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terça-feira, 31 de outubro de 2017

PARA UMA REFORMA PERMANENTE


Por Marcelo Barros

Nessa semana, o mundo inteiro e especialmente as Igrejas encerram as celebrações dos 500 anos da Reforma. Conforme a tradição, no dia 31 de outubro de 1517, o monge Martinho Lutero pregou nas portas da catedral de Wintemberg as suas 95 teses para reformar a Igreja e fazê-la voltar ao espírito do Evangelho. De fato, aquele momento foi o estopim que desencadeou o surgimento das igrejas luteranas e evangélicas. No entanto, o que se chamou de “reforma protestante” foi um movimento eclesial muito mais amplo e diversificado do que aquele, liderado por Lutero, Melanchton, Zwinglio, Catarina de Bora, Katherine Zell e outras mulheres que faziam parte do grupo dos reformadores. Atualmente, cristãos de várias Igrejas concordam que na história da Igreja do Ocidente, houve três grandes movimentos de reforma.

A primeira reforma ocorreu ainda nos inícios do segundo milênio. Nos séculos XII e XIII, esse movimento de reforma foi conduzido por pessoas como Francisco de Assis, Valdo de Lyon, Joaquim de Fiori, Catarina de Sena e o movimento das místicas (beguinas) que, no norte da Europa, se constituíam como comunidades livres e, em muitos casos, em tensão com a hierarquia católico-romana. De fato, quando Lutero, Calvino e os/as reformadores/as iniciaram o seu movimento, o combate ao mundanismo do clero, o apelo evangélico à simplicidade e a centralidade da Sagrada Escritura já estavam no coração de muitos cristãos. Tanto que o movimento da reforma coincidiu também na Igreja Católica com movimentos de espiritualidade como de Teresa de Ávila e João da Cruz e o Concílio de Trento não foi apenas convocado para combater os protestantes, mas para fazer uma reforma na estrutura e no caminho da Igreja Católica.

Não seria exagero afirmar que, atualmente, na maioria das Igrejas cristãs, vivemos um movimento espiritual que é como uma terceira reforma. Desde os seus inícios, o Ecumenismo sempre se afirmou como um movimento de renovação do Cristianismo. Só é possível pensar uma aproximação profunda das diversas confissões cristãs e um caminho de unidade entre elas, a partir de um esforço evangélico de renovação das mentalidades e das estruturas. E o que é novo, ao menos na América Latina é a convicção de que a renovação da Igreja só pode ter uma direção: tornar as nossas Igrejas mais aptas para cumprirem com fidelidade a sua missão no mundo. Tanto na Igreja Católica, na comunhão anglicana como nas Igrejas evangélicas e pentecostais, essa nova reforma tem um conteúdo social e político claro. Em um mundo cada vez mais excludente e desigual, não é possível para quem tem fé se conformar com as gritantes desigualdades sociais, com as injustiças sofridas pelas minorias raciais, étnicas e sexuais. Se existe Deus e se cremos que Jesus de Nazaré é seu enviado, só podemos testemunhar isso se, de todas as formas, trabalhamos para transformar esse mundo de acordo com o projeto divino da paz, justiça e defesa da criação.

Há 500 anos, Lutero atualizou um ditado medieval que afirmava: “A Igreja cristã tem por missão se renovar permanentemente”. As comunidades e fieis cristãos podem verificar como está o seu índice de fidelidade ao Evangelho e à proposta de Jesus por sua disponibilidade em se renovar tanto no âmbito interior de cada pessoa, como no plano da comunidade. O eixo fundamental dessa reforma permanente em nós e na Igreja é nossa abertura ao mundo e nossa sensibilidade para com os grandes problemas sociais do nosso país.

Há 50 anos, em Medellín, na Colômbia, a 2ª conferência geral dos bispos católico-romanos da América Latina lançaram um apelo que se dirige até hoje aos cristãos e cristãs de todas as Igrejas e retoma o grito da reforma de Lutero há 500 anos e o atualiza para nossa realidade: “Devemos dar às nossas Igrejas na América Latina o rosto de uma Igreja missionária e pascal (isso é, uma Igreja que sempre se renove e se abra ao futuro). Uma Igreja comprometida com a caminhada de libertação de toda a humanidade e a libertação de cada pessoa humana em todas as suas dimensões pessoais e suas potencialidades”.
                      (Documento 5 das Conclussões de Medellín, n. 15).

   





 Marcelo Barros é monge beneditino e teólogo. Autor de mais de 50 livros, é assessor de comunidades eclesiais de base e movimentos sociais. Atualmente é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT). Email:contato@marcelobarros.com

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

SAÚDE PÚBLICA E MORTE ANUNCIADA



 por Maria Clara Lucchetti Bingemer

      Aprende-se desde que se abre os olhos para a vida que a única certeza para os seres humanos é a morte.  No fundo, isso é o que nos diferencia de todos os outros seres da criação.  Todos morrem. Os seres vivos nascem, crescem e morrem.  O ser humano, porém, entre todos, é o único que sabe que vai morrer.  E por isso passa seu tempo e seus dias em busca de um sentido para esta vida que desejaria interminável e para sempre, mas que vai acabar, mais cedo ou mais tarde. 

            Por isso, a ciência pesquisa e se debruça incansavelmente sobre os vírus, germes e desordens corporais, buscando meios de cura de todas as doenças: as antigas e as novas. É grande o avanço feito, não só para a cura de enfermidades antes consideradas fatais, como também na prevenção de doenças.  Os aparelhos de última geração realizam exames profundos e acurados, que detectam doenças ainda no estágio bem inicial, aumentando as probabilidades de tratamento e cura.

            Infelizmente esses avanços da medicina não chegam a muitos, senão a todos os hospitais públicos brasileiros. Ou porque não dispõem de modernos e precisos aparelhos, ou porque os mesmos estão enguiçados.

            Isso transforma a vida dos doentes e suas famílias em um calvário de incertezas e sofrimento por não conseguirem sequer um diagnóstico  e não saberem o tratamento a ser seguido. A morte muitas vezes chega antes do que a técnica e a torna inútil.

            Assim aconteceu com pessoas de minha relação em um hospital público da região serrana fluminense. Omito os nomes por respeito a eles e a sua dor tão recente.   O doente era um homem de cinquenta e alguns anos, forte e aparentemente sempre saudável.  Trabalhava em oficina onde lidava muito com tinta, e o fazia sem a proteção de uma máscara.  

            Provavelmente a inspiração da tinta danificou seu pulmão.  Um dia sentiu-se muito mal e teve que ser internado. Mas os sintomas que o fizeram chegar à internação poderiam igualmente ser cardíacos.  O fato é que não se conseguia chegar ao diagnóstico e, portanto, ao tratamento.  Os dois aparelhos de ressonância magnética do hospital não funcionavam.  Havia requerimentos empilhados na mesa da prefeitura sem que o conserto fosse providenciado. O estado do doente piorava dia a dia, até que os médicos o sedaram e o entubaram, enquanto aguardavam  o momento de poderem fazer o exame. 

Ainda assim o estado dele piorou e decidiu-se que deveria ser transferido urgentemente para outro hospital da cidade.  Porém, já muito fragilizado não poderia ir em ambulância comum, era necessário uma UTI móvel.  Duas vieram, duas voltaram; os monitores de ambas estavam enguiçados. Sem recursos para buscar um atendimento particular, a família, os amigos e a comunidade eclesial faziam corrente de oração e perdiam horas nas filas de atendimento dos órgãos públicos. 

            Enquanto se buscava uma terceira ambulância que funcionasse, o paciente morreu.  Sua esposa e filhos, extremamente abalados pela brutalidade e celeridade do processo, atordoados, se perguntavam sobre o que afinal tinha causado a morte dele.  Não se sabia.  Com os aparelhos quebrados, os médicos não conseguiram precisar um diagnóstico. Havia apenas suspeitas.  Suspeita de tumor, de cardiopatia, de pneumonia.  E de suspeita em suspeita, sem que nada pudesse ser comprovado, a morte se antecipou e invalidou todos os esforços e expectativas. 

            A impotência diante da morte que poderia talvez ter sido evitada se houvesse o acesso ao tratamento adequado nos faz voltar às perplexidades que instigaram o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, nos anos 1970. Como pode os pobres não gozarem dos direitos mais elementares, entre eles o direito à vida? Como pode uma parcela significativa da humanidade ser ignorada como se não contasse, não fosse um sujeito e um cidadão? 

            Infelizmente, isso é o que ocorre em várias partes do mundo, inclusive em nosso país. Tantos decênios e mesmo séculos após a revolução industrial, em plena pós-modernidade, o pobre continua a ser o insignificante, a não pessoa, aquele que não tem direito a ter direitos. E as instâncias que têm por missão atendê-lo, servi-lo, garantir sua vida, sua saúde, seu bem-estar encontram-se em total estado de carência e vulnerabilidade. Sem aparelhos, sem ambulâncias adequadas, sem instrumental cirúrgico, para que serve um hospital?  Para ser um campo de concentração de agonizantes, que gemem e sofrem sem esperança de melhora? 

            A pobreza é algo contra a vida, é morte prematura e injusta, morte física e cultural, afirmou Gustavo Gutierrez, pai da Teologia da Libertação.  A suas palavras acrescenta o Pe. Peter Hans Kolvenbach, filólogo holandês, ex superior geral dos jesuítas: “A pobreza no mundo é um fracasso da criação”. Este fracasso não é espontâneo, mas fabricado.  Gerado pela injustiça, carcome a criação por dentro, atrasando a vida em plenitude que Deus deseja para todos e retardando o momento quando Deus será tudo em todos e não haverá mais pranto nem tristeza. A saúde pública no Brasil infelizmente é um exemplo sombrio desse atraso.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
 Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sábado, 28 de outubro de 2017

ADOECEMOS A TERRA E A TERRA NOS ADOECE


por Leonardo Boff

          De uma ou de outra forma, todos nos sentimos doentes física, psíquica e espiritualmente. Há muito sofrimento, desamparo, tristeza  e decepção que afetam grande parte da humanidade. Já o dissemos aqui: da recessão econômica  passamos à depressão psicológica. A causa principal deriva da intrínseca relação existente entre o ser humano e a Terra viva. Entre ambos vigora um envolvimento recíproco.
Nossa presença na Terra é agressiva, movemos uma guerra total à Gaia, atacando-a em todas as frentes. A consequência direta é que a Terra adoece. Ela o mostra pela febre (aquecimento global), que não é uma doença, mas aponta para uma doença: sua incapacidade de continuar nos oferecer seus bens e serviços naturais. A partir de 2 de setembro de 2017 ocorreu a Sobrecarga da Terra, vale dizer, as reservas da Terra chegaram ao fundo do poço. Entramos no vermelho. Para termos o necessário e, pior, para mantermos o consumo suntuário e o desperdício  dos países ricos, devemos arrancar à força seus “recursos” para atender as nossas demandas. Até quando a Terra aguentará? A consequência será que teremos menos água, menos nutrientes, menos safras e os demais itens indispensáveis para a vida.
Nós, que consoante a nova cosmologia, formamos uma grande unidade, uma verdadeira entidade única com a Terra, participamos da doença da Terra. Pela agressão aos ecossistemas e pelo consumismo, pela falta de cuidado da vida e da biodiversidade adoecemos a Terra.
Isaac Asimov, cientista russo, famoso por seus livros de divulgação científica, escreveu  um artigo a pedido da revista New York Times, (do dia 9 de outubro de 1982) por ocasião da celebração dos 25 anos do lançamento do Sputinik que inaugurou a era espacial, sobre o legado deste quarto de século espacial. O primeiro legado, disse ele, é a percepção de que, na perspectiva das naves espaciais, a Terra e a humanidade formam uma única entidade, vale dizer, um único ser, complexo, diverso, contraditório e dotado de grande dinamismo, chamado pelo conhecido cientista James Lovelock,  de Gaia. Somos aquela porção da Terra que sente, pensa,ama e cuida.
O segundo legado, consoante Asimov, é a irrupção da consciência planetária:a Terra é o grande objeto do pensamento e não mais as nações. Terra e Humanidade possuem um destino comum. O que se passa num, se passa também no outro.  Adoece a Terra, adoece juntamente o ser humano; adoece o ser humano, adoece também a Terra. Estamos unidos pelo bem e pelo mal.
Mas também ocorre o inverso: sempre que nos mostramos mais saudáveis, cuidando melhor de tudo, recuperando a vitalidade dos ecossistemas, melhorando nossos alimentos orgânicos, despoluindo o ar, preservando as águas e as florestas é sinal que nós estamos revitalizando a nossa Casa Comum.
Segundo Ilya Prigogine, cientista russo-belga, prêmio Nobel em química (1977), a Terra viva desenvolveu esturutras dissipativas, isto é, estruturas que dissipam a entropia (perda de energia). Elas metabolizam a desordem e o caos (dejetos) do meio ambiente de sorte que surgem novas ordens e estruturas  complexas que se auto-organizam, fugindo à entropia e  positivamente, produzindo sintropia (produzindo energia: Order out of Chaos, 1984).
Assim, por exemplo, os fótons do sol são para ele, inúteis, energia que escapa ao queimar hidrogênio do qual vive. Esses fótons que  são   desordem (rejeito), servem de alimento para a Terra, principalmente para as plantas  quando estas processam  a fotosíntese. Pela fotosíntese, as plantas, sob a luz solar, decompõem o dióxido de carbono, alimento para elas e liberam o oxigênio,  necessário para a vida animal e humana.
O que é desordem para um serve de ordem para outro. É através de um equilíbrio sutil entre ordem e  desordem (caos: Dupuy, Ordres et Désordres, 1982) que a vida se mantem (Ehrlich, O mecanismo da natureza, 1993).  A desordem força a criar novas formas de ordem, mais altas e complexas com menos dissipação de energia. A partir desta lógica, o universo caminha para formas cada vez mais complexas  de vida e assim para uma redução da entropia (desgaste de energia).
A nível humano e espiritual, se originam formas de relação e de vida nas quais predomina a sintropia (economia de energia) sobre a entropia (desgaste de energia). A solidariedade, o amor, a compaixão, o pensamento, a comunicação são energias fortíssimas com escasso nível de entropia e alto nível de sintropia. Nesta perspectiva temos pela frente não a morte térmica, mas a transfiguração do processo cosmogênico se revelando em ordens supremamente ordenadas, criativas e vitais.
Quanto mais nossas relações para com a natureza forem amigáveis e entre nós, cooperativas, mais a Terra se vitaliza. A Terra saudável nos faz também saudáveis. Curamo-nos conjuntamente..
Leonardo Boff é articulista do JB on line, ecoteólogo, filoósofo e escrevu Opção Terra: a solução da Terra não cai do céu, Vozes 2009.


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

SEJA FELIZ, TOME REMÉDIOS



Por Frei Betto

       A felicidade é um produto engarrafado que se adquire no supermercado da esquina? É o que sugere o neoliberalismo, criticado pelo clássico romance de Aldous Huxley, “Admirável mundo novo” (1932). A narrativa propõe construir uma sociedade saudável através da ingestão de medicamentos.

       Aos deprimidos se distribui um narcótico intitulado “soma”, de modo a superarem seus sofrimentos e alcançar a felicidade pelo controle de suas emoções. Assim, a sociedade não estaria ameaçada por gente como o atirador de Las Vegas.

        Huxley declarou mais tarde que a realidade havia confirmado muito de sua ficção. De fato, hoje a nossa subjetividade é controlada por medicamentos. São ingeridos  comprimidos para dormir, acordar, ir ao banheiro, abrir o apetite, estimular o cérebro, fazer funcionar melhor as glândulas, reduzir o colesterol, emagrecer, adquirir vitalidade, obter energia etc. O que explica encontrar uma farmácia em cada esquina e, quase sempre, repleta de consumidores.

       O neoliberalismo rechaça a nossa condição de seres pensantes e cidadãos. Seu paradigma se resume na sociedade consumista. A felicidade, adverte o sistema, consiste em comprar, comprar, comprar. Fora do mercado não há salvação. E dentro dele feliz é quem sabe empreender com sucesso, manter-se perenemente jovem, brilhar aos olhos alheios. A receita está prescrita nos livros de autoajuda que encabeçam a lista da biblioterapia.

       Se você não corresponde ao figurino neoliberal é porque sofre de algum transtorno. As doenças estão em moda. Respiramos a cultura da medicalização. Não nos perguntamos por que há tantas enfermidades e enfermos. Esta indagação não convém à indústria farmacêutica nem ao sistema cujo objetivo primordial é a apropriação privada da riqueza.

       Estão em moda a síndrome de pânico e o transtorno bipolar. Já em 1985, Freud havia diagnosticado a síndrome de pânico sob o nome de neurose de angústia. O transtorno bipolar era conhecido como psicose maníaco-depressiva. Muitas pessoas sofrem, de fato, dessas enfermidades, e precisam ser tratadas e medicadas. Há profissionais que se sentem afetados por elas devido à cultura excessivamente competitiva e à exigência de demonstrar altíssimos rendimentos no trabalho segundo os atléticos parâmetros do mercado.

        Em relação às crianças se constata o aumento do Transtorno por Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Ora, é preciso cuidado no diagnóstico. Hiperatividade e impulsividade são características da infância, às vezes rebaixadas à categoria de transtorno neurobiológico, de desordem do cérebro. Submeta seu filho a um diagnóstico precoce. É possível que alguma anomalia seja descoberta e medicamentos prescritos.

       Nos EUA, o neurologista Fred Baughman apresentou ao Congresso uma denúncia de fraude ao consumidor pelo falso diagnóstico de TDAH. Crianças sem qualquer problema de saúde foram diagnosticadas com fictícios desequilíbrios químicos cerebrais, e orientadas por médicos a ingerir medicamentos.

       Quando um suposto diagnóstico científico arvora-se em quantificar nosso grau de tristeza e frustração, de hiperatividade e alegria, é sinal de que não somos nós os doentes, e sim a sociedade que, submissa ao paradigma do mercado, pretende reduzir todos nós a meros objetos mecânicos, cujos funcionamentos podem ser decompostos em suas diferenças peças facilmente azeitadas por quilos de medicamentos.

       Há algo de profundamente errado com essa sociedade que tem as ruas permanentemente cortadas por ambulâncias e carros de polícia. Ela é que está doente, e não nós, os únicos com o poder de curá-la.

Frei Betto é autor, em parceria com Leonardo Boff e Mario Sérgio Cortella, de “Felicidade, foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros.
 Copyright 2017 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 


terça-feira, 24 de outubro de 2017

PARA UM FÓRUM PERMANENTE DOS POVOS



Por Marcelo Barros

Nessa semana, o mundo recorda o 24 de outubro de 1945, quando foi proclamada a Carta das Nações Unidas e fundada a ONU. Agora, 72 anos depois, boa parte da humanidade percebe que continua necessária uma organização internacional que regule as relações entre os Estados. Apesar de fragilizada e ter o seu Conselho de Segurança dominado pelas grandes potências e a serviço de suas causas, a ONU ainda reúne os governantes em função da paz e do bem de toda a humanidade. No entanto, cada vez fica mais clara a urgência de se constituir um organismo com perfil semelhante que reúna cidadãos da sociedade civil. A paz, a justiça entre os povos e o cuidado que a humanidade deve ter com a Terra são questões por demais importantes para serem deixadas apenas aos cuidados de técnicos e governantes. Um princípio jurídico dos tempos antigos afirmava: "Aquilo que diz respeito a todos deve ser tratado e decidido por todos".

Nessa direção, nas últimas décadas, foram tentadas várias tentativas. Em junho de 1992, no Rio de Janeiro, enquanto os chefes das nações faziam a Rio 92, os movimentos e organizações sociais se reuniam no Aterro do Flamengo. Foi um encontro de cidadãos/ãs do mundo inteiro. O plenário dessa movimentação se chamava "Cúpula dos Povos". A partir do levante dos índios do Sul do México (1994), em Chiapas aconteceram três encontros que se chamaram: "Encontros da humanidade pela Vida e contra o neoliberalismo". Ao mesmo tempo, na Itália e na França, grupos tentavam organizar uma "ONU dos povos". Em 2001 começou o processo dos fóruns sociais mundiais. Quase vinte anos depois, esse processo continua vivo e interpelador. O próximo Fórum Mundial ocorrerá em Salvador, BA, de 13 a 17 de março de 2018.

Esses eventos são oportunos e úteis. No entanto, precisamos de uma articulação que vá além das manifestações ocasionais para algo permanente e cotidiano. No Brasil atual, dezenas de movimentos e organizações sociais se juntam em coletivos como a "Frente Brasil Popular" e ainda a "Frente Povo sem Medo".

Dos povos andinos, se espalha pelo continente a proposta de que o Estado e todas as organizações sociais, políticas e econômicas devem tomar como prioridade o paradigma que os índios chamam: o Bem Viver. Corresponde ao que, no evangelho, Jesus propõe como "vida em plenitude", ou vida de qualidade (Cf. Jo 10, 10).

No Oriente Médio, alguns povos como os armênios e os curdos vivem sem direito a se sentirem plenos cidadãos da terra em que nasceram. São considerados como estrangeiros em seus próprios países de origem: a Turquia, a Síria e o Iraque. Abdulah Ocalan, líder dos curdos, atualmente está em uma prisão da Turquia e foi condenado à morte. Ele propõe como novo caminho político o Confederalismo Democrático. Trata-se de uma administração política não estatal. É uma democracia sem Estado. Ao constatar que os Estados se fundamentam sob o poder das armas e da coerção, ele propõe um caminho democrático que busque no diálogo o consenso coletivo que seja possível, a convivência com a diversidade étnica, cultural e religiosa. Esse caminho, diferente e até contrário ao caminho trilhado pela sociedade dominante só é possível a partir de uma forte educação comunitária, uma profunda fé na dignidade humana e na capacidade de juntos desenvolvermos as sementes de bondade que existem em cada ser humano.

É impressionante que esse tipo de proposta venha de um líder social e não de ministros religiosos. Esses, em geral continuam a pensar o seu ministério e as relações entre pessoas, mesmo em uma comunidade religiosa, como relação vertical de mando e obediência. Para os cristãos, é importante recordar que, segundo o evangelho, na hora da última ceia, ao despedir-se do seu grupo de discípulos e discípulas, Jesus lhes disse: "Os reis e governantes dominam sobre os povos. Os que têm poder querem ser chamados de benfeitores. Entre vocês, não deve ser assim. Quem quiser ser o maior se torne o menor e quem se propõe a governar seja como quem se coloca a serviço dos outros" (Lc 22, 25- 26).  


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países    

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

AS “LOUCAS" DA PRAÇA DE MAIO



por Maria Clara Lucchetti Bingemer

A primeira vez em que li menção sobre as Mães da Praça de Maio foi em livro de Rosiska Darcy de Oliveira.  A partir daí não mais deixei de revisitar suas raízes. Essas mulheres me conquistaram para sempre. 

As Mães da Praça de maio são uma notável organização de mulheres argentinas, ativistas dos direitos humanos há mais de quatro décadas. Seus filhos foram sequestrados e quase todos assassinados pelos militares argentinos durante a “guerra suja” contra os movimentos de esquerda, de 1976 a 1983. 

 O atual governo da Argentina reconhece que aproximadamente 9 mil esquerdistas e líderes trabalhistas morreram nas mãos dos militares durante a ditadura. Porém, as Mães da Praça de Maio e outros defensores dos direitos humanos acreditam que o número de mortos aproxima-se de 30 mil.  Essas vítimas “desapareceram” sem deixar rastro.

  O objetivo da ditadura era esmagar a esquerda argentina e implementar a mesma política neoliberal imposta pelo regime do presidente Pinochet no Chile, pelos sucessivos governos militares do Brasil  a partir de 1964  e por numerosos outros regimes de opressão na América Latina. O governo argentino cortou drasticamente os salários, declarou ilegais contratos sindicais então vigentes, conseguiu a demissão de  milhares de  ativistas sindicais e promoveu a privatização de boa parte da economia. 

  Conscientes de tudo o que estava acontecendo, as Mães da Praça de Maio deram início a uma corajosa campanha para exigir que o governo argentino desse conta do paradeiro de seus filhos desaparecidos.  À medida que a consciência política crescia, elas tornaram-se inimigas implacáveis dos responsáveis por aquela guerra suja. E no processo de oposição à agenda neoliberal, essas mães começaram a se ver como herdeiras dos ideais de seus filhos, dispostas a levar adiante a luta deles.

As mães da Praça de Maio não têm ilusões.  Sabem que seus filhos, a maioria, foram sequestrados, torturados e assassinados pela ditadura militar na Argentina.  No entanto, elas permanecem firmes, recusando as ofertas do governo de reparação ou indenização pelas mortes de seus filhos.  Elas insistem em  declarar que não aceitarão formalmente a morte de seus filhos enquanto não for apresentada documentação  sobre o que aconteceu com eles. É a única esperança de que a justiça
seja feita pelo que aconteceu durante a ditadura. 
            
Elas eram apenas um grupo de mulheres, mães e avós, que, em Buenos Aires, durante os sangrentos anos da ditadura militar, defenderam a causa de seus filhos que haviam “desaparecido” no abismo da tortura e da morte. Brandindo diante da ditadura o direito violado da maternidade, elas criaram uma força política com repercussões.  Foi, talvez, o mais eloquente clamor contra aqueles terríveis  anos na Argentina.  

Movidas por razões que eram aparentemente estritamente “privadas”, elas emergiram politicamente com novas metas e desafios, nascidos da dor inconsolável da perda de seus filhos. 

As loucas têm sua “razão”.  E esta não é tão fora de propósito, uma vez que o próprio Papa Francisco, argentino, a reconhece. Na data em que se celebra o Dia das Mães na Argentina, um grupo delas foi a Roma.  Seu intento era realizar uma manifestação na Praça de São Pedro em comemoração  à data e aos 40 anos do movimento.  O desejo delas era realizar uma marcha, mas não foi possível porque naquele dia havia uma canonização acontecendo naquele mesmo lugar. 

Porém, o papa Francisco não se esqueceu delas.  Mandou um sacerdote buscá-las, colocá-las na primeira fila, e cumprimentou uma por uma.  Assim, mesmo sabendo as posições controvertidas que existem  na Argentina em relação às Mães da Praça de Maio, o Papa reconheceu e apoiou a “razão” dessas mulheres, que sofrem até hoje pela ausência nunca preenchida de seus filhos. 

O olhar de pastor do Papa reconheceu que esses corpos femininos, consagrados pelo milagre da vida, tornaram público o vazio e a ausência deixada por seus filhos desaparecidos, e então tornaram-se instrumentos de redenção para todos que sofreram sob aquela cruel opressão.
  
  
Maria Clara Lucchetti Bingemer , teóloga e autora de “Teologia latino-americana – Raízes e ramos” (Editoras Vozes e PUC-Rio), livro que acaba de ser lançado.

Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 19 de outubro de 2017

JUSTIÇA ÀS AVESSAS



Frei Betto

      O ator de filmes pornô Alexandre Frota declarou em programa de TV, em 2015, que estuprou uma mãe de santo até ela desmaiar. Como era de se esperar, Eleonora Menicucci, então à frente do Ministério das Mulheres, repudiou a apologia ao crime. 

      Em maio de 2016, o ministro da Educação do governo Temer, Mendonça Filho, recebeu em audiência Alexandre Frota, para ouvir propostas para a educação básica e defender o projeto “Escola sem partidos” (exceto os conservadores).

      Em nota na Folha de S. Paulo, Eleonora Menicucci declarou: "Lamento, como ex-ministra e cidadã, que o ministro golpista Mendonça Filho tenha recebido, como primeira pessoa da sociedade civil, um homem que foi à TV e fez apologia do estupro. Fico muito preocupada com a educação de nossa juventude, e lamento muito."

      Alexandre Frota decidiu, então, processar a ex-ministra por danos morais. Pediu R$ 35 mil de indenização. Em setembro de 2016, na audiência de conciliação, ele sugeriu que ela pedisse desculpas, o que não foi aceito. 

      Em maio deste ano, a juíza de primeira instância Juliana Nobre Correia emitiu sentença condenando Eleonora Menicucci a pagar R$ 10 mil a Frota, alegando que ela ultrapassara o limite da crítica. 

      Em agosto, teve início o julgamento do recurso em segundo instância, e a relatora, Fernanda Melo de Campos Gurgel, proferiu voto a favor da juíza que condenara a ex-ministra.

      Que país é este em que mulheres defendem quem faz apologia do estupro e condenam quem ergue a voz em prol da dignidade das vítimas; juízes repassam ao Congresso Nacional, repleto de corruptos, o direito de julgar seus pares; um rapaz é preso acusado de traficante por ser pobre e estar bem vestido e, em seguida, sua mãe é assassinada por policiais do Bope-Rio por defender o filho? Que país é este no qual dois amigos do presidente são flagrados com malas de dinheiro; Temer recebe na calada da noite o dono da JBS que confessou ter corrompido quase dois mil políticos; e tudo fica como dantes no quartel de Abrantes?

      Talvez os olhos vendados do símbolo da Justiça não representem isenção nos julgamentos, e sim vergonha por tantas inversões judiciais. Bem recomenda Chico Buarque: “Chame o ladrão... chame o ladrão...”

Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros.

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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

DEUS UMA PALAVRA ESCORREGADIA


Por Ivone Gebara

O cristianismo nos educou que há que “amar a Deus sobre todas as coisas”. Este é o primeiro mandamento da “lei de Deus”, mandamento que entrou de cheio em nossa cultura e se mostra nas muitas afirmações populares como: ‘primeiro Deus’, ‘abaixo de Deus’, ‘se Deus quiser’, ‘com a permissão de Deus’, ‘que Deus te abençoe’, ‘graças a Deus’ e muitas outras no gênero. Não podemos apreender exatamente todas as nuances dessa palavra no uso ordinário e coloquial que fazemos dela. O mais comum é que ela indique que estamos vivendo sob o impulso ou o poder de “algo maior” do qual nossa vida depende. Entretanto, essa palavra embora seja aparentemente ‘maior’ do que nossa vida e as nossas circunstâncias históricas parece condicionada a decisões individuais e a políticas das mais diferentes procedências. Por isso, no atribulado contexto político e social em que vivemos hoje a palavra DEUS está em quase todas as bocas e em cada boca com um significado e um interesse diferente. 

Afirmo algo bastante conhecido e que pode ser observado no cotidiano das pessoas assim como nos meios de comunicação os mais variados. Estes manifestam o quanto, muitos políticos usam a ‘palavra mágica Deus’ para legitimarem sua voz, seu voto e suas iniciativas. Nesse mesmo contexto, entretanto, muitos têm também tomado a defesa de Deus afirmando que sua Majestade foi desrespeitada por políticos exploradores do povo e manipuladores da religião. Defendem a Deus como a si mesmos... Dizem que os manipuladores usam DEUS a seu favor e não temem tomar seu nome em vão para justificar suas decisões despejando sobre o povo uma verborreia pretensamente moral e legitimada por seu DEUS. Este então lhes daria a autoridade e legitimidade que não têm.

O que gostaria de sublinhar nessa breve reflexão é que o uso da palavra Deus é impróprio num e noutro caso, sobretudo no contexto em que vivemos. Acusação e defesa de certa forma usam a mesma lógica de possessão da autoridade de DEUS para falar em seu nome como se o conceito Deus fosse claro e seu significado unívoco. Basta observarmos como alguns prepararam discursos sobre DEUS para dizer o quanto ele estaria sendo ofendido com o mau uso que fizeram e fazem dele. Afinal usar DEUS para apoiar golpes, mentiras políticas e a exploração de muitos tipos dizem ser inaceitável! Com esse discurso querem fazer crer que DEUS estaria do lado deles, apoiando suas posições e escolhas, o que equivaleria a dizer que Deus como eles é mais de esquerda do que de direita. Por isso fazem cartas de desagravo, de defesa de DEUS revelando a partir delas sua postura política considerada a mais correta, a mais conforme ao bem comum ou o bem do povo. Não discuto aqui a qualidade das propostas ou dos planos de governo propostos. Discuto o funcionamento do pensamento, sua articulação lógica nos argumentos apresentados.

Nessa perspectiva, alguns até exigem uma posição clara das autoridades religiosas como se essas fossem obrigadas a tomar de forma manifesta partido de DEUS, segundo os ditames da esquerda ou da direita política nas muitas variações de cada uma dessas tendências. De fato essa expectativa poderia talvez favorecer um ou outro lado da política, mas seria uma vez mais buscar legitimidade nas posturas religiosas para o enfrentamento político, sobretudo que em algumas questões esses defensores de Deus afirmam a laicidade do Estado. Como falar com propriedade de Estado laico? Quando Deus aparece com uma multiplicidade de máscaras, sobretudo como alter-ego, cobertor, corruptor, corrompido ou justo, libertador e libertário a laicidade do Estado precisa ser mais bem refletida! Que Deus é esse? Quem é Deus? Onde está Deus? E mais, qual é o modelo de Estado que Deus aprovaria?

Creio que nesse panorama político e teológico confuso e complexo uma pergunta não quer calar em nós: por que o uso da palavra DEUS está hoje tão freqüente, sobretudo, na política? Por que essa palavra é recuperada pelos grupos políticos de direita, de centro e de esquerda, cada um invocando-o para sua causa e seu lado. Nessa invocação quase sempre consideram a invocação do outro uma mentira ou uma injúria à Altíssima e Puríssima Santidade de seu Deus?

Em nome de Deus gritam alguns: Que viva a Pátria com e para Deus! E outros exclamam: Salvem Deus das garras da direita! Nós somos do lado do Deus dos pobres e vocês do Deus dos latifundiários! Não, respondem os primeiros... Seu Deus é o Demo... E a confusão na política, na religião e na sociedade se faz presente cada um reclamando para si “um pedaço” de Deus! Assim os diferentes grupos expressam a batalha por DEUS nos campos minados da política nacional e internacional. Esse uso excessivo da palavra Deus não estaria escondendo uma fraqueza das autoridades e uma fraqueza dos diferentes grupos frente às suas crenças políticas? É como se buscassem ‘alguém’ cuja autoridade fosse indiscutível e também fosse imediatamente desconhecida, uma autoridade mais ou menos imaginária que servisse de suporte a um sem numero de afirmações que não resistem a um olhar atento sobre os fatos e as pessoas. Que saídas encontrar nesse labirinto escuro?

E se não usássemos a palavra DEUS? Se a deixássemos descansar para recuperar sua força e vitalidade? Se apagássemos ou colocássemos entre parêntesis, ao menos provisoriamente essa palavra dos dicionários e da linguagem cotidiana, sobretudo da política partidária? E, se não achássemos mais que as igrejas e suas autoridades públicas tivessem o privilégio maior e a verdade mais profunda em relação ao “conhecimento de Deus”? E se tentássemos entender o que uns e outros querem dizer quando empregam essa escorregadia palavra? Sim escorregadia palavra porque portadora de escorregadios significados. Escorregadia visto que parece ter um só significado, mas é multidão. Multidão de significados para os que a utilizam e para os que calam sobre ela. Escorregadia porque nos conduz a um terreno movediço que nos faz cair em contradições contínuas frente a frágil realidade que somos e que vivemos.
E, mais uma vez, se parássemos de usar a palavra DEUS e tentássemos explicitar no lugar dela o que estamos pedindo, o que estamos esperando de nós mesmos, o que estamos desejando para o mundo que nos rodeia. Permitamos a Deus o descanso do sétimo dia... Deixemo-lo descansar dos conflitos em que não só buscamos sua ajuda, mas o usamos como cúmplice imaginário para nossos nefastos ou gloriosos planos. Deixemos que descanse e tentemos reconfigurar nosso mundo nesse acender e apagar de vidas, nessa sucessão de momentos diversos de nossa história. Assumamos o compromisso com nossa própria palavra e nossa responsabilidade para hoje.

Nessa linha, tentar dizer coisas realizáveis para sair dos verbos, substantivos e adjetivos abstratos como, por exemplo, “é preciso amar”, “fazer justiça”, “ser irmão”... Todo esse linguajar genérico não opera nenhuma mudança efetiva. Está minado de joio, de cizânia, de interesses egoístas, de enganos, manipulações... Cria ilusões e desejos impossíveis. Cria falsas expectativas e nos enreda cada vez mais em nós mesmos e em nossas dissimulações...

Quando todo o corpo dói machucado por uma queda violenta é preciso prestar atenção para ver por onde segurá-lo para melhor erguê-lo sem danificá-lo ainda mais. E no levantar, todos podem ajudar de diferentes maneiras se de fato estiverem interessados em levantar o corpo caído, em saná-lo e não apenas se mostrar uns aos outros quando e como o estão levantado. Da mesma forma se quiserem ajudar poderão fazê-lo a condição de não ficarem todo o tempo acusando uns e outros de terem empurrado o corpo ao chão ou de lhe terem negado sustento. Enfrentar-se ao corpo ferido é buscar as saídas imediatas para mantê-lo vivo e depois pouco a pouco curar as partes mais atingidas dele, aquelas sem as quais o corpo não se sustentaria. Mas, é claro que a analogia de um corpo quebrado, ferido e jogado no chão não é a mais adequada para falarmos do complexo corpo social muito embora possa ajudar-nos a partir dela e ir mais além dela. Diante da desumanidade crescente em nosso meio o uso da palavra DEUS tornada cúmplice dessa desumanidade, nos convida uma vez mais a silenciá-la e a falar em nosso nome e a denunciar os abusos de poder que nos rodeiam em nosso nome. Falar em nosso nome é também denunciar as tramas e as corrupções cotidianas de outros nomes contemporâneos correndo até o risco da perseguição.

Há algo muito forte que tem a ver com a política de nossas emoções, com nossos afetos cotidianos que se misturam às muitas decisões também políticas que tomamos. Não se pode obrigar alguém a amar o que rejeitou e, não se pode fazer de conta que se ama quando de fato não se ama. Fazer figura de defensores dos pobres, seguidores do Evangelho para que sejam reconhecidos como bons e justos não cria novas relações. Da mesma forma, amar por constrangimento político ou religioso, amar porque os “amigos” me obrigam a fazê-lo não se sustenta. Entra-se no jogo das máscaras teatrais e pode-se cair em qualquer tropeço... E o dano social pode ser ainda maior. Quem de fato tem ouvidos para ouvir ouve. Quem tem olhos para ver, vê. Quem acolhe alertas, muda. Quem tem dúvidas pode se informar e se abrir aos desafios da história presente.

As pressões feitas para se amar para além das decisões interiores, para além do amor que nasce das entranhas não sustenta nenhuma política em favor do bem comum. Nesse sentido é trabalho quase inútil tornar Deus um político de uma cor determinada ou uma tendência social por pressão... Nada se sustenta sem a integridade dos corações, sem as convicções que nutrem a história de uma vida. Por isso de nada adianta pressionar bispos para que reajam diante do momento nacional ou para que sejam capazes de ouvir os gritos das mulheres em busca de dignidade e respeito. A velha tradição cristã falava de ‘conversão do coração’ e esta parece estar ainda distante para muitos. Nesse particular, os políticos estão agora preocupados com a pressão social contra o estupro de mulheres. Estão transformando o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro em questão de honra política. Movem-se exigindo justiça, fazendo leis que castigam duramente os estupradores. Horrorizados invocam seu Deus diante do acontecido embora saibamos bem que o estupro é também ‘pecado conhecido’ na vida de civis, militares e religiosos de longa data. Mostram-se espantados como se esse horror não fosse também obra de seus corpos e de suas mentes condescendentes com a identidade machista naturalizada que herdaram. Perdoam-se mutuamente e de aparência contrita lamentam os erros dos seus pares prometendo agir contra esse ‘desvio social e comportamental’.

Os estupros coletivos de mulheres não são apenas de nosso tempo. Quantas guerras foram feitas às mulheres nas muitas batalhas do mundo! Hoje estarrecidas/os imaginávamos que tal prática comum em muitas situações já não existia no meio de nós. Voltamos à barbárie, à conquista da ‘ frágil inimiga’ pelo prazer de vê-la ensanguentada, derrubada ao solo pela força bruta exaltada. Tomadas/os de indignação temos que reconhecer a complexidade do que presenciamos. Que prazer coletivo se sente depois de ter destroçado uma vida? Que gargalhadas e risos sarcásticos povoam as faces de jovens homens depois desse feito ignominioso? Seria o mesmo que matar um touro numa tourada, ou ver muitos galos feridos numa rinha organizada como espetáculo e competição? E depois do touro morto ou do galo ferido se vai agradecer a Deus ou à Virgem que guiou nossa espada e louvar o apoio de nossa torcida vencedora. E como a loucura coletiva do estupro e da matança dos galos ou touros as gargalhadas insanas dos que gozaram excitados pelo sangue e pelos corpos feridos ecoam como ovações por um troféu conquistado. Sem dúvida alguns agradeceram a DEUS pela deliciosa brincadeira e pela vitória... Afinal apenas feriram uma mulher, ser inferior, sujo de sangue... Nada mais do que isso... Uma mulher! Feriu-se também uma ave ou um animal de porte como um touro... Todos esses seres na realidade devem se colocar a nosso serviço e lazer! Uma rodada de cerveja é bem-vinda nesse momento de supremo deleite!

Mais uma vez não precisamos da palavra DEUS para denunciar esse horror e não precisamos que aqueles que se afirmam publicamente como representantes de Deus o façam publicamente. Na realidade eles apenas representam a si mesmos... Não exigimos que o façam porque não o fazem de coração contrito. E se não é assim não observarão os acordos, não viverão o que mostram acreditar. De nada servirão as penalidades maiores ou menores se o coração não for educado para o respeito do próximo, do meu outro eu. Nós, convictas/os dos valores que defendemos, queremos fazer valer o direito e a justiça entre nós... Como? Talvez começando tudo de novo na continuação daquilo que é... Nós nos recolheremos para estudar e nos treinar em uma ‘arca’ semelhante aquela de Noé... Abriremos nosso coração uns para os outros... Nós nos despiremos das roupas guardadas cheirando mofo... Descobriremos que já não se ajustam aos nossos corpos prenhes de novidade... Enterraremos as armas e os canhões assim como os excessos de ouro e prata... Faremos poemas olhando o mar e o céu estrelado... Então poderemos sair da arca e ir as praças cantar e fazer muita música... Já fizemos isso antes. Lembram-se? E a música e a dança serão tantas que contagiarão outros corpos que virão dançar também...
Vivemos em coletividade habitadas/os por nossas crenças e valores como frutos de um mesmo universo criador, ou melhor, de um ‘pluriverso’ multifacetário. Existimos diversos, uns aos olhos dos outros mesmo se o mais forte em nós for nossa individualidade. Mas, cremos que somos um a outra e a outra o outro, interdependentes... Caímos, erramos... E, renascemos uma no outro... Mesmo velhos ainda dá para nascer de novo e ir à praça pública... Mas, melhor seria sem usar a palavra Deus embora intuamos a nossa humanidade divina... Podemos entrar na música que de muitos lados nos convida a uma ciranda comum cantando “gracias a la vida” e acreditando na possibilidade de recomeçar, de fazer nascer músculos e carnes nos nossos ossos ressequidos como dizia o profeta Ezequiel...

Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É uma das principais defensoras da Teologia Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73 anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática