imitar os refugiados mediterrâneos?

        De fato, nos países capitalistas a liberdade existe apenas para a minoria que dispõe de recursos. Para os demais, vigora a liberdade virtual. Como falar de liberdade de expressão de uma faxineira? É uma liberdade virtual, pois ela não dispõe de meios para exercitá-la.

        Por que os votos dessa gente jamais produzem mudanças estruturais? No capitalismo, devido à abundância de ofertas e à indução publicitária ao consumo supérfluo, qualquer pessoa que disponha de renda é livre para escolher, nas gôndolas dos supermercados, entre diferentes marcas de sabonetes ou sucos. Tente-se, porém, escolher um governo disposto a reduzir os privilégios dos ricos e ampliar os direitos dos mais pobres! Tente-se alterar o sacrossanto “direito” de propriedade (baseado na sonegação desse direito à maioria). E por que Europa e EUA fecham suas fronteiras aos imigrantes dos países pobres? Onde a liberdade de locomoção?

        Sem os pressupostos da justiça social, não se pode assegurar liberdade para todos.


Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
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terça-feira, 19 de novembro de 2019

UNIÃO E RESISTÊNCIA NEGRA




Por Marcelo Barros

No Brasil, essa semana é marcada pela memória do martírio do Zumbi dos Palmares no 20 de novembro de 1697 e pela comemoração dessa data que, em todo o país, se tornou “Dia da união e consciência negra”.  A comemoração anual da memória do Zumbi é importante em um Brasil que ainda mantém a herança de forte desigualdade social. Atualmente, o Brasil é o país com a segunda maior população negra do mundo (Só perde para a Nigéria). No entanto, essa população continua a ser majoritariamente pobre e explorada. No seu livro Escravidão, Laurentino Gomes afirma: “Negros e pardos representam 54% da população brasileira, mas sua participação entre os 10% mais pobres é muito maior de 78%. Na educação, enquanto 22% da população branca tem 12 anos de estudo ou mais, a taxa é de 9, 4% para a população negra. Em 2016, o índice de analfabetismo entre os negros era de 9, 9%, mais que o dobro do índice entre os brancos” . Isso mostra que, na realidade brasileira, ser negro é quase sinônimo de ser pobre e ter menos acesso à escolaridade e ás condições sociais de outros brasileiros.

O Brasil foi o último país da América Latina a abolir oficialmente a escravidão. No entanto, organismos da ONU reconhecem que, atualmente, existem no mundo milhões de pessoas em situação de escravidão. Em nosso país, há latifúndios no campo e fábricas nas periferias urbanas que exploram pessoas como se fossem escravas.

Para que, no decorrer da história, uma tragédia como a escravidão tenha se mantido durante tanto tempo, não bastaria a força de armas. A escravidão não se sustentaria se, além da estrutura econômica e da força das armas que a impunham, não houvesse uma cultura racista e discriminatória que a legitima. Infelizmente, até hoje, essa cultura ainda persiste em certos ambientes. Por isso, é importante lutarmos pela igualdade social e dignidade de todas as pessoas.

A unidade das raças e a igualdade entre os seres humanos supõe que cada cultura e cada povo tenha consciência de sua dignidade. Chama-se “consciência negra” o fato das pessoas afro-descendentes assumirem sua identidade cultural, conscientes do imenso valor de sua cultura, para contribuir com as outras na riqueza intercultural do Brasil.

Por isso, é preciso lutarmos para que, no Brasil, se mantenham ou sejam retomados  os programas que fomentam a igualdade de condições e a integração social de negros e brancos. Conforme a Constituição Brasileira, devem ser respeitadas e valorizadas as comunidades remanescentes de Quilombos. São grupos que, desde os tempos da escravidão, reúnem negros, seus aliados e descendentes, em uma comunidade com cultura e valores próprios. Eles devem ter direito à terra coletiva e merecem das autoridades públicas a proteção e o apoio necessários. Estas comunidades estão organizadas em quase todos os estados e somam mais de dois mil grupos e comunidades. Algumas delas mantêm elementos de idioma, de danças e costumes ancestrais que são de uma riqueza incalculável para todo o Brasil.    

Uma das mais profundas riquezas das culturas afro-descendentes é a espiritualidade viva e bela das comunidades negras. A Mãe África permanece viva e atuante na memória religiosa dos seus filhos e filhas. Para ser escravas nos diversos países da América, foram seqüestradas pessoas de diferentes áreas do continente africano. Apesar de todas as dificuldades e repressões, os afrodescendentes conseguiram manter as suas línguas, contar a seus filhos as histórias dos seus antepassados, guardar as canções da Mãe-África e reconstituir muitas expressões culturais e religiosas. Só podiam cultuar à noite, enquanto os brancos dormiam. Como objetos de culto, só possuíam seus corpos, suas vozes e os terreiros das senzalas, seus templos. Foram obrigados a adaptar antigos costumes da África às novas condições de clima, ao pouco tempo livre de que dispunham e à sua extrema pobreza. Fundiram costumes religiosos, adaptaram mitos e elaboraram oralmente uma explicação religiosa do mundo e da sua história. Esta teologia narrativa deu origem a religiões novas como o Candomblé, o Batuque, o Tambor de Minas, a Santeria cubana e o Vodu haitiano. Durante séculos, de geração em geração, se transmitiram ritos, cânticos e histórias ancestrais.

Infelizmente, por todo o Brasil, se espalham fenômenos de ataques e violências contra templos e cultos das religiões afrodescendentes. E o mais chocante é que essas expressões de ódio e intolerância são cometidas por cristãos que afirmam agir em nome de Jesus Cristo. É preciso deixar claro: Uma fé cristã  e uma Igreja, testemunha de que Deus é amor e inclusão, não pode deixar de respeitar e valorizar as outras religiões e tradições espirituais. Na história, as religiões afrodescendentes foram responsáveis pela resistência dos nossos irmãos e irmãs negras em meio a um sofrimento intenso e continuado. Por isso, apoiá-las e se solidarizar com elas é questão de justiça.

A base da fé cristã é que a Palavra divina se fez carne e se revelou no meio de nós através da pessoa de Jesus de Nazaré que assumiu toda a condição humana e todas as culturas com seus valores para revelar em tudo o que é humano a presença divina. Nós somos chamados a continuar este caminho de reverência amorosa e delicadeza no diálogo e na colaboração com as outras religiões e culturas.


 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br