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sábado, 30 de abril de 2011

CASAMENTO REAL



por FREI BETTO

Em Cambridge, onde morei em 1987, descobri por que a BBC não produz telenovelas. País coroado por lendária família real, como a Inglaterra, dispensa contos de fadas. Basta ligar a TV. A telinha, ao focar a monarquia, exibe cenas tão exuberantes que a realidade parece superar a fantasia.
Aristóteles, mestre em teoria literária, ensina que a ficção não precisa ser verdadeira, precisa ser verossímil. O espectador ou leitor tem que ficar convencido de que toda aquela fantasia brotada da imaginação possui certa coerência. Júlio Verne e Monteiro Lobato que o digam.
Ora, e se eu dissesse a você, leitor(a), que acabo de ler um romance no qual uma princesa, Anne, após 20 anos de casada, decide divorciar de seu marido, Mark, por suspeita de adultério? Como narrativas centradas na nobreza requerem temperos de romantismo e intriga, sedução e traição, o irmão da princesa, Charles, herdeiro do trono, também se separa de sua bela mulher, Diana, mãe de seus dois filhos, para se juntar a uma mulher divorciada, a inexpressiva Camilla.
Indignada com a atitude do filho, a rainha se recusa a abdicar, impedindo-o de ascender ao trono. A princesa Diana cai nos braços de um miliardário árabe, sob o risco de dar à luz, na nobre linhagem da Casa de Windsor, cabeça da Igreja Anglicana, o primeiro rebento muçulmano...
Mas eis que o destino a conduz à morte num trágico acidente automobilístico num túnel de Paris. Destronada da nobreza e da vida, Lady Di passa a merecer veneração mundial por sua beleza e dedicação a causas sociais.
Andrew, outro filho da rainha, se casa com uma tal Sarah. Seis anos depois, o casamento fracassa. Sarah perde as regalias nobiliárquicas e, desesperada, é flagrada negociando com empresários, por quantia superior a R$ 1 milhão, acesso ao ex-marido, representante comercial da Grã-Bretanha.
São todas histórias reais – no duplo sentido do adjetivo. Que autor de novela ou romance bolaria trama tão instigante e apimentada?
Agora, o mundo parece esquecer guerras e dores, trabalhos e dificuldades, para se deliciar com o casamento do príncipe William, filho de Charles e Diana, com a plebéia Kate Middleton. O sonho em forma de realidade! O verdadeiro reality show!
Não apenas os noivos expressam felicidade. A combalida economia britânica, afetada pela crise do capitalismo iniciada em 2008, também se rejubila. Como isca de turismo e venda de souvenires, a família real britânica garante aos cofres do país cerca de R$ 1,2 bilhão por ano. Prevê-se um faturamento de R$ 4,8 bilhões, graças aos milhares de turistas que afluem a Londres pelo prazer de repetir o resto na vida: “Naquele dia, eu estava lá.”.
A UK Gift Company, especializada na venda de penduricalhos reais (chaveiros, isqueiros, louças com foto dos noivos, bolsas estampadas etc.) calcula um aumento de 40% nas vendas.
Mundo afora, mais de 2 bilhões de pessoas, de olho nas bodas reais via TV ou internet, fizeram a festa das agências de publicidade e das empresas anunciantes.
Acima de toda essa nobre parafernália paira uma pergunta: vale a pena os súditos britânicos sustentarem a família real? Ora, a Casa de Windsor custa, a cada súdito, a bagatela de R$ 1,66 por ano. E possui em propriedades algo em torno de R$ 16 bilhões. A maior parte desse patrimônio está alugada, e a renda vai direto para os cofres públicos. Caso a monarquia fosse abolida, a família teria direito de apropriar-se da renda.
E nós, pobres plebeus, que admiramos extasiados bodas reais e já não temos monarquia? Elementar, meu caro Watson: revestimos os nossos ídolos de majestade – o rei Pelé; Roberto Carlos, o rei; misses coroadas e escolas de samba em pompas principescas.
Ainda bem que o nosso príncipe destronado, Dom João Henrique de Orléans e Bragança, bisneto da princesa Isabel, assume tranquilo sua condição de feliz plebeu. Fotógrafo e hoteleiro, vive numa bucólica casa em Paraty e não perde a oportunidade de oferecer aos amigos uma deliciosa cachaça.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.www.freibetto.org - twitter:@freibetto

Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

"O MESMO MUNDO, A MESMA DOR"



por LEONARDO BOFF






A globalização trouxe uma externalidade, quer dizer, um efeito não desejado e incômodo para o sistema de poder imperante, fundado no individualismo: a conexão de todos com todos, de sorte que os problemas de um povo se tornam significativos para outros em sitação semelhante. Então se estabelecem laços de solidariedade e surge uma comunidade de destino.
É o que está ocorrendo com os levantes populares, mormente animados por jovens universitários, seja no mundo árabe seja em nove estados do Meio Oeste norte-americano começando por Wisconsin. Estes levantes nos EUA quase não repercutiram em nossa imprensa, pois, não interessa a ela mostrar a vulnerabiliade da potência central em franca decadência. Um jovem egípcio levanta um cartaz que diz:”o Egito apoia os trabalhadores de Wisconsin: o mesmo mundo, a mesma dor”. Como num eco, um estudante universitário estadounidense, voltando da guerra do Iraque levanta o seu cartaz com os dizeres:”Fui ao Iraque e voltei à minha casa no Egito”. Quer dizer, quer participar de manifestações nos EUA semelhantes aquelas no Egito, na Líbia, na Tunísia, na Síria e no Yemen.
Quem imaginaria que em Madison, capital de Wisconsin, com 250.000 habitantes, conhecesse uma manifestação de 100.000 pessoas vindas de outras cidades norte-americanas para protestar contra medidas tomadas pela governador que atam as mãos dos sindicatos nas negociações, aumenta os impostos da saúde e diminui as pensões? O mesmo ocorreu em Michigan onde o governador conseguiu fazer aprovar pelo parlamento estadual, uma esdrúxula lei que lhe permitiu nomear uma empresa ou um executivo com o poder de governar todo o aparato do governo estadual. Isentou em 86% o imposto das empresas e aumentou em 31% aquele dos contribuintes pessoais. Tudo isso porque os assaltantes de Wall Street além de saquearam as pensões e as economias da população, quebraram os planejamentos financeiros dos Estados. E a população mais vulnerável é obrigada a pagar as contas feitas por aqueles ladrões do mercado especulativo que mereciam estar na cadeia por falcatruas contra a economia mundial.
Conseguiram para eles uma concentração de riqueza como nunca vista antes. Segundo Michael Moore, o famoso cineasta, em seu discurso em apoio aos manifestantes em Wisconsin: atualmente 400 norte-amerianos tem a mesma quantia de dinheiro que a metade da população dos EUA. Enquanto um sobre três trabalhadores ganha 8 dólares/hora (antes era 10/hora), os executivos das empresas ganham 11.000 dólares/hora sem contar benefícios e gratificações. Há um despertar democrático nos EUA que vem de baixo. Já não se aceita esta vergonhosa disparidade. Condenam os custos das duas guerras, praticamente perdidas, contra o Iraque e o Afeganistão, que são tão altos a ponto de levarem ao sucateamento das escolas, dos hospitais, do transporte público e de outros serviços sociais. Há 50 milhões sem nenhum seguro de saúde e 45 mil morrem anualmente por não haver agenda para um diagnóstico ou tratamento.
O mundo árabe está vivendo uma modernidade tardia, aquela que sempre propugnou pelos direitos humanos, pela cidadania e pela democracia. Como a maioria dos paises é riquísima em petróleo, o sangue que faz funcionar o sistema moderno, as potências ocidentais toleravam e até apoiavam os governos ditatoriais e tirânicos. O que interessava a elas não era o respeito à dignidade das pessoas e a busca de formas democráticas de participação. Mas pura e simplesmente o petróleo. Ocorre que os meios modernos de comunicação digital e o crescimento da consciência mundial, em parte favorecida e tornada visível pelos vários Forums Sociais Mundiais e Regionais, acenderam a chama da democracia e das liberdades. Uma vez despertada, a consciência da liberdade jamais poderá ser sufocada. Os tiranos podem fazer os súditos cantarem hinos à liberdade mas estes sabem o que querem. Querem eles mesmos buscar a liberdade que nunca é concedida mas sempre conquistada mediante um penoso processo de libertação. Agora é hora e a vez dos árabes.

PÁSCOA: DO RUMOR AO TESTEMUNHO



por Maria Clara Lucchetti Bingemer,





Diz o conhecido teólogo francês Joseph Moingt que o cristianismo começou com um rumor. Jesus havia morrido na cruz e seus discípulos, escondidos, o choravam. As mulheres, enquanto isso, preparavam-se para, após o sábado, ir ao túmulo onde estava enterrado e ungir seu corpo com aromas. O silêncio pesava sobre Jerusalém, grávido de tristeza com a morte do profeta que amou os pobres e os pequenos, e falou de Deus como nunca ninguém o tinha feito.
E, de repente, o rumor rompeu o silêncio e o mal-estar, falando não de morte mas de vida. “O túmulo está vazio e aquele que procurávamos não está ali.” “A pedra estava rolada e nos foi dito que ele não estava ali, mas que nos esperava em Jerusalém.” “Aquele que morreu está vivo.” “ Ele está vivo, nós vimos.” “Jesus de Nazaré está vivo e nós o reconhecemos no partir do pão.” “Eu chorava no jardim sem encontrá-lo e de repente ouvi meu nome e reconheci que era ele.”
O rumor vai se produzindo à medida que aqueles e aquelas que choravam uma dolorosa perda para a qual acreditavam não haver consolo ou remédio sentem-se cheios de uma alegria que não sabem explicar de onde vem. E experimentam a sensação de que essa alegria tem sua raiz no fato de que aquele que morreu não foi retido pela morte em seu poder. Está vivo e aparece consolando, animando, dando seu Espírito e enviando em missão.
Rapidamente, o rumor cresce e ganha força e consistência. Já não são mulheres assustadas e tristes que afirmam tê-lo visto e ouvido em plenitude de vida. Apesar de haverem sido as primeiras a viver a impressionante experiência pascal, souberam transmiti-la aos companheiros que, embora descrentes em um primeiro momento, logo se sentiram contagiados por seu testemunho. E dentro em pouco serão vários os que antes tinham medo e se escondiam, e que agora se mostram e fazem ver, declarando havê-lo visto, ouvido e tocado com suas mãos.
O grupo disperso torna-se coeso e unido. O medo é banido dos corações e em seu lugar brota uma força que enfrenta os poderes políticos e religiosos com desassombro e intrepidez. Uma comunidade se forma em torno da pessoa daquele que os reuniu e partiu. Agora, ele os conforta na certeza de que a morte não teve a última palavra sobre sua vida santa e fecunda. O amor que ele espalhou pelo mundo foi mais forte e venceu a morte pelo poder de Deus.
Jesus ressuscitou. O profeta assassinado pelo poder das trevas vive para sempre à direita de seu Abba, que sempre o escutou e agora confirma seu caminho como vida que não morre e não termina. A testemunha fiel que sempre foi o profeta de Nazaré é confirmado como vivente e é o próprio Deus Pai e Senhor da vida que sobre ele dá testemunho, pronunciando a palavra interpretativa da ressurreição sobre sua pessoa e seu caminho.
A comunidade cresce na fé e na esperança que a presença do Ressuscitado suscita em seu meio. Unida, reparte seus bens; é fiel ao ensinamento dos apóstolos, testemunhas autorizadas do Ressuscitado, reza, reparte o pão pelas casas, comungando o corpo daquele que por ela se entregou até a morte e agora vive e a envia em missão anunciando pelo mundo a Boa Notícia da vida que não morre.
Se não fosse o testemunho fiel desta comunidade, o rumor que começou a circular pelas ruas de Jerusalém poderia ter sido abafado e sufocado pelos poderes que haviam matado Jesus e a quem não interessava nada sabê-lo vivo. Poderia também ter se diluído em meio às agruras e dificuldades da vida cotidiana, e breve tornar-se apenas uma vaga lembrança. Porém, a experiência era forte demais para que isso acontecesse. E o rumor se tornou testemunho corajoso e destemido, que enfrentou todas as vicissitudes e adversidades, perseguições e tribulações, e ganhou mundo e se multiplicou em meio a todas as tentativas para silenciá-lo.
À medida que meditava e interpretava o testemunho de Jesus a comunidade ia compreendendo que por haver entregado sua vida até o fim ele vencera. Semeou-se como grão de trigo na terra fecunda, e dali emergiu florescido, frutificado e vivo, para alimentar os que amava. Confiantes no Deus que não permitira que o Justo ficasse retido nas garras da morte, a comunidade dava testemunho incessantemente e por onde passava.
Assim, o que era um rumor se fortaleceu e consolidou. Transformou-se em uma Boa Notícia, que dá sentido à condição humana. Todo homem e toda mulher que vem a este mundo pode afirmar que não é um “ser para a morte”, como dizem algumas correntes de pensamento. Pode sentir que a vida não é absurda e sem sentido. Pois existe uma maneira concreta de ser humano que é o caminho para a comunhão com o verdadeiro Deus e para a vitória sobre a morte: a pessoa de Jesus de Nazaré que se fez caminho para que pudéssemos nele caminhar na alegria da convicção em que Deus é amor.


A escritora é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).

Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

PELO DIREITO DE SER BRINCALHÃO






por MARCELO BARROS



Em um mundo dominado por todo tipo de tragédias, a capacidade natural de brincar parece quase inconseqüência. Quando Roberto Begnini divulgou no cinema “A Vida é Bela”, muitos críticos o acusaram de, ao brincar com o holocausto sofrido pelos judeus, dar ao nazismo uma expressão mais palatável e menos cruel. Ele respondeu que considerava o humor uma arma ferina não só para desacreditar as ditaduras, como para revelar o descalabro de muitas iniqüidades que se impõem como sérias.
Já em 1997, a revista francesa Actualité des Réligions dedicou um número ao humor e ao riso (Peut-on rire de tout?, ARM n. 151, janvier 1997). Havia uma pesquisa sobre como diversos chefes de religiões encaram o humor . Descobriu-se que a maioria das hierarquias religiosas se ofende com qualquer sátira ou ironia sobre o seu poder sagrado. A seriedade é considerada sinal de santidade e a melancolia de maturidade humana. O riso, ao contrário, aparece como, ao menos, muito suspeito. Por isso, os religiosos têm dificuldade de rir quando o judeu Woody Allen se veste de rabino e proclama: “Deus não existe, mas nós somos seu povo eleito”. Ou quando atesta: “Deus tem um grande senso de humor. Só que ultimamente não tem tido muitos motivos para rir”.
Certamente, não os encontrará nos templos religiosos nem nas sedes das Igrejas. A maioria das religiões acentua demais a inclinação humana para o pecado e tem a tendência de identificar a piedade com a consciência da própria culpa e o desejo de conversão. No romance “O Nome da Rosa”, Umberto Eco mostra um mosteiro do século XIII, no qual vários monges foram assassinados só para não lerem o livro de Aristóteles sobre o riso.
Em uma sociedade já tão pesada, é urgente que, ao menos as pessoas que buscam viver a espiritualidade deixem as fisionomias carrancudas para quem não ama e testemunhem que, se a espiritualidade é um caminho amoroso, terá, então, de aprender a conviver melhor com a alegria e ser menos severa com o prazer. Afinal, vencer o sofrimento e trazer ao ser humano paz e alegria é o objetivo da maioria das tradições religiosas antigas e novas. Cinco séculos antes de Cristo, Buda era um príncipe que deixou o seu palácio e se tornou mendigo para compartilhar com os pobres a sua vida e encontrar a superação do sofrimento humano. O Dalai Lama ensina que Buda encontrou o segredo da alegria e da paz interior na compaixão (solidariedade com todo ser vivo). Os cultos de matriz africana assumem como objetivo partilhar o Axé, energia vital de amor, com todas as pessoas.
A Bíblia diz que o próprio Deus vem ao mundo para nos encontrar no cotidiano da vida e implantar na terra o projeto divino de paz, justiça e comunhão. Para isso, escolhe pessoas como Abraão e Sara, velhos e estéreis, Moisés e Miriam, hebreus clandestinos, Rute, mulher estrangeira e pobre, Davi, pastor de ovelhas e tantos outros homens e mulheres marginais para ser porta-vozes de sua aliança de amor com a terra. Conforme os Evangelhos, Jesus chama pescadores e pecadores para fazer parte do seu movimento profético que, mais tarde, inspirou o surgimento das Igrejas cristãs.
O primeiro salmo começa pela palavra “Feliz ou abençoado quem anda nos caminhos do Senhor”. André Chouraqui, judeu e grande mestre da Bíblia, falecido há poucos meses, traduz este termo “feliz” por uma expressão de confirmação e estímulo: “para frente...”. Conforme o testemunho do evangelho de Mateus, são estas as mesmas palavras que Jesus fala no primeiro discurso público, quando, do alto da montanha, proclama: “Felizes os que têm coração de pobre, os que estão aflitos, os que trabalham pela paz, os que têm fome e sede de justiça...” (Cf. Mt 5).
Para um budista, nada é levado mais a sério do que a gozação. Quem já viu alguma vez o Dalai Lama certamente o terá visto sorrindo. Para a espiritualidade budista, a finalidade da brincadeira é desestabilizar o pequeno “eu” e despertar a natureza do Buda presente, mas adormecida na consciência do seu fiel.
Nesta mesma linha, ao contrário do que ensinava certa tradição que Jesus nunca tinha sido visto rindo, mas, ao contrário, o Evangelho o mostra chorando, Luis Bunuel, no seu filme “O Caminho de São Tiago” retrata na última ceia, Jesus rindo muito e contando piadas a seus discípulos. Pode parecer estranho vê-lo rindo na véspera de morrer, mas assim o cineasta salientava a alegria de dar a vida pelos outros.
De fato, Jesus aconselhou seus discípulos a manterem um coração de criança. Na Idade Média, o místico ocidental Mestre Eckhart ensinava que “cada um de nós tem uma dimensão mística. Esse ser místico é a criança que existe dentro de nós”. Do mesmo modo, Santa Mectildes, uma abadessa beneditina se expressava assim: “Deus conduz a criança que existe dentro de nós de maneira maravilhosa. Leva-a a um local secreto e brinca com ela. É, então, importante que cada pessoa escute dentro de si mesma esta voz divina que afirma: “Eu sou teu companheiro de brinquedos. Tua infância é a companhia para meu Espírito. Nas formas mais maravilhosas, conduzirei a criança que existe em ti, pois te escolhi”.
Seja você uma pessoa religiosa ou não, acolha o convite divino para entrar neste jogo de crianças e faça da vida o que os orientais chama de leela, uma brincadeira que rompe com a seriedade formal de quem se acha muito importante, relaxa o espírito e nos põe em sintonia de amor com todas as criaturas.

O JARDIM DAS RELIGIOÕES



por ASSUERO G0MES


A religião é um belo jardim, onde várias culturas colocaram suas sementes através dos tempos. Vieram outros e o regaram, ora com água pura, ora com lágrimas, ora com sangue. Devemos caminhar sobre ele com cuidado e carinho, pois é nos sonhos que pisamos.
Pisamos também nos pesadelos.
É verdade que no jardim das religiões muito sangue e intolerância foram derramados. É verdade também que alguns esconderam sob suas flores e sua terra semeada, algumas minas. Alguns líderes que não eram jardineiros nem pastores colocaram túmulos e não contentes os cercaram com grades do conservadorismo, pois o túmulo vazio da ressurreição reflete seu próprio vazio religioso, então preferem administrar os panos dobrados que ficaram dentro.
No jardim temos então flores, arbustos, árvores, túmulos, minas escondidas, poças d´água que refletem as estrelas, espinheiros e belas folhagens. A vida brota. Nos momentos mais solitários e mais angustiados a humanidade vem caminhar nele.
O jardim continua belo apesar de perigoso. O jardim continua ensolarado apesar das sombras do crepúsculo de várias religiões. O jardim continua regado pelo Senhor, que manda sua chuva tanto sobre as flores quanto sobre os túmulos e aguarda o retorno da chuva até que ela tenha cumprido sua tarefa, pois a primavera não respeita cercas.
O jardim não tem dono apesar de tantos posseiros e grileiros, pois o vento sopra onde e quando quer sobre suas folhagens e espalha as sementes por onde lhe apraz. O jardim sonha com o amanhã, pois os sonhos que foram semeados nele, especialmente pelos pobres, pelos aflitos, pelos injustiçados, foram sonhos de esperança, belos sonhos do amanhã. Quando andarmos nele, pisemos com cuidado, pois é sobre o sonho dos pobres que pisamos. Cuidado para não nos distrairmos com o brilho de falso ouro que trouxeram para adorná-lo, pois nada se compara ao sol que não se pode comprar, nem tampouco nos deixemos seduzir por longas cerimônias rituais, nem pelas poças por mais que reflitam as luzes das estrelas, porque na verdade são apenas poças e as estrelas não estão lá, antes procuremos a fonte que está no âmago do jardim, dela é que brota toda a água viva que rega o jardim e que ilumina até o sol.
O jardim é belo, perigoso, essencial. Revolvamos a terra com cuidado e paixão, semeemos com bondade e ternura, sementes profundas. Aguemos com parcimônia com a água da fonte que está no meio do jardim, escondida dentro de nós. Espalhemos a Palavra em cada sulco, em cada canto, em cada grota, da periferia para o centro, e não caiamos em tentação de ceifar a erva daninha nem os espinhos para que não aconteça, que assim procedendo arranquemos sem querer o broto que ainda germina ou a flor que fenece, mas tem aroma.
A religião é um belo jardim, devemos caminhar sobre ele com cuidado e carinho, pois é nos sonhos que pisamos.


Assuero Gomes

assuerogomes@terra.com.br

domingo, 24 de abril de 2011

O RISO DIVINO





por MARCELO BARROS





“Ri melhor quem ri por último”, diz o povo. Os cristãos crêem que a ressurreição de Jesus é o ato pelo qual a vida vence a morte e o amor se revela mais forte do que todo poder do mundo. Antigos pais da Igreja grega diziam que a ressurreição é o riso divino sobre a maldade do mundo. A cultura ibérica que formou o Catolicismo na América Latina não favoreceu esta imagem de uma divindade alegre e bem-humorada. Ao contrário, as devoções são todas baseadas em imagens dolorosas e penitências sofridas. Já houve até quem escrevesse que os evangelhos mostram Jesus a chorar, mas nunca dizem que ele riu. Ao contrário, Luis Bunuel, no seu filme clássico La Voie Lactée, o mostra rindo e contando piada à mesa com os discípulos. Nisso, ele se assemelha ao Pai que, na Bíblia, pode ser visto como Deus que gosta de dança, da beleza da música e da arte (basta ver Prov 8, 22 e vários Salmos que incluem danças e cânticos de festa). Nos anos 70, Chico Buarque dizia que Deus é “um cara engraçado que gosta de brincadeira”. Já Woody Allen conclui que Deus tem grande senso de humor, mas quando olha o mundo como está, não encontra muitos motivos para rir.


Seja como for, Evangelho significa boa notícia de alegria. No Judaísmo, existe uma festa anual chamada “A Alegria da Lei”, na qual os rabinos e fiéis dançam com os textos sagrados nas mãos e bebem para comemorar a alegria da salvação. A festa da Páscoa e a celebração da ressurreição de Jesus são próprias do Cristianismo, mas antes mesmo da Bíblia ser escrita, no hemisfério norte, a primeira lua cheia da primavera era festejada com danças que imitavam a ressurreição da natureza que se renova (em hebraico, o nome para passo é Páscoa). Hoje, precisamos recuperar um estilo de fé alegre, confiante e otimista. Nossa confiança no futuro não vem tanto de uma fria análise da realidade que é cada vez mais complexa e dolorosa, mas de uma certeza de que somos chamados a fazer com que o amor vença as forças negativas do egoísmo, seja econômico, seja cultural e a vida triunfe sobre a morte em todos os seus aspectos.

Uma vez, nos anos 80, celebrei a Páscoa em meio ao sofrimento terrível de lavradores ameaçados de morte, por fazendeiros inescrupulosos e pistoleiros contratados para amedrontá-los. Estávamos cantando Aleluia e proclamávamos que se Jesus ressuscitou, o mundo ainda tem salvação. De repente, alguém gritou no meio do povo: “Como podemos cantar ressurreição e vida em meio a tanta dor e perigo de morte?”. Lembrei-me do salmo no qual os israelitas, escravos na Babilônia, se perguntavam: “Como cantar os cânticos do Senhor em uma terra de opressão?” (Sl 137). Respondi: “Cantamos ressurreição e vitória, não porque desconhecemos a cruz e a morte presentes atualmente neste mundo, mas porque cremos que a energia da ressurreição já está atuante em nossas dores e podemos, sim, retomar com mais força o projeto de vida em plenitude que a ressurreição de Jesus nos aponta”.


Hoje, a grande tentação é a do marasmo. Se olharmos em volta, podemos desanimar ao ver que ideologias sucumbiram, utopias parecem adormecidas e não se vê um projeto claro de futuro para o nosso país e para o mundo. A sociedade aparenta acomodamento e as organizações sociais se mostram fragmentadas. A celebração de uma nova primavera para as religiões e para o mundo sinalizam que mudar isso é possível. Para quem crê, a Bíblia aponta um projeto de transformação radical do mundo e de nós mesmos (“Venha a nós o teu Reino). A ressurreição de Jesus inaugura uma proposta ou projeto de vida nova para cada ser humano e para o mundo. Se abrimos os olhos e o coração, veremos que, mesmo em meio a muitas contradições, há alguns sinais de que algo novo está nascendo e crescendo. Os fóruns sociais, como encontros da humanidade revelam que o altermundialismo (“um novo mundo é possível!”), cada vez mais, se espalha mais pela humanidade. De países irmãos da América do Sul, o bolivarianismo nos chama a uma nova pátria grande e os povos indígenas, que pareciam vencidos, hoje tomam um protagonismo novo em todo o continente e com voz ativa na própria ONU. Mesmo se o Brasil ainda sobrevive sem um projeto social e político claro, a não ser um mero crescimento econômico, pouco atento à sustentabilidade da vida no planeta, precisamos retomar o diálogo da sociedade e dos grupos em função do que acreditamos e queremos para o nosso país. Para as Igrejas cristãs, é tempo de retomar a proposta dos bispos católicos, reunidos em Medellín, na Colômbia, em 1968: “Que se apresente em todo o continente o rosto de uma Igreja pobre, missionária e pascal (podemos compreender isso como uma Igreja que caminha e evolui aberta a mudanças); uma Igreja comprometida com a libertação de toda a humanidade e de todo ser humano em sua integridade” (Med 5, 15).

UMA REFLEXÃO PASCAL



por ASSUERO GOMES





Muitos de nós devem achar estranho, especialmente aos olhos de hoje, a teologia do sacrifício pascal, que enfoca a morte de Jesus após terríveis sofrimentos como algo necessário para a salvação da humanidade pecadora. Um Pai que aceita o sacrifício do Filho para se reconciliar com essa humanidade decaída.


Há uma imediata rememoração do sacrifício de Isaac (que significa ‘o sorriso de Deus’) que Abraão realizaria sem questionar, não fosse a interferência do anjo no último momento, substituindo o jovem por um cordeiro.


Por sua vez o quase sacrifício de Isaac nos remete aos sacrifícios de animais, geralmente os primogênitos dos rebanhos, do sexo masculino, sem defeitos congênitos, com as mais diversas finalidades, mas geralmente para expiação dos pecados ou como primícias ou ainda pelo nascimento de filhos.


Esses sacrifícios de animais foram uma evolução na concepção humana de Deus, pois substituíram o sacrifício de humanos, geralmente prisioneiros ou crianças separadas para tais cultos (até bem pouco tempo nas culturas maia e azteca), que por sua vez eram substituição do sacrifício dos próprios filhos primogênitos, aqueles que “abrem o útero” materno.
O que está por trás de tanta matança e tanto sangue praticamente em todas as religiões? Por que o ser humano associa o culto às divindades com oferendas de seres vivos, especialmente de humanos?


A ideia inicial é a de que haveria de ter uma “reparação” à divindade por ela ter criado e permitido a manutenção da vida na terra, e essa perpetuidade da vida só seria possível se as oferendas agradassem continuamente aos deuses. Isso criou uma casta muito poderosa de sacerdotes, pois só eles teriam o poder da intermediação, capaz de aplacar a ira divina e, por conseguinte a organização e a vida naquela cultura. Em muitas civilizações criaram uma cultura de “terror” chegando ao ponto de, por exemplo, os maias, realizarem mais de cinquenta mil sacrifícios humanos em questão de quinze dias, num verdadeiro show de carnificina, que a multidão extasiada apreciava em baixo das pirâmides.


Corpos decapitados e rios de sangue descendo pelas escadarias das referidas pirâmides, criando em seus seguidores um sentimento de “pertença” ao grupo daquela nação, fazendo com que se sentissem protegidos e abatendo qualquer ânimo de contestação do sistema. Acima da pirâmide estava o corpo de sacerdotes e logo acima deles o imperador e a imperatriz. Assim a organização do povo e de todo o sistema estava garantida. A segurança do estado assegurada pela religião oficial.


Uma coisa ainda mais profunda e tenebrosa aparece depois de iluminada pela psicanálise.
Os filhos masculinos têm inconscientemente o desejo de matar o pai, para tomar e ocupar seu lugar. Isso os gregos já sabiam há muito tempo, haja vista as várias e clássicas tragédias, em especial Édipo Rei. Inconscientemente também o sentimento de culpa se torna insuportável. Esse é um peso individual e coletivo. Fala-se até em um festim arquétipo onde os irmãos se reúnem, tramam e matam o pai. O medo do pai é algo tenebroso e obscuro nas mais profundas camadas do inconsciente, especialmente da criança. Aqui talvez nasça o sentimento de pecado (culpa) do ser humano.

A figura do pai terrível, vingador, que descobre todo e qualquer segredo oculto, que pode ver, estar e saber tudo, em todos os lugares, em qualquer tempo, está intrinsecamente associada à figura que fazemos de Deus. Um Deus inatingível, até insuportável diria.
Por isso não é de se estranhar que ninguém fique chocado com a matança dos primogênitos do Egito, pois ela está inserida no contexto de um deus forjado nos nossos temores mais profundos e nas nossas aspirações mais angustiantes.


Os rituais de passagem (pessach) requerem sangue, sempre sangue, pois em todas as culturas o sangue está relacionado à vida, não pelo conhecimento bioquímico das funções hematológicas, mas porque naquelas civilizações antigas como também na nossa, plena de violência, quando o sangue se esvai através de uma sangramento, a vida se esvai com ele.


O povo judeu substitui o sacrifício de passagem (da morte para a vida) pelo sacrifício do cordeiro (embora continue com as características do sacrifício do primogênito masculino) macho, primeira cria, sem defeito, que deverá ser morto sem a quebra de nenhum de seus ossos e sangrado segundo ritual restrito, morto ao final da tarde, e deverá ser comido compartilhado pela comunidade.

Mas como se reconciliar totalmente com um Deus que não mostra sua face, não permite que se faça alguma representação de sua pessoa, e cujo nome é uma incógnita “sou aquele que é” ou “estou aquele que está”? Como lhe oferecer sacrifícios ou construir uma morada onde se pudesse “contê-lo”, se toda carne é sua propriedade se todo espírito que a anima (sopro) é dele, e se toda a terra não é suficiente para que Ele repouse seus próprios pés? Como olhar para a face de Deus, olhos nos olhos, e não morrer?


Por essas ideias colocadas até agora, temos um esboço, do porquê a teologia do sacrifício pascal realizado em Jesus faz sentido e não é algo anacrônica, nem gratuita, nem ultrapassada, nem inócua. Ela é essencial.


Nas culturas orientais, especialmente na grega, a interlocução entre os homens e mulheres e os deuses era feita pelos semideuses, uma espécie de ser, meio homem, meio deus, geralmente fruto de uma relação carnal entre um deus do Olimpo e uma humana. Geralmente esses semideuses tinham características de super heróis e salvavam aqueles povos de outros povos inimigos ou da ira divina.


O Deus dos judeus é único. É Ele só. É auto-suficiente. Tudo foi criado por Ele e nele subsiste. Sem Ele nada há.


Como resgatar essa humanidade desse sentimento de culpa? Como mudar o conceito de pai que essa humanidade tem embutida no seu inconsciente que a atemoriza noite e dia?
Quando Jesus aparece nessa história aos seus não pareceu grande coisa. Mais um agitador naquela empoeirada região do fim do mundo romano. Mais um profeta no meio de tantos se dizendo enviado de Deus. Nem da cidade da elite sacerdotal era. Periferia de Israel. Poderia vir algo de bom da Galileia?


Pregando a iminência do Reino de Deus (um reino subversivo onde todos tinham o mesmo direito e o mesmo acesso aos bens, sem senhores nem escravos, sem sacerdotes, nem templos, nem reis). Pregando o perdão irrestrito sem necessidade de sacrifícios expiatórios, e essencialmente pregando o amor entre todos indistintamente.


Só quem percebeu o perigo desse novo pregador no primeiro momento, justiça se faça, foram os dirigentes do Templo. Nem os discípulos, nem os romanos, nem os escribas.
Morreria Jesus, sacrificado ao cair da tarde, estando a comunidade reunida, na sexta feira. Morreu sem ter os ossos quebrados, sendo aspergido com hissopo com vinagre, como se faz com o cordeiro, primogênito de Maria. E morreria ali mesmo e a história não teria nem registrado o fato, pois na última revolta de Espartacus, mais de três mil crucificados foram expostos nas laterais das vias romanas.


Houve uma experiência (ou várias) em que os amigos e alguns seguidores sentiram a presença de Jesus ressuscitado entre eles. Seguiram-se vários relatos.


Após o que, comunidades se formaram ao redor desses testemunhos e se tratou de resgatar a história dele adicionando suas experiências pessoais. Consequentemente construiu-se uma teologia que tentou explicar os fatos e as experiências vivenciados com ele.


A percepção de sua grandiosidade e profundidade foi sendo conhecida (revelada) de maneira paulatina, até a conclusão que Ele só poderia ser o próprio Deus encarnado, na pessoa do Filho. Daí a teologia do sacrifício do filho que resgata definitivamente toda a humanidade para sempre, se incorporar nele. Todo sacrifício que se fizer depois de sua morte e ressurreição é desnecessário, supérfluo e inócuo. Num último gesto de amor e loucura Ele permite que todos os homens e mulheres participem deste momento único na história da salvação, se dando em pão e vinho.

Assuero Gomes
assuerogomes@terra.com.br

ESPIRITUALIDADE PÓS-MODERNA




por FREI BETTO



O que caracteriza os tempos pós-modernos em que vivemos, segundo Lyotard, é a falta de resposta para a questão do sentido da existência. Por enquanto, estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio. A modernidade agoniza, solapada por esse buraco aberto no centro do coração pela cultura da abundância. Nunca a felicidade foi tão insistentemente ofertada. Está ao alcance da mão, ali na prateleira, na loja da esquina, publicitada em todo tipo de mercadoria. No entanto, a alma se dilacera, seja pela frustração de não dispor de meios para alcançá-la; seja por angariar os produtos do fascinante mundo do consumismo e descobrir que, ainda assim, o espírito não se sacia...


A publicidade repete incessantemente que todos temos a obrigação de ser feliz, de vencer, de nos destacarmos do comum dos mortais. Sobre esses recai o sentimento de culpa por seu fracasso. Resta-lhes, porém, uma esperança, apregoam os que deslocam a mensagem evangélica da Terra para o Céu: o caráter miraculoso da fé. Jesus é a solução de todos os problemas. Inútil procurá-la nos sindicatos, nos partidos, na mobilização da sociedade. Vivemos num universo fragmentado por múltiplas vozes, frente a um horizonte desprovido de absolutos, com a nossa própria imagem mil vezes distorcida no jogo de espelhos.


Engolida pelo vácuo pós-moderno, a religião tende a reduzir-se à esfera do privado; olvida sua função social; ampara-se no mágico; desencanta-se na autoajuda imediata. Nesse mundo secularizado, a religião perde espaço público, devido à racionalidade tecnocientífica, ao pluralismo de cosmovisões, à racionalidade econômica. Sobretudo, deixa de ser a única provedora de sentido. Seu lugar é ocupado pelo oráculo poderoso da mídia; os dogmas inquestionáveis do mercado; o amplo leque de propostas esotéricas. A crise da modernidade favorece uma espiritualidade adaptada às necessidades psicossociais de evasão, da falta de sentido, de fuga da realidade conflitiva.


Espiritualidade impregnada de orientalismo, de tradições religiosas egocêntricas, ou seja, centradas no eu, e não no outro, capazes de livrar o indivíduo da conflitividade e da responsabilidade sociais. Agora, manipula-se o sagrado, submetendo-o aos caprichos humanos. O sobrenatural se curva às necessidades naturais. A solução dos problemas da Terra reside no Céu. De lá derivam a prosperidade, a cura, o alívio. As dificuldades pessoais e sociais devem ser enfrentadas, não pela política, mas pela autoajuda, a meditação, a prática de ritos, as técnicas psicoespirituais.


Reduzem-se, assim, a dimensão social do Evangelho e a opção pelos pobres. O sagrado passa ser ferramenta de poder, para controle de corações e mentes, e também do espaço político. O Bem identifica-se com a minha crença religiosa. Bin Laden exige que o Ocidente se converta à sua fé, não ao bem, à justiça, ao amor. Essa religião, mais voltada à sua dilatação patrimonial que ao aprimoramento do processo civilizatório, evita criticar o poder político para, assim, obter dele benefícios: concessão de rádio e TV etc.


Ajusta a sua mensagem a cada grupos social que se pretende alcançar. Sua ideologia consiste em negar toda ideologia. Assim, ela sacraliza e fortalece o sistema cujo valor supremo, o capital, se sobrepõe aos direitos humanos. Como observava Comblin, as forças que hoje dominam são infinitamente superiores às das ditaduras militares. Aos pobres, excluídos deste mundo, resta se entregarem às promessas de que serão incluídos, cobertos de bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte. Frente a essa “teologia” fica a impressão de que a encarnação de Deus em Jesus foi um equívoco.


E que o próprio Deus mostra-se incapaz de evitar que sua Criação seja dominada pelas forças do mal. Felizmente, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas pastorais sociais, nos grupos de leitura popular da Bíblia, fortalece-se a espiritualidade de inserção evangélica. A que nos induz a ser fermento na massa e crê na palavra de Jesus, de que ele veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Fomos criados para ser felizes neste mundo. Se há dor e injustiça, não são castigos divinos, resultam de obra do ser humano e por ele devem ser erradicadas. Como diz Guimarães Rosa, “o que Deus quer ver é a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e amar, no meio da tristeza. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta.”

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org - twitter:@freibetto
Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

O DUELO ENTRE A VIDA E A MORTE



por LEONARDO BOFF




Num dos mais belos hinos da liturgia cristã da Páscoa, que nos vem do século XIII, se canta que “a vida e a morte travaram um duelo; o Senhor da vida foi morto mas eis que agora reina vivo”. É o sentido cristão da Páscoa: a inversão dos termos do embate. O que parecia derrota era, na verdade, uma estratégia para vencer o vencedor, quer dizer a morte. Por isso, a grama não cresceu sobre a sepultura de Jesus. Ressuscitado, garantiu a supremacia da vida.


A mensagem vem do campo religioso que se inscreve no humano mais profundo, mas seu significado não se restringe a ele. Ganha uma relevância universal, especialmente, nos dias atuais, em que se trava física e realmente um duelo entre a vida e a morte. Essse duelo se realiza em todas as frentes e tem como campo de batalha o planeta inteiro, envolvendo toda a comunidade de vida e toda a humanidade.


Isso ocorre porque, tardiamente, nos estamos dando conta de que o estilo de vida que escolhemos nos últimos séculos, implica uma verdadeira guerra total contra a Terra. No afã de buscar riqueza, aumentar o consumo indiscriminado (63% do PIB norte-americano é constituido pelo consumo que se transformou numa real cultura consumista) estão sendo pilhados todos os recursos e serviços possíveis da Mãe Terra.


Nos últimos tempos, cresceu a consciência coletiva de que se está travando um verdadeiro duelo entre os mecanismo naturais da vida e os mecanismos artificiais de morte deslanchados por nosso sistema de habitar, produzir, consumir e tratar os dejetos. As primeiras vítimas desta guerra total são os próprios seres humanos. Grande parte vive com insuficiência de meios de vida, favelizada e superexplorada em sua força de trabalho. O que de sofrimento, frustração e humilhação ai se esconde é inenarrável.


Vivemos tempos de nova barbárie, denunciada por vários pensadores mundiais, como recentemente por Tsvetan Todorov em seu livro O medo dos bárbaros (2008). Estas realidades que realmente contam porque nos fazem humanos ou cruéis, não entram nos cáculos dos lucros de nenhuma empresa e não são considerados pelo PIB dos paises, à exceção do Butão que estabeleceu o Indice de Felicidade Interna de seu povo. As outras vítimas são todos os ecossstemas, a biodiversidade e o planeta Terra como um todo.Recentemente, o prêmio Nobel em economia, Paul Krugmann, revelava que 400 famílias norte-americanas detinham sozinhas mais renda que 46% da população trabalhadora estadounidense. Esta riqueza não cái do céu. É feita através de estratégias de acumulação que incluem trapaças, superespeculação financeira e roubo puro e simples do fruto do trabalho de milhões.


Para o sistema vigente e devemos dizê-lo com todas as letras, a acumulação ilimitada de ganhos é tida como inteligência, a rapinagem de recursos públicos e naturais como destreza, a fraude como habilidade, a corrupção como sagacidade e a exploração desenfreada como sabedoria gerencial. É o triunfo da morte. Será que nesse duelo ela levará a melhor?O que podemos dizer com toda a certeza que nessa guerra não temos nenhuma chance de ganhar da Terra. Ela existiu sem nós e pode continuar sem nós. Nós sim precisamos dela.


O sistema dentro do qual vivemos é de uma espantosa irracionalidade, própria de seres realmente dementes.Analistas da pegada ecológica global da Terra, devido à conjunção das muitas crises existentes, nos advertem que poderemos conhecer, para tempos não muito distantes, tragédias ecológico-humanitárias de extrema gravidade.É neste contexto sombrio que cabe atualizar e escutar a mensagem da Páscoa. Possivelmente não escaparemos de uma dolorosa sexta-feira santa. Mas depois virá a ressurreição. A Terra e a Humanidade ainda viverão.

CRUZ: SUPLÍCIO OU ESPERANÇA?



por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



A novidade da revelação cristã de Deus exige um ser humano novo, uma nova criatura. Sendo revelação de um mistério, só pode ser captada pela fé. Por isso, quando os Evangelhos apresentam Jesus, seus atos e palavras, eles o fazem de maneira misteriosa e velada.Aqueles que no tempo de Jesus detinham o poder religioso e a interpretação oficial da verdadeira religião, declarando-a única e legítima, interpretaram Jesus como alguém que agia movido pelo espírito de Belzebu, e não pelo Espírito Santo. Consequentemente, por ser interpretado assim, Jesus devia morrer. Esse conflito o levou à condenação e à morte.


É aí que se levanta a grande questão que interpela a teologia e coloca a fé em cheque. O acontecimento da condenação e morte de Jesus é que vai pôr o selo definitivo na questão sobre sua natureza divina e sobre a identidade do Deus da revelação. Jesus é preso, acusado, condenado, torturado e morto. E diante de sua morte, seus seguidores silenciam e se dispersam, deixando-o sozinho. Fracassado e abandonado, ele e seu projeto são expostos à execração pública, aparentemente fracassados e destruídos.


E não somente as testemunhas se calam. Deus também se cala. O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, que não suportou ver o povo sofrendo no Egito e no cativeiro da Babilônia, que mantinha com Jesus de Nazaré diálogo permanente e amoroso, de Pai para Filho, em profunda intimidade, retira-se e silencia diante da tragédia por que passa o Filho bem-amado.A cruz de Jesus é o sinal de seu amor fiel à causa do reino de Deus.


Não se pode separar a morte de Jesus do resto de sua vida. O martírio de Jesus toma seu sentido pleno como consequência dramática e coerente de sua mensagem e de sua obra; a cruz é o símbolo de sua absoluta fidelidade ao Pai. É, portanto, inseparável das perseguições e conflitos que a precederam; dos critérios, opções e atitudes de Jesus; do conteúdo de sua pregação.Porque Jesus revelou o Deus verdadeiro; questionou a decadência religiosa e as deformações do discurso oficial sobre Deus; fez publicamente dos pobres e pecadores os preferidos de sua solicitude; combateu os ídolos de sua sociedade; questionou seus falsos valores; Jesus desatou o conflito que o levou à cruz. Portanto, para o cristão, o sofrimento – ou seja, as cruzes da vida - são a sequela coerente do seguimento fiel de Jesus Cristo. Frequentemente certa devoção cristã separou a cruz do resto da vida de Jesus. Isso fez com que a cruz fosse também dissociada da vida cristã em sua cotidianidade.


Na verdade, ela está sempre presente, já que seguir Jesus é tornar-se interpelação e contradição no meio do mundo. Em seu aspecto sombrio e negativo, a cruz nos ensina que o mal estará sempre presente enquanto dure a história. Por mais que o combatamos, sempre reaparece de novas maneiras. Sua persistência é uma trágica realidade. Sua oposição aos valores do Reino de Deus é constante. Por isso, é capaz, hoje como sempre, de trazer para a Igreja e sua missão duros fracassos.A cruz nos ensina que a conversão do mundo contém a dimensão profunda de uma luta contra o mal (o pecado), expresso hoje em formas concretas: a corrida armamentista, todas as espécies de ameaças contra a vida, a corrupção do amor, a exploração do homem pelo homem, a fome, a miséria, o materialismo e todas as formas de injustiça, a agressão à natureza e ao planeta colocando em risco mortal o futuro da vida.


A Paixão e morte de Jesus de Nazaré, encarnação da inocência e do bem, recorda-nos hoje em dia que os inocentes e justos da terra, os fracos, os pobres e os desamparados continuam sendo crucificados. Pela cruz, a paixão de Cristo é a paixão do mundo, e a paixão do mundo é a paixão de Cristo.Mas a paradoxo é que a cruz é decisivamente também sinal de esperança. Apesar da presença do mal, sobrepondo-se a ele, a cruz é sinal de esperança certa no reino, de sua eficácia e de sua vitória definitiva sobre todas as formas de pecado.


O paradoxo da cruz consiste em que o que em primeira instância parece um fracasso - a morte de Jesus e o fracasso da causa do reino; a perseguição e a derrota dos bons e o aparente triunfo do mal - por causa do poder de Deus que ressuscita Jesus dentre os mortos, transforma a cruz em fonte de nova vida e de libertação total, e constitui o começo irreversível da destruição do mal em sua raiz.O mal, para ser superado, requer redenção.


A perseguição e a cruz são a dimensão redentora da fidelidade. Ali onde os meios humanos são impotentes para atacar as raízes de todos os males e de todas as injustiças, o sofrimento e as cruzes que acompanham a vida cristã incorporam tudo aquilo que sofrem os discípulos à perseguição e ao martírio do Mestre, Jesus de Nazaré. Assim "completamos o que falta à paixão de Cristo em benefício de seu Corpo, a Igreja" (Col 1,24).A cruz é o sinal da esperança cristã, porque nos ensina que na história o mal, o egoísmo, a injustiça, não têm a última palavra. A última palavra na história é do bem, da fraternidade, da justiça e da paz encarnados e testemunhados por Jesus e confirmados por Deus Pai na Ressurreição de Seu Filho.

Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

SOLICITAÇÃO

Amigos e amigas Estamos encaminhando uma solicitação de solidariedade ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis em função dos trabalhos nos meios pobres da cidade. Agradecemos a compreensão Leonardo Boff Petrópolis, 18 de abril de 2011. Prezados amigos e amigas Estamos no tempo da Quaresma e da Páscoa. É ocasião de pensarmos em seu sentido profundo de passagem e transição não apenas da escravidão para a liberdade (sentido judaico) ou da morte para a ressurreição (sentido cristão) mas também da centração em nós mesmos para a solidariedade para com os que mais sofrem. É o sentido existencial desta festa. É neste espírito pascal que venho solicitar o exercício da solidariedade de cada um de vocês sempre na medida do possível. Desde 2002 venho escrevendo semanalmente um artigo sobre os mais diferentes temas como ecologia, etica, espiritualidade, análises da situação atual da Terra e da Humanidade. A acolhida tem sido tão generosa que grupos, por sua própria conta, os tem traduzido para o espanhol, ingles, italiano e alemão. Tenho enviado o texto a muitos jornais brasileiros, especialmente do interior, e a pessoas e entidades que compartilham semelhante visão de muito. Tudo é oferecido voluntariamente, sem qualquer ônus. Agora vem a minha solicitação. Estou ligado, desde o início, ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis do qual sou presidente de honra e que existe há mais de 30 anos. Temos trabalhado sempre com os mais vulneráveis e marginalizados da sociedade. Importa dizer que Petrópolis, embora sua fama de cidade imperial, tem mais de cem comunidades pobres (favelas). A perspectiva é conferir autonomia às pessoas, atender suas muitas urgências a partir da perspectiva deles mesmos. O que mais fizemos nestes anos foi colaborar na organização dos meios populares e até de sindicatos livres. A cidade, de tempos em tempos, é assolada por grandes deslizamentos nos quais muitos perdem suas casas e as vidas. Há anos, no verão de 1992/1993 quando cerca de 170 pessoas morreram e centenas de casas foram destruidas, foi o Centro de Defesa, por causa da omissão do poder público nacional e local, que assumiu a organização do desabrigados. A partir daquele momento o Movimento dos Desabrigados com o apoio e participação do Centro de Defesa conseguiu moradias para 1500 pessoas, a construção de cerca de 200 casas em mutirão e o assentamento de 500 outras pessoas num conjunto habitacional. Entre outros projetos atualmente cerca de 120 jovens de comunidade frequentam as diversas iniciativas do projeto Arte/Educação para a ecocidadania. O tsunami interno que tivemos em janeiro deste ano no qual muitíssimos ficaram desabrigados e centenas morreram o Centro teve e tem uma atuação decisiva. Sempre temos trabalhado com aperto financeiro mas cheios de generosidade em favor dos invisíveis e esquecidos de nossa sociedade que, nós cristãos, os chamamos como Jesus os chamou de “meus irmãos e minhas irmãs menores”. Nesse momento estamos, mais que em outras ocasiões, necessitados. Contamos com sua reciprocidade. Caso você se sinta sensibilizado qualquer contribuição, mesmo que pequena, será benvinda. A conta é a seguinte: Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis Banco do Brasil Agencia 0080-9 Conta corrente 26973-5 CNPJ 27.219.757/0001-27 Se alguém precisar de recibo dirija-se à Carla, secretária do Centro cujo e-mail é cddh@cddh.org.br Visite nosso portal ainda em construção e conheça um pouco mais de nossos vários projetos: Façamos uma corrente do bem divulgando esta solicitação para pessoas ou entidades próximas a você. Agradecemos pela generosidade e desejamos uma feliz e solar festa de Páscoa. Leonardo Boff Presidente de honra do CDDH

TRAGÉDIA CARIOCA

por FREI BETTO
Doze adolescentes, de 13 a 15 anos, foram cruelmente assassinados, a 7 de abril, nas salas de aula de uma escola de Realengo, Rio. Outras tantas ficaram feridas. O criminoso, de 23 anos, disparou na própria cabeça a 66a bala saída de seus dois revólveres. Massacre como este nunca havia ocorrido no Brasil. São frequentes nos EUA. E enchem o prato da mídia em busca de audiência. A cada telejornal, reaparecem as fotos das crianças, o depoimento de parentes e amigos, os sonhos que nutriam... Em Antígona, de Sófocles (496-405 a.C.), a mulher que dá nome à peça rebela-se contra o Estado que a proíbe de sepultar seu irmão. Hoje, a exploração midiática torna os corpos insepultos. As famílias das crianças sacrificadas, ontem no anonimato, agora ocupam manchetes e são alvos de holofotes. É a morte como sucesso de público! O assassino foi o único culpado? Tudo decorreu de um “monstro” movido por transtornos mentais? A sociedade que engendra esse tipo de pessoa não tem nenhuma responsabilidade? Um gesto brutal como o do rapaz que matou à queima-roupa 11 meninas e 1 menino não é fruto de geração espontânea. Há um histórico de distúrbios familiares, humilhações escolares (bulliyng) e discriminações sociais, indiferença de adultos frente a uma criança com notórios sinais de desajustes. Quando pais têm mais tempo para dedicar à internet e aos negócios que aos filhos; adolescentes ingerem bebida alcoólica misturada a energéticos; alunos ameaçam professores; crianças se recusam a dar lugar no ônibus aos mais velhos... o sinal vermelho acende e o alarme deveria soar. O que esperar de uma sociedade que exalta a criminalidade, os mafiosos, a violência, através de filmes e programas de TV, e quase nunca valoriza quem luta pela paz, é solidário aos pobres, trabalha anonimamente em favelas para, através do teatro e da música, salvar crianças de situações de risco? Há anos acompanho o trabalho do Grupo Tear de Dança, que congrega jovens de baixa renda da zona Norte do Rio. Embora seus espetáculos sejam de boa qualidade artística, sei bem das imensas dificuldades de patrocínio, de divulgação, de espaço na mídia para noticiar suas apresentações. É triste e preocupante ver o talento de um jovem bailarino se perder porque, premido pela necessidade, ele deve retornar ao trabalho de ajudante de pedreiro ou, a bailarina, de vendedora ambulante. Como evitar novos massacres semelhantes ao de Realengo? Quase dois terços dos eleitores brasileiros aprovaram, no plebiscito de 2005, o comércio de armas. As lojas vendem armas de brinquedo presenteadas às crianças. Os videogames ensinam como se tornar assassino virtual. Há no Brasil 14 milhões de armas em mãos de civis, das quais metade ilegais, como as duas que portava o assassino dos alunos da escola Tasso da Silveira. Segundo o deputado Marcelo Freixo (PSOL), existem no estado do Rio 805 mil armas em mãos de civis, da quais 581 mil são ilegais, muitas em mãos de bandidos. “O cidadão que compra uma arma para ter em casa, pensando em se proteger, acaba armando os criminosos”, afirmou no Rio o delegado Anderson Bichara, da Delegacia de Repressão ao Tráfico Ilícito de Armas. Como dar um basta à violência se o Instituto Nobel da Noruega concede o prêmio da Paz a guerreiros como Henry Kissinger, Menachem Begin, Shimon Peres e Barak Obama? Monstro é tão-somente quem entra armado numa escola, num supermercado, num cinema, e mata a esmo? Como qualificar a decisão do governo dos EUA de, após vencer a guerra contra a Alemanha e o Japão, jogar a bomba atômica sobre a pacífica população de Hiroshima, a 6 de agosto de 1945 (140 mil mortos), e três dias depois outra bomba atômica sobre a população de Nagasaki (80 mil mortos)? Hitler e Stalin também podem ser qualificados de “monstros” e seus crimes são sobejamente conhecidos. Mas não há uma certa domesticação de nossas consciências e sensibilidades quando somos coniventes, ainda que por inação ou omissão, frente ao massacre dos povos iraquiano, afegão e líbio? A paz jamais virá como resultado do equilíbrio de forças. Há nove séculos o profeta Isaías alertou-nos: ela só vigorará como fruto de justiça. Mas quem tem ouvidos para ouvir? O governo Dilma, com razão, não gostou do relatório do Departamento de Estado norte-americano sobre os direitos humanos no Brasil, divulgado semana passada. O Itamaraty fez uma nota de protesto. É pouco. Só há uma resposta à altura: o Brasil emitir um relatório sobre os direitos humanos nos EUA.


Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre a Fé e a Ciência” (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org - twitter:@freibetto Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

A DOENÇA CHAMADA HOMEM


por LEONARDO BOFF


Esta frase é de F. Nietzsche e quer dizer: o ser humano é um ser paradoxal, são e doente: nele vivem o santo e o assassino. Bioantropólogos, cosmólogos e outros afirmam: o ser humano é, ao mesmo tempo, sapiente e demente, anjo e demônio, dia-bólico e sim-bólico. Freud dirá que nele vigoram dois instintos básicos: um de vida que ama e enriquece a vida e outro de morte que busca a destruição e deseja matar. Importa enfatizar: nele coexistem simultaneamente as duas forças. Por isso, nossa existência não é simples mas complexa e dramática. Ora predomina a vontade de viver e então tudo irradia e cresce. Noutro momento, ganha a partida a vontade de matar e então irrompem violências e crimes como aquele que ocorreu recentemente. Podemos superar esta dilaceração no humano? Foi a pergunta que A. Einstein colocou numa carta de 30 de julho de 1932 a S. Freud:”Existe a possibilidade de dirigir a evolução psíquica a ponto de tornar os seres humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição”? Freud respondeu realisticamente:”Não existe a esperança de suprimir de modo direto a agressividade humana. O que podemos é percorrer vias indiretas, reforçando o princípio de vida (Eros) contra o princípio de morte(Thanatos). E termina com uma frase resignada:”esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderemos morrer de fome antes de receber a farinha”. Será este o nosso destino? Por que escrevo isso tudo? É em razão do tresloucado que no dia 5 abril numa escola de um bairro do Rio de Janeiro matou à bala 12 inocentes estudantes entre 13-15 anos e deixou 12 feridos. Já se fizeram um sem número de análises, foram sugeridas inúmeras medidas como a da restrição da venda de armas, de montar esquemas de segurança policial em cada escola e outras. Tudo isso tem seu sentido. Mas não se vai ao fundo da questão. A dimensão assassina, sejamos concretos e humildes, habita em cada um de nós. Temos instintos de agredir e de matar. É da condição humana, pouco importam as interpretações que lhe dermos. A sublimação e a negação desta anti-realidade não nos ajuda. Importa assumi-la e buscar formas de mantê-la sob controle e impedir que inunde a consciência, recalque o instinto de vida e assuma as rédeas da situação. Freud bem sugeria: tudo o que faz criar laços emotivos entre os seres humanos, tudo o que civiliza, toda a educação, toda arte e toda competição pelo melhor, trabalha contra a agressão e a morte. O crime perpretado na escola é horripilante. Nós cristãos conhecemos a matança dos inocentes ordenada por Herodes. De medo que Jesus, recém-nascido, mais tarde iria lhe arrebatar o poder, mandou matar todas as crianças nas redondezas de Belém. E os textos sagrados trazem expressões das mais comovedoras:”Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e gemido: é Raquel que chora os filhos e não quer ser consolada porque os perdeu”(Mt 2,18). Algo pareceido ocorreu com os familiares das vítimas. Esse fato criminoso não está isolado de nossa sociedade. Esta não tem violência. Pior. Está montada sobre estruturas permanentes de violênca. Aqui mais valem os privilégios que os direitos. Marcio Pochmann em seu Atlas Social do Brasil nos traz dados estarrecedores: 1% da população (cerca de 5 mil famílias) controlam 48% do PIB e 1% dos grandes proprietários detém 46% de todas as terras. Pode-se construir uma sociedade de paz sobre semelhante violência social? Estes são aqueles que abominam falar de reforma agrária e de modificações no Código Florestal. Mais valem seus privilégios que os direitos da vida. O fato é que em pessoas pertubadas psicologicamente, a dimensão de morte, por mil razões subjacentes, pode aflorar e dominar a personalidade. Não perde a razão. Usa-a a serviço de uma emoção distorcida. O fato mais trágico, estudado minuciosamente por Erich Fromm (Anatomia da destrutividade humana, 1975) foi o de Adolf Hittler. Desde jovem foi tomado pelo instinto de morte. No final da guerra, ao constatar a derrota, pede ao povo que destrua tudo, envene as águas, queime os solos, liquide os animais, derrube os monumentos, se mate como raça e destrua o mundo. Efetivamente ele se matou e todo os seus seguidores próximos. Era o império do princípio de morte. Cabe a Deus julgar a subjetividade do assassino da escola de estudantes. A nós cabe condenar o que é objetivo, o crime de gravíssima perversidade e saber localizá-lo no âmbito da condição humana. E usar todas as estratégias positivas para enfrentar o Trabalho do Negativo e compeender os mecanismos que nos podem subjugar. Não conheço outra estratégia melhor que buscar uma sociedade justa, na qual o direito, o respeito, a cooperação e a educacção e saúde para todos sejam garantidos. E o método nos foi apontado por Francisco de Assis em sua famosa oração: levar amor onde reinar o ódio, o perdão onde houver ofensa, a esperança onde grassar o desespero e a luz onde dominar as trevas. A vida cura a vida e o amor supera em nós o ódio que mata.

BRASILEIRINHOS

por MARIA CLARA BINGEMER



Infelizmente não se trata do belo chorinho de Waldir Azevedo. Nem de nada que a isso se assemelhe. A não ser o vocábulo “choro”, que na obra de Waldir significa graça, molejo e dança ritmada. Mas no triste assunto que aqui nos ocupa, “choro” quer dizer pranto desesperado, dor inconsolável de famílias inteiras e legiões de amigos. Na verdade, de toda uma cidade, um país. “Choro” era o que embargava a voz da presidente Dilma Rousseff ao se referir às jovens vítimas do ataque de Realengo: brasileirinhos. Pequenos, jovens, indefesos cidadãos retirados da vida tão cedo. A morte dos 12 adolescentes – crianças ensaiando o rito de passagem para a idade adulta - provocada pela fúria desenfreada de um psicopata na escola Tasso da Silveira, em Realengo, Rio de Janeiro, passará à história como um dos episódios mais dilacerantes que a cidade já viveu. Começou cedo naquela manhã. Ligava-se a televisão e lá estava. O espetáculo era desolador e macabro. Policiais tentando conter pais, parentes e amigos dos alunos da escola com um inútil cordão de isolamento. E a tragédia acontecida minutos, horas antes, ainda sem explicação. E as mães, com olhar esgazeado, queriam informação sobre onde estavam seus filhos. De suas gargantas saía aquela voz deformada pela dor que quer saber e ao mesmo tempo não quer. Dos 12 mortos, dez eram meninas. Bonitas, cabelos longos, graciosas e charmosas. Estreando a feminilidade, vivendo os primeiros amores. O assassino mirou suas faces, o centro de sua beleza. Queria desfigurá-las, destruí-las. O reconhecimento dos corpos pelos pais era difícil. Dor sobre dor aconteceu no IML. A carta deixada pelo assassino permite entrever traumas profundíssimos, um psiquismo absolutamente tenebroso, onde o único lampejo de afeto se dirige à mãe adotiva junto à qual pede para ser enterrado. Estaria na morte da mãe a raiz do seu aparente ódio pelo outro sexo? Ou nos retorcidos e obscuros elementos religiosos relativos a purezas e toques deixados no seu testamento? Não importa agora. Ao menos não importa tanto quanto o fato de que um desequilibrado conseguiu levar armas e munição abundantes para perpetrar seu bárbaro crime. Mais: aparelhos sofisticados para acelerar a recarga das armas que pretendia descarregar integralmente sobre suas vítimas. No passado recente de Wellington Menezes, uma solidão sempre mais profunda, um isolamento em uma casa distante do bairro onde cresceu e da escola onde estudou. Barba longa cortada poucos dias antes do crime. Horas e horas na internet e na TV. Sua doença ia crescendo, tornando-se mais e mais grave, até explodir na matança caótica do último dia 7 de abril. A tentativa de rastrear as armas com as quais matou as 12 crianças e feriu outras tantas identificou uma pessoa de quem uma delas fora roubada. Como Wellington a terá obtido? E a farta munição que carregava em sua mochila e usou para atirar a torto e a direito, matando e ferindo? Isso é o que importa saber. Não tanto para expô-lo à execração pública. Não tanto para morbidamente fazer as famílias já tão golpeadas reviverem a tragédia que para sempre marcará suas vidas. Mas sim para retomar uma discussão que o Brasil espera e necessita e que foi interrompida em 2005. O plebiscito do desarmamento, acontecido há seis anos, levava consigo uma consistente esperança de que a liberação da compra de armas fosse abolida no país. Muitas pessoas, grupos e instituições que lutam pela paz fizeram campanha, se empenharam. Mas o resultado foi uma derrota fragorosa nas urnas. Ganhou o lobby da indústria armamentista, venceu o medo de pessoas que ainda creem que estão mais seguras contra a violência possuindo armas que multiplicam e perpetram a mesma violência que temem, apesar de todas as explicações e provas em contrário. No entanto, a tragédia de Realengo tem que trazer de volta a discussão e gerar um novo referendo. Não é possível que armas trafeguem livremente pelas mãos de assassinos, doentes perversos, ceifando vidas e destruindo o futuro da cidade e da nação. Retomar a luta pelo desarmamento é, a partir da última quinta feira, obrigação de todo brasileiro. A memória dos 12 brasileirinhos vitimados em Realengo é um instigante convite a fazer isso rápida e decididamente.


Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

domingo, 10 de abril de 2011

CRIANÇA, ENTRE LIVROS E TV

por FREI BETTO Foi o psicanalista José Ângelo Gaiarsa, um dos mestres de meu irmão Léo, também terapeuta, que me despertou para as obras de Glenn e Janet Doman, do Instituto de Desenvolvimento Humano de Filadélfia. O casal é especialista no aprimoramento do cérebro humano. Os bichos homem e mulher nascem com cérebros incompletos. Graças ao aleitamento, em três meses as proteínas dão acabamento a este órgão que controla os nossos mínimos movimentos e faz o nosso organismo secretar substâncias químicas que asseguram o nosso bem-estar. Ele é a base de nossa mente e dele emana a nossa consciência. Todo o nosso conhecimento, consciente e inconsciente, fica arquivado no cérebro. Ao nascer, nossa malha cerebral é tecida por cerca de 100 bilhões de neurônios. Aos seis anos, metade desses neurônios desaparecem como folhas que, no outono, se desprendem dos galhos. Por isso, a fase entre zero e 6 anos é chamada de “idade do gênio”. Não há exagero na expressão, basta constatar que 90% de tudo que sabemos de importante à nossa condição humana foram aprendidos até os 6 anos: andar, falar, discernir relações de parentesco, distância e proporção; intuir situações de conforto ou risco, distinguir sabores etc. Ninguém precisa insistir para que seu bebê se torne um novo Mozart que, aos 5 anos, já compunha. Mas é bom saber que a inteligência de uma pessoa pode ser ampliada desde a vida intrauterina. Alimentos que a mãe ingere ou rejeita na fase da gestação tendem a influir, mais tarde, na preferência nutricional do filho. O mais importante, contudo, é suscitar as sinapses cerebrais. E um excelente recurso chama-se leitura. Ler para o bebê acelera seu desenvolvimento cognitivo, ainda que se tenha a sensação de perda de tempo. Mas é importante fazê-lo interagindo com a criança: deixar que manipule o livro, desenhe e colora as figuras, complete a história e responda a indagações. Uma criança familiarizada desde cedo com livros terá, sem dúvida, linguagem mais enriquecida, mais facilidade de alfabetização e melhor desempenho escolar. A vantagem da leitura sobre a TV é que, frente ao monitor, a criança permanece inteiramente receptiva, sem condições de interagir com o filme ou o desenho animado. De certa forma, a TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se sonhasse por ela. A leitura suscita a participação da criança, obedece ao ritmo dela e, sobretudo, fortalece os vínculos afetivos entre o leitor adulto e a criança ouvinte. Quem de nós não guarda afetuosa recordação de avós, pais e babás que nos contavam fantásticas histórias? Enquanto a família e a escola querem fazer da criança uma cidadã, a TV tende a domesticá-la como consumista. O Instituto Alana, de São Paulo, do qual sou conselheiro, constatou que num período de 10 horas, das 8h às 18h de 1º de outubro de 2010, foram exibidos 1.077 comerciais voltados ao público infantil; média de 60 por hora ou 1 por minuto! Foram anunciados 390 produtos, dos quais 295 brinquedos, 30 de vestuário, 25 de alimentos e 40 de mercadorias diversas. Média de preço: R$ 160! Ora, a criança é visada pelo mercado como consumista prioritária, seja por não possuir discernimento de valor e qualidade do produto, como também por ser capaz de envolver afetivamente o adulto na aquisição do objeto cobiçado. Há no Congresso mais de 200 projetos de lei propondo restrições e até proibições de propaganda ao público infantil. Nada avança, pois o lobby do Lobo Mau insiste em não poupar Chapeuzinho Vermelho. E quando se fala em restrição ao uso da criança em anúncios (observe como se multiplica!) logo os atingidos em seus lucros fazem coro: “Censura!” Concordo com Gabriel Priolli: só há um caminho razoável e democrático a seguir, o da regulação legal, aprovada pelo Legislativo, fiscalizada pelo Executivo e arbitrada pelo Judiciário. E isso nada tem a ver com censura, trata-se de proteger a saúde psíquica de nossas crianças. O mais importante, contudo, é que pais e responsáveis iniciem a regulação dentro da própria casa. De que adianta reduzir publicidade se as crianças ficam expostas a programas de adultos nocivos à sua formação? Erotização precoce, ambição consumista, obesidade excessiva e mais tempo frente à TV e ao computador que na escola, nos estudos e em brincadeiras com amigos, são sintomas de que seu ou sua querido(a) filho(a) pode se tornar, amanhã, um amargo problema. Frei Betto é escritor, autor de “Maricota e o mundo das letras” (Mercuryo Jovem), entre outros livros. Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

UM DESAFIO Á INTELIGÊNCIA ACADÊMICA

por LEONARDO BOFF No dia 27 de março morreu aos 88 anos de idade perto de Salvador o teólogo da libertação José Comblin. Belga de nascimento, optou por trabalhar na América Latina, pois se dava conta de que o Cristianismo europeu era crepuscular e via em nosso Subcontinente espaço para a criatividade e um novo ensaio da fé cristã articulada com a cultura popular. Ele incarnava o novo modo de fazer teologia, inaugurado pela Teologia da Libertação, que é ter um pé na miséria e outro na academia. Ou dito de outro modo: articular o grito do oprimido com a fé libertadora da mensagem de Jesus, partindo sempre da realidade contraditória e não de doutrinas e buscar coletivamente uma saida libertadora a partir do povo. Viveu pobre e despojado no Nordeste brasileiro. E mesmo lá, onde se presume não haver condições para uma produção intelectual aprimorada, escreveu dezenas de livros, muitos deles de grande erudição. Logicamente aproveitava as temporadas que passava na Universidade de origem, a de Lovaina, para se reciclar. Assim escreveu um dos melhores livros sobre a Ideologia da Segurança Nacional, dois volumes sobre a Teologia da Revolução, um detalhado estudo sobre o Neoliberalismo: a ideologia dominante na virada do século. E dezenas de livros teológicos, exegéticos e de espiritualiadade entre os quais destaco: O Tempo da Ação; Cristãos rumo ao século XXI e Vocação para a Liberdade. Foi assessor de Dom Helder Câmara em sua luta pelos pobres e de Dom Leônidas Proaño, bispos dos índios em Riobamba no Equador. Devido a suas idéias, foi em expulso do Brasil pelos militares em 1972. Foi trabalhar no Chile de onde os militares também o expulsaram em 1980. De regresso ao Brasil, se dedicou a dar corpo à sua profunda convicção: a de que o novo cristianismo no Brasil deverá nascer da fé do povo. Criou várias iniciativas de evangelização popular que vinham sob o nome de Teologia da Enxada. Inspirou-se no Padre Ibiapina e do Padre Cícero, os grandes missionários do Nordeste, pois mais que administrar sacramentos e fortalecer a instituição eclesiástica, exerciam a pastoral do aconselhamento e da consolação dos oprimidos, coisa que eles mais buscam. Ele é um dos melhores representantes do novo tipo de intelectual que caracteriza os teólogos da libertação e dos agentes de pastoral que estão nesta caminhada: operar a troca de saberes, vale dizer, tomar a sério o saber popular,”de experiências feito”, banhado de suor e sangue mas rico em sabedoria e articulá-lo com o saber acadêmico, crítico e comprometido com as transformações sociais. Essa troca enriquece a uns e a outros. O intelectual repassa ao povo um saber que o ajuda avançar e o povo obriga o intelectual a pensar os problemas candentes e se enraizar no processo histórico. A Intelligentzia acadêmica possui uma dívida social enorme para com os pobres e marginalizados. Em grande parte as universidades representam macroaparelhos de reprodução da sociedade discricionária e fábricas formadoras de quadros para o funcionamento do sistema imperante. Mas há de se reconhecer também, não obstante seus limites, o fato de que foi e é um laboratório do pensamento contestatário e libertário. Mas não houve ainda um encontro profundo entre a universidade e a sociedade, fazendo uma aliança entre a inteligência acadêmica e a miséria popular. São mundos que caminham paralalelos e não são as extensões universitárias que cobrirão esse fosso. Tem que ocorrer uma verdadeira troca de saberes e de experiências. Ignorante é aquele que imagina ser o povo ignorante. Este sabe muito e descobriu mil formas de viver e sobreviver numa sociedade que lhe é adaversa. Se há algum mérito nos teólogos da libertação (eles existem aqui e pelo mundo afora e Roma não conseguiu exterminá-los) é ter feito este casamento. Por isso não se pode pensar num teólogo da libertação senão metido nos dois mundos, para juntos tentarem gestar uma sociedade mais equalitária que, no dialeto cristão, tenha mais bens do Reino que são justiça, dignidade, direito, solidariedade, compaixão e amor. O Padre José Comblin nos deixou o exemplo e o desafio.

Leonardo Boff escreveu Teologia do cativeiro e da libertação, Vozes 1998.

JOSÉ COBLIN: O LEGADO DO PROFETA

POR MARIA CLARA BINGEMER A Igreja brasileira vive na saudade o luto por José Comblin, morto aos 88 anos, no dia 27 de março. Belga de nascimento, brasileiro por adoção, latino-americano por vocação, esse missionário que deu sua vida junto aos pobres e sofredores do sul do Equador deixa um vazio nestes nossos tempos carentes de profetas. Sua voz de fogo e sua razão clara e lúcida certamente provocam imensa nostalgia. O Padre José, como era carinhosamente chamado pelo povo nordestino a quem servia, nasceu em Bruxelas, em 1923. Foi ordenado sacerdote em 1947 e obteve o título de doutor em Teologia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica. Onze anos depois de ordenado, em 1958, Comblin desembarcou em Campinas. Aqui foi assessor da JOC (Juventude Operária Católica) e professor da Escola Teológica dos Dominicanos em São Paulo, tendo como alunos alguns frades notáveis na história brasileira como Frei Betto e Frei Tito Alencar Lima, este torturado barbaramente nos cárceres da ditadura militar brasileira, o que o levou à depressão e ao suicídio na França. Posteriormente lecionou na Faculdade de Teologia do Chile, mas voltou para Recife a convite de Dom Helder Câmara, onde foi professor do famoso ITER (Instituto de Teologia do Recife), pondo em prática iniciativas criativas para colocar a teologia ao alcance do povo mais pobre do meio rural. Organizou muitos seminários rurais em Pernambuco e Paraíba e ali encontrou inspiração e base para uma Teologia da Enxada. Por suas idéias e prática, Pe. Comblin passou a ser persona non grata para o regime militar e foi expulso do Brasil, em 1971. Exilou-se no Chile por oito anos. Dali foi também expulso pela ditadura de Pinochet, em 1980. Voltou ao Brasil e radicou-se na Paraíba, dedicando-se à formação de seminaristas rurais e animadores de comunidades eclesiais de base. Alternava essa práxis docente e reflexiva em meio aos pobres com aulas no curso de pós-graduação de missiologia na PUC de São Paulo. Ouvir José Comblin falar era um privilégio. Comprometido com a verdade, sem fazer nenhuma concessão neste ponto, abria sua boca de profeta e deixava-nos muitas vezes desconcertados e perplexos. Não poupava críticas a uma Igreja que, no entanto, amava com paixão. E a violência da crítica dava a medida do amor. No entanto, era muito consciente de que a Igreja estava a serviço do Evangelho de Jesus, seu amor maior. E fazia questão sempre de recordar isso. José Comblin tinha uma grande esperança eclesial: os leigos. Acreditava nos cristãos batizados que recebiam do Espírito carismas e ministérios, e se entregavam ao serviço de sua fé. E por isso criou vários movimentos missionários leigos, na Bahia, na Paraíba, em Tocantins e outros pontos do Nordeste brasileiro. As reuniões da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião não serão mais as mesmas sem sua presença lúcida, profética e sábia. Cercado pelos jovens teólogos de todo o Brasil, Comblin sorria e respondia a cada pergunta com atenção e simplicidade, como era seu estilo. Seu pensamento encantava e impunha respeito, mesmo se dele se discordava. Era um mestre, sem sombra de dúvida. Encontrei-o pela última vez em março de 2010 em El Salvador, no congresso teológico que celebrava os 30 anos do martírio de Monsenhor Romero. Caminhamos juntos com milhares de outros peregrinos até a catedral onde celebramos a memória do mártir. Ali me disse que agora morava em Barra, na Bahia. Explicou-me com uma pureza cheia de simplicidade e por isso mesmo mais comovente que sentia estar perto da morte. E que por isso necessitava converter-se. E nada melhor para converter-se do que estar perto de um profeta. Por isso, tinha escolhido ir morar na diocese de Dom Cappio, a quem situava na categoria dos profetas. Seu depoimento comoveu-me. Ouvir aquele homem de muito mais de 80 anos buscando ainda conversão e proximidade do Senhor após toda uma vida entregue a Deus e aos pobres era realmente edificante. A notícia de sua morte chegou-me por mensagem eletrônica de amigos. Juntamente com a dor da perda de um irmão mais velho, senti gratidão por sua vida e responsabilidade em não deixar perder seu legado de teólogo, de profeta, de servidor de Deus e de seu povo. Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O QUE JOSÉ COMBLIN NOS CONTOU EM 2007.


por

Eduardo Hoornaert





Por ocasião dos sessenta anos da ordenação sacerdotal de José Comblin, um bom grupo de amigos(as) e missionários(as) se reuniu no santuário de Ibiapina em Santa Fé (Arara), no brejo paraibano, para festejar a data, reatar os contactos, fortalecer a rede e reanimar o espírito. José tinha 85 anos e estava particularmente eufórico. Ele nos confidenciou detalhes sobre sua vida, algo que não costumava fazer.

1. Desde muito jovem, seus talentos intelectuais chamaram a atenção de familiares e educadores. Quando, provavelmente com a idade de 16 ou 17 anos, ele disse a seu tio padre que queria ser missionário, este respondeu prontamente: ‘Missionário não, você e inteligente demais. Professor, isso sim, professor na universidade de Lovaina!’. Efetivamente, José estudou teologia em Lovaina e admirou a competência, aplicação e honestidade intelectual de professores como Lucien Cerfaux e Gustave Thils. Quando o novo ‘doutor’ foi nomeado vigário auxiliar numa paróquia em Bruxelas, foi uma decepção: ‘eu senti que não havia mais futuro para o catolicismo na Bélgica’. Então, ele procurou outra coisa. Quando, respondendo ao pedido do papa Pio XII, a universidade de Lovaina abriu um colégio para sacerdotes que desejavam partir para a América Latina, ele foi u m dos primeiros candidatos.

2. Com a idade de 35 anos, em 1958, José partiu para o Brasil. Na conversa de 2007 ele insistiu: Não deixei a Bélgica para responder ao apelo do papa nem para combater o comunismo, o protestantismo ou o espiritismo (as três ameaças da época, na opinião do Vaticano). Parti tampouco para remediar a falta de padres. Eu compreendi que o cristianismo estava se extinguindo na Europa e só poderia renascer fora de um continente tão deformado por longa tradição de colonialismo, tráfico de escravos, matança de povos, deformado também por multissecular opressão da liberdade e das forças vitais do ser humano’. Ao encontrar aqui, já nos primeiros dias, pessoas que correspondiam à sua visão, a alegria era grande. José ficou imediatamente fascinado pelo Brasil. Seus primeiros contactos foram com jovens da JOC (juventude operária católica), pois, como muitos padres de sua geração, ele era influenciado por Cardijn, padre da diocese de Bruxelas e fundador da JOC. Educado num ambiente onde obediência, discrição e mesmo timidez eram apreciadas e mesmo encorajadas, ele encontrou aqui pessoas que não eram nem obedientes, nem discretas nem tímidas. ‘Eu encontrei pessoas verdadeiras, que não escondiam o que eram, pessoas sem mentira’. A fascinação pelo modo de ser brasileiro aparentemente nunca mais o abandonou e isso me foi confirmado inesperadamente por sua própria irmã, que encontrei certa vez em Bruxelas, em 1980: ‘O que fizeram ali com meu irmão? Ele não é mais o mesmo!’.

3. Comblin nunca foi a Roma: ‘O que eu faria ali?’. Mas em 1968 o arcebispo Hélder Câmara lhe pediu de redigir um texto para a conferência dos bispos em Medellín (Colômbia). José foi a seu quarto e bateu o dia inteiro com os dedos na sua máquina de escrever. Sou testemunha, pois na época vivíamos na mesma casa, com portas e janelas sempre abertas. Principalmente a partir de textos de José Comblin, Gustavo Gutiérrez (Peru) e Juan Luis Segundo (Uruguay) surgiu então a expressão ‘opção pelos pobres’, na verdade uma confirmação verbal do que diversos bispos da América latina já estavam praticando na época, na fidelidade ao ‘pacto das catacumbas’ firmado em Roma no final do Concílio Vaticano II. Os três teólogos sabiam, pois, que estavam construindo sobre terreno firme, o que mais tarde ficou comprovado pelo surgimento da teologia da liberta� �ão. Dom Hélder Câmara, que era um homem perspicaz, tinha pedido, em 1965, a José Comblin de vir trabalhar em Recife. Desse modo o conselheiro de Dom Hélder entrou, aos poucos, em contacto com outros bispos progressistas da América latina como Leônidas Proaño (Ecuador), Mendez Arceo (México), Aloísio Lorscheider, José Maria Pires e muitos outros. A visão dos teólogos da libertação consistia basicamente na rejeição da ideologia do desenvolvimento e no aprofundamento de temas como opressão, ditadura econômica e política, fascínio do capitalismo (Jung Mo Sung) e solidariedade com os pobres. Quando o texto de 1968, por indiscrição, caiu nas mãos dos militares, Comblin entrou numa rota de colisão com o sistema e foi expulso do país em 1972. Ainda tentou viver no Chile, mas ali também Pinochet tomou o poder em 1974. A única possibilidade, depois da ‘abertura lenta e progressiva’ de 1977, consistia em permanecer no Brasil na qualidade de ‘turista’ por consecutivos períodos de três anos. Seu estatuto legal só foi regularizado no decorrer dos anos 1980.

4. Entretempo, Comblin muda outra vez o rumo de sua vida. Adeus formação sacerdotal em seminários e institutos de teologia, adeus grandes cidades. José desaparece e começa uma peregrinação de longos anos e grandes percursos, zigue-zague pelos imensos espaços do Nordeste, à procura de pessoas que se sensibilizem com sua ‘teologia da enxada’. A agricultura tradicional do Nordeste opera por meio da enxada, não do arado. Isso significa que a teologia da enxada parte da cosmovisão do agricultor comum, algo que pressupõe uma ‘reversão de todos os valores’ por parte de um teólogo formado por Cerfaux e Thils. Na qualidade de teólogo da enxada, José peregrina até três dias antes de morrer tranquilamente no Recanto da Transfiguração, em Salvador. Nos últimos anos ele conta com a dedicação incondicional de Mônica Muggler, que faz de tudo para que Jo sé possa trabalhar e viajar até a idade de 88 anos. Ela é motorista (ele mesmo não sabe dirigir carro!), planeja encontros (nos últimos anos de forma intensiva por meio de telefone celular), estabelece contactos, organiza planos de viagens, coloca textos na internet (laptop), encontra lideranças locais. José também tem seu laptop. Ele ainda me manda algumas palavras por ocasião de seu aniversário, cinco dias antes de morrer.

5. O milagre consiste no fato que um intelectual estrangeiro, de índole retraída, consegue estabelecer um laço provavelmente estável com a cultura iletrada do interior nordestino. Um milagre que, como todos os milagres, é incompreensível. Neste momento (31/03/2011) estou sendo informado que há velas acesas em cima de sua cova, ao lado do túmulo do padre Ibiapina, na calma e linda natureza do brejo paraibano, em baixo das árvores. E uma mulher se declara curada depois de rezar no túmulo do padre José Comblin.


Eduardo Hoornaert é teólogo, professor e escritor, com diversos artigos e livros publicados, que podem ser conferidos nesse site clicando no nome.