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terça-feira, 30 de junho de 2015

A ENCÍCLICA LODATO SII E OS POBRES DO MUNDO

Por Marcelo Barros


Finalmente saiu a encíclica do papa sobre ecologia. Nos Estados Unidos, congressistas republicanos e seus candidatos à presidência tinham feito pressão para que o papa não a publicasse.

Há alguns meses, grandes empresários e donos de mineradoras, espalhadas por todos os continentes, fizeram um retiro espiritual no Vaticano para mostrar ao papa que as mineradoras são ecológicas e só extraem minérios da terra. Não a destroem. Mesmo alguns cardeais norte-americanos, mais ligados aos senhores do mundo do que aos pobres, expressaram seus receios. Tentaram impedir que, ao falar de Ecologia Ambiental, o papa pusesse o dedo na chaga e tocasse na Ecologia Social. No entanto, toda pressão, de dentro da própria Igreja e de fora, foi inútil.  A encíclica saiu, poética e profética. Começa por retomar o Cântico das Criaturas de São Francisco para confirmar: “a nossa casa comum é como uma irmã, com a qual compartilhamos a existência e é como uma mãe que nos acolhe nos braços” (n. 1). A partir daí, formula o convite insistente a todos para renovar o diálogo sobre o modo como estamos construindo o futuro do planeta” (n. 14).

No método latino-americano do “ver, julgar e agir”, o papa tratou da Ecologia a partir da realidade social do mundo, da injustiça do sistema econômico excludente dos pobres e da cultura da indiferença que infesta a humanidade.  Isso mostra que é importante ler a encíclica Lodato Sii  a partir da realidade do mundo dos pobres, maiores vítimas da injustiça eco-social provocada pelo sistema que domina o mundo e que também oprime a Terra e a natureza.

O Brasil é um dos países onde as contradições entre um modelo de desenvolvimento predatório e a responsabilidade com a terra, nossa casa comum, se manifestam de modo mais forte.

Conforme dados divulgados pelo jornalista Washington Novaes, no Brasil, mais de 1,26 milhão de quilômetros quadrados de 1.440 municípios de oito Estados nordestinos e do norte de Minas Gerais já mostram algum nível de desertificação. O processo de degradação do solo é muito forte, juntamente com a perda da cobertura vegetal, da biodiversidade e da capacidade de produção da agropecuária. E como mostra o papa em sua encíclica, toda vez que a vulnerabilidade da terra não é respeitada, os que mais sofrem são os pobres. Nas áreas brasileiras que estão em processo de desertificação, a presença de pobres e indigentes é superior à proporção em outras regiões do país. Na verdade, Caatinga e Cerrado têm 85% dos pobres no País (Cf. Eco 21, abril de 2015).

Essa realidade afeta o abastecimento doméstico de água e de alimentos. Por causa da crise da água, em Alagoas, mais de cem mil pessoas estão sendo socorridas para o abastecimento doméstico. No Ceará, pela falta d’água, agricultores perderam de 80% a 90% das safras de milho e feijão (Cf. Remabrasil, 6/5).

A leitura da encíclica do papa Francisco deve nos fazer lembrar dos povos indígenas do Brasil, ameaçados em sua existência como os nossos ecossistemas mais preciosos.

Atualmente, o Brasil tem 820 mil índios, uma pequena parcela da população brasileira, mas com a qual temos uma imensa dívida histórica, social e ecológica. E assim como a terra e toda a natureza, em todas as regiões do Brasil, em um ano, os assassinatos de índios cometidos por madeireiros e grilheiros de terra teve o aumento de 42% (138 casos). No mesmo período e pelo mesmo motivo, os suicídios de índios adolescentes e jovens atingiu 135 registros, um recorde em três décadas. É a partir dessa realidade que, nós, brasileiros, principalmente cristãos/ãs das diversas Igrejas, somos chamados a ler e interpretar a encíclica do bispo de Roma sobre a ecologia. Ele nos propõe aprofundar uma educação e espiritualidade ecológica (n. 202 ss), ou seja, nos formar para a aliança entre o ser humano e o ambiente (n. 209). Isso não se fará sem uma verdadeira “conversão ecológica” (n. 216).

Um documento dos missionários combonianos do Nordeste afirma: “Sabemos quanto o sistema capitalista, ecocida e suicida, herdou da cultura religiosa cristã. Por outro lado, temos a inspiração radicalmente evangélica de São Francisco e o testemunho vivo de muitos e muitas mártires que nos relançam em defesa da vida. Precisamos igualmente de um profundo e humilde processo de conversão e purificação. Uma nova escuta da Revelação, a partir do encontro fecundo entre a Palavra bíblica, o livro da criação e a sabedoria dos povos e das religiões”. Ler a encíclica a partir dos empobrecidos e da realidade do nossos país nos convoca para o que o papa chama de “Ecologia integral”.


  Nosso irmão Leonardo Boff declara que nem a ONU conseguiu sintetizar tão bem essa proposta. Agora, temos de tirar as consequências: a partir das bases, reelaborar uma maneira de viver e expressar a fé que seja libertadora, pluralista (isso é, aberta à colaboração com outras tradições espirituais) e holística, ou seja, baseada em uma justiça eco-social que una o cuidado com a libertação e com a vida dos oprimidos à comunhão efetiva e espiritual ao universo, sacramento de uma presença da qual somos testemunhas e colaboradores. Como diz o cântico de entrada da Missa de Pentecostes:  “O Espírito de Deus, o universo todo encheu, tudo abarca em seu saber, tudo enlaça em seu amor, aleluia” (inspirado no versículo bíblico do livro da Sabedoria 1, 7).  

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 29 de junho de 2015

A NOVA ENCÍCLICA PAPAL: ENTREVISTA DE LEONARDO BOFF AO JORNAL DO BRASIL


Uma das inspirações para encíclica “verde”,Leonardo Boff fala sobre futuro da “casa comum” e dz que a Encíclica do papa vai reforçar visão mais integral de ecologia.



O teólogo e ecólogo Leonardo Boff, colunista do JB, foi uma das vozes que ajudaram a montar a encíclica do papa Francisco dedicada ao meio ambiente, divulgada na quinta-feira (18). Em entrevista por e-mail, ele falou sobre como seus textos e contribuições chegaram até Bergoglio, “uma das maiores lideranças mundiais, seja no campo religioso, seja no campo político”. Comentou ainda sobre a forma como o papa tem lidado com questões delicadas e também sobre as respostas de potências mundiais às ameaças a “nossa única casa comum”.
“Vejo poucos avanços porque os interesses econômicos se sobrepõem à preocupação pela salvaguarda da única casa comum que temos para morar”, diz Boff em entrevista ao JB
“Vejo poucos avanços porque os interesses econômicos se sobrepõem à preocupação pela salvaguarda da única casa comum que temos para morar. Há uma inconsciência irresponsável e culposa acerca das ameaças que pesam sobre nosso futuro. Se o que a comunidade científica mundial diz fosse ouvido, outros seriam os resultados dos encontros organizados pela ONU sobre o aquecimento global e a crescente erosão da biodiversidade”, alertou Boff. “Meu sentimento oscila entre a catástrofe e a crise”, continuou.
O Papa Francisco estabeleceu uma “relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta” na encíclica Laudato Si [Louvado seja] – Sobre o cuidado da casa comum, divulgada nesta quinta-feira (18) e publicada em português pelas Edições Paulinas. Em janeiro, durante visita às Filipinas, Francisco demonstrou preocupação com a ecologia, afirmando a “necessidade de ver, com os olhos da fé, a beleza do plano de salvação de Deus, a ligação entre o ambiente natural e a dignidade da pessoa humana”.
Para Boff, “o escândalo da pobreza mundial num mundo de altíssimo consumo, a devastação dos ecossistemas e as ameaças que pesam sobre a casa comum, descuidada e maltratada” preocupam constantemente o papa Francisco.

Confira a entrevista com Leonardo Boff na íntegra:

JORNAL DO BRASIL – Como foram suas conversas com o Papa durante a elaboração da encíclica? Houve um encontro pessoalmente?
Leonardo Boff – É com certo constrangimento que respondo às perguntas desta entrevista, para não dar a impressão de uma importância de minha parte que não tenho. Se me perguntarem: você ajudou o Papa a escrever a encíclica?  Devo dizer: não. Apenas ofereci tijolos com os quais, se ele quisesse, poderia construir alguma coisa. Nunca tive um encontro pessoal com o Papa Francisco, somente indireto. Primeiramente através de uma amiga comum, Clélia Luro, para a qual ele telefonava de Roma todos os domingos por volta das 10h.
Através dela ele mandava os recados a mim e me fazia as solicitações de textos. Primeiramente, me pediu um texto que o ex-Presidente da Assembléia da ONU (gestão 2008-2009), Miguel d’Escoto, e eu havíamos elaborado para ser o marco teórico da nova ONU que está sendo excogitada: “Declaración Universal del Bien Común de la Madre Tierra y de la Humanidad”. O texto é urdido dentro do novo paradigma segundo o qual todas as coisas são interconectadas, formando um incomensurável sistema em evolução. Neste texto usávamos muito o termo “casa comum” para referir-nos à Terra.
Depois, quando o Papa esteve no Brasil novamente, por intermédia de uma pessoa, Dom Demétrio Valentini, bispo de Jales-SP, mandei entregar o livro que havia escrito em função de sua vinda ao Brasil: “Francisco de Assis – Francisco de Roma: uma nova primavera para Igreja”(Editora Mar de Ideias, Rio). Além disso, pedi para entregar em espanhol “Francisco de Assis: ternura e vigor” (Vozes), no qual abordava largamente a questão ecológica, pois ele o havia solicitado pela Clélia Luro. Junto mandei em espanhol a “Carta da Terra”, com recomendações minhas para que a utilizasse, pois me parecia o mais importante documento sobre ecologia no início do século XXI, fruto de uma vasta consulta de mais de duzentas mil pessoas de todas as orientações, sob a direção de Michail Gorbachev; eu havia participado da redação e havia conseguido incluir o tema do cuidado, “o laço de parentesco com toda a vida” e a espiritualidade.
Escrevi ao Papa que a Carta da Terra afirmava a interdependência entre todos os seres e o valor intrínseco de cada um, contra o antropocentrismo tradicional. Outra vez enviei através do bispo de Altamira no Xingu, Dom Erwin Kräutler, que havia em 2014 ganhado o prêmio Nobel alternativo da Paz pelo Parlamento sueco e que passando por Roma o Papa o convidou para redigir algo sobre a Amazônia. Por ele mandei em espanhol o meu livro mais completo sobre ecologia, “Ecologia: grito da Terra-grito dos pobres” (Trotta), expressão assumida pela encíclica. Enviei o outro igualmente em espanhol “Cuidar la Tierra: hacia una ética universal”, publicado no México (Dabar).
O principal foi um livreto com um DVD sobre as quatro ecologias, com belíssimas imagens onde abordo também a ecologia integral. Outros materiais foram enviados ao embaixador argentino na Santa, Sé Eduardo Valdés, amigo de Bergoglio, pois enviando diretamente ao Vaticano nunca se tem a certeza de que as coisas  cheguem às mãos do Papa. Através dele enviei um livro que considerava importante “Proteger la Tierra – cuidar la vida: como evitar el fin del mundo” (Dabar Mexico).
Através do mesmo embaixador enviei vários artigos em espanhol sobre questões ecológicas que saem noJB Online, onde colaboro já há vários anos. Lembro-me que escrevi num bilhete para ser entregue ao Papa, no qual havia uma citação da Carta da Terra que achava que devia constar na encíclica, como de fato consta no número 207: “Como nunca antes na história o destino comum nos obriga a buscar um novo começo… que nossa época possa ser lembrada pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta pela justiça e pela paz e pela alegre celebração da vida” (palavras finais da Carta da Terra).
Nem eu nem o embaixador recebemos qualquer retorno. Qual não foi a surpresa do embaixador Eduardo Valdes quando, no dia anterior à publicação da encíclica, isto é, no dia 17 de junho, o Monsenhor Fernandez do Vaticano se comunicou com ele para lhe agradecer todos os materiais meus que ele havia encaminhado ao Papa Francisco. Para terminar: fiz o que o Papa Francisco me pedia, sem qualquer pretensão de influenciá-lo. A encíclica é dele e ele é seu autor. Comumente, o Papa trabalha com um corpo de peritos que o servem e com outros especialistas convidados. O que posso dizer é que sinto ressonâncias de meus pensamentos e  modos de dizer na encíclica que não são apenas meus, mas de quantos trabalham a partir do novo paradigma de uma ecologia integral. Mas fui apenas um simples servo, como se diz no Evangelho.
O que o senhor poderia dizer a respeito dele e da forma como está conduzindo questões delicadas na Igreja?
Considero o Papa Francisco uma das maiores lideranças mundiais, seja no campo religioso seja no campo político. No campo religioso, usou da ternura de São Francisco para tratar as pessoas, particularmente os mais pobres. Mas tratou com a firmeza de um jesuíta aqueles que macularam a imagem da Igreja cristã com abusos sexuais e crimes financeiros. Neste ponto, ele foi duro e agiu como um médico. Limpou o Vaticano e talvez tenha muito que limpar ainda.
O fato mais visível é que ele trouxe uma primavera à Igreja depois de tempos de volta à grande e velha disciplina. Os cristãos sentem a Igreja como um lar espiritual e não como um pesadelo a ser suportado com desalento. Politicamente ele tem promovido o diálogo entre os povos, aproximado Cuba aos Estados Unidos e vice-versa e pregado insistentemente o encontro como forma de superar preconceitos e fundamentalismos e criar espaço para a paz. E o faz com tanta doçura e convicção que dificilmente alguém deixa de dar-lhe atenção.
O escândalo da pobreza mundial num mundo de altíssimo consumo, a devastação dos ecossistemas e as ameaças que pesam sobre a casa comum, descuidada e maltratada, o preocupam constantemente, pois pressente situações de traços apocalípticos, se nada de sério fizermos para conter o aquecimento global. Creio que a encíclica irá reforçar uma visão mais ampla, sistêmica, integral de ecologia, inserindo especialmente a questão social, mental e profunda. Espero que a discussão agora seja mais enriquecida e não apenas reduzida ao ambientalismo.
O senhor tem visto avanços significativos nesta questão entre as principais potências mundiais?
Há uma inconsciência irresponsável e culposa acerca das ameaças que pesam sobre nosso futuro
Vejo poucos avanços porque os interesses econômicos se sobrepõem à preocupação pela salvaguarda da única casa comum que temos para morar. Há uma inconsciência irresponsável e culposa acerca das ameaças que pesam sobre nosso futuro.
Se o que a comunidade científica mundial diz fosse ouvido, outros seriam os resultados dos encontros organizados pela ONU sobre o aquecimento global e a crescente erosão da biodiversidade que, segundo o conhecido biólogo Edward O. Wilson, oscila entre 27-100 mil espécies que desaparecem definitivamente da evolução, a cada ano.
Vivemos tempos de Noé, onde as pessoas comem e bebem, casam e dão-se a casar sem se dar conta do anúncio de um tsunami. Desta vez será diferente. Não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixa perecer os demais. Todos poderemos ter o mesmo destino trágico. O Papa fala destas questões, mas como homem de fé, lembra que Deus, é o “o Senhor amante da vida”, texto que usa mais de uma vez e que concede à esperança a última palavra e não ao desastre.
Como o senhor vê o futuro da Terra? Há esperança?
Meu sentimento oscila entre a catástrofe e a crise. Como estudioso da questão já há mais de 30 anos e lendo os últimos dados científicos tenho a impressão de que nossa vez já chegou. Fizemos tantas e tão graves agressões  contra a mãe Terra que já não merecemos mais viver sobre ela. Ademais, de ano em ano são mais de três mil espécies que chegam ao seu clímax e naturalmente desaparecem do processo da evolução. Não poderá ter chegado a nossa vez? Ou a crise que conserva, sempre purifica e faz crescer.
Por outro lado, como homem de fé, sei que o desígnio do Criador, inscrito nas circunvoluções do processo cosmogênico, pode levar a nossa pequena nave ao porto mesmo tendo ventos contrários. Mesmo que ocorra uma catástrofe que liquide a vida visível de nosso planeta (só 5% é visível, o resto, os 95% são invisíveis como as bactérias, vírus e fungos) acredito que a última palavra a terá a vida. Como não sei. Faço uma aposta positiva, creio e espero.


Leonardo Boff é teólogo e autor do livro SABER CUIDAR, entre outros

sexta-feira, 26 de junho de 2015

LOUVOR E CUIDADO: FRANCISCO INSPIRA FRANCISCO

por Maria Clara Lucchetti Bingemer



         É com uma exclamação de louvor que começa a nova encíclica do Papa Francisco, que trata de ecologia e o cuidado da casa comum a todos que é o planeta Terra.  “Laudato Sí”, Louvado seja! E quem Francisco – o de Assis – quer louvar com tanta devoção e entusiasmo é Deus, o Criador de todas as coisas, que nos deu a terra como habitação, morada, casa, para desfrutar e cuidar.

            Assim, a encíclica já em seu primeiro parágrafo desconcerta aqueles que dela esperavam uma reflexão  denunciante, como em geral o são os documentos sociais da Igreja.  Sem deixar de trazer uma reflexão profunda e que não teme tocar em feridas e pontos dolorosos, Francisco – o de Roma – toma como inspiração primeira o grito de júbilo de seu xará, o Poverello de Assis, para louvar o Senhor que é capaz de criar tanta beleza e pô-la à nossa disposição, ora como “uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. “ (n. 1)

            Há muito não se vê um documento que desperte tal interesse e acolhida positiva em todos os setores, sejam eles religiosos ou não.  A última encíclica do Papa Francisco move corações e mentes, e é louvada mesmo por intelectuais ateus e sem fé.  Assim, Edgard Morin, o famoso pensador francês, a considera providencial sobretudo em um momento de “deserto do pensamento” como o que vivemos. Ou Leonardo Boff, cuja reflexão sobre a ecologia certamente muito inspirou o texto papal.

            É verdade que o Pontífice argentino oferece à Igreja e ao mundo uma reflexão notável pela sua solidez, sua visão de longo alcance, sua capacidade de integrar uma enorme complexidade e mostrar caminhos de esperança e equilíbrio às novas gerações.  Neste sentido, a encíclica, que já suscitava grande expectativa antes de seu lançamento, superou-a trazendo contribuições inesperadas e de uma amplidão surpreendente.

            E começa por identificar terra e humanidade.  Nós somos terra, pó, barro.  Nossa corporeidade é formada pelos elementos que constituem o planeta: a argila, da qual Deus formou Adão, a água que mata a sede, o ar que enche nossos pulmões e nos mantém vivos.  Somos terra, argila sobre a qual é soprado o espírito divino que anima e inspira. A partir daí, o texto propõe uma ecologia integral, como foi a vivida por Francisco de Assis.  Esta requer uma abertura para categorias que transcendem a linguagem apenas das ciências ditas “duras” e nos põem em contato com a mais profunda identidade do ser humano.

            E como as identidades humana e natural se entrelaçam e interagem, a exemplo do santo de Assis, nossa presença em meio ao criado deve ser de irmandade, fraternidade e gerar uma atitude não predatória, não de arrogância e dominação, mas de cuidado. Todas as coisas criadas, todas as criaturas devem ser tratadas e chamadas de irmãos e irmãs, e provocar em nós atitudes de desvelo e reverência, afeto e carinho. Por isso, a primeira atitude que brota incontida do coração humano ao contemplar a criação só pode ser a do louvor jubiloso: “Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas!”

            No entanto, inseparável desta visão maravilhada diante da criação que deve ser cuidada com desvelo e atenção, está o alerta do texto pontifical contra a atitude consumista e predatória com que o planeta é tratado pelas grandes potências e governos irresponsáveis.  A principal preocupação do Papa é não separar sob pretexto algum o compromisso em favor do meio ambiente e o engajamento em favor dos pobres.
            O documento é quase exaustivo quando enumera todos os sofrimentos e desgraças que a depredação do meio ambiente traz aos pobres.  Há uma longa e minuciosa reflexão sobre a poluição da água, com a qual os pobres se desalteram, da qual extraem os peixes que lhes servem de alimento, que lhes possibilita viver da agricultura e do cultivo, até as doenças que as águas poluídas trazem, provocando epidemias e morte.  Igualmente se seguem na reflexão papal a exposição dos mais vulneráveis do planeta aos poluentes atmosféricos que lhes causam sérios danos à saúde, e a degradação das condições de vida dessas populações que as forçam a emigrar, instituindo um círculo vicioso que leva à destruição das famílias e a perda fatal da qualidade de vida e da sobrevivência.

Por isso, o documento pontifício propõe uma nova ideia de progresso, não centrado sobre uma arrogante onipotência do ser humano, que se arroga o direito de agredir o planeta que habita, esquecendo-se de que é a casa comum de todos. Mas um progresso com um desenvolvimento holístico e ecologicamente sustentável, que seja o ato fundante de uma nova civilização.
Francisco, com seu olhar inspirado pela fé, vê a humanidade como uma família, “a única família humana”. Essa visão não permite isolamentos, alienações ou a globalização da indiferença diante do imenso problema que a degradação do meio ambiente representa para as futuras gerações. Apenas um olhar e uma atitude “franciscanos” – de cuidado, de responsabilidade, de reverência – por este planeta, que é nossa casa comum, pode levar à exclamação de plenitude vital que é o louvor ao Senhor Criador de todas as coisas. Só pode exclamar “Louvado seja” com os olhos voltados para o alto quem olhou ao seu redor e curvou-se para cuidar da mais humilde criaturinha saída das mãos de Deus.

A teóloga é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio  e        autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença” (Rocco).
Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 25 de junho de 2015

AUMENTO DA PENALIDADE ADULTA

por Frei Betto


      “O problema do menor é o maior”, já alertava o filósofo Carlito Maia. Somos todos frutos da (des)educação que recebemos.

      Vivi dois anos entre presos comuns. Conheci suas trágicas histórias de vida. Também eu e você seríamos perigosos bandidos se tivéssemos sido criados em uma “família” cujo pai, desempregado e bêbado, surrava mulher e filhos e, para se sustentar, os impedia de ir à escola e os induzia a praticar furtos.

      Reduzir a maioridade penal é lavar as mãos, como Pilatos, diante do descaso para com as nossas crianças e adolescentes. É não reconhecer que elas ingressam no crime porque a sociedade não lhes assegura direitos fundamentais, como educação de qualidade.

      O Brasil tem, hoje, quase 4 milhões de crianças e adolescentes, de 4 a 17 anos, fora da escola. As creches são raras e caras. Na campanha presidencial de 2010, Dilma prometeu 6 mil creches e pré-escolas, para crianças de zero a 5 anos, até 2014. O MEC admite que apenas 1/3 da meta foi cumprida.

      Por que, em vez de reduzir a maioridade penal, não se aumenta a oferta de educação de qualidade gratuita e em tempo integral? Educação é direito do cidadão e dever do Estado. Em países com plena escolaridade a criminalidade precoce é residual. E quando existe não se culpabiliza a criança, e sim a sociedade, que é responsável por educá-la e oferecer-lhe um futuro promissor.

      Em 2006, o Brasil se comprometeu, na OIT (Organização Internacional do Trabalho), a erradicar, até o fim de 2015, as 89 “piores formas de trabalho infantil”. A meta não será cumprida, já admitiu o governo. Embora nos últimos doze anos tenha sido de 58,1% a redução do trabalho infantil, ainda há 3,2 milhões de crianças e jovens, de 5 a 17 anos, no mercado de trabalho.

      O trabalho infantil fere a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, quem o utiliza não incorre em nenhum crime. Exploração do trabalho infantil não existe no Código Penal Brasileiro. Dos 715 mil presos que lotam nossas cadeias, nenhum se encontra ali por explorar crianças e adolescentes.
      O projeto para mudar tal anomalia trafega lentamente no Congresso. Há parlamentares que defendem, abertamente, ser preferível uma criança “trabalhando que roubando”. Ou seja, o adulto empregador pode, impunemente, explorar mão de obra infantil. Mas se a criança furtar, dá-lhe cadeia e penalidade severa. Charles Dickens deve estar se revirando no túmulo!

      Enquanto adultos tentam se eximir de suas responsabilidades e propõem reduzir a maioridade penal, sem enfrentar as causas da criminalidade infantil e da miséria, em Itaguaí (RJ) crianças de 9 a 13 anos chegam a ganhar R$ 1 mil por semana do narcotráfico para servirem de olheiros em bocas de fumo, vapores (vender pequenas quantidades de drogas) e monitorar o acesso aos pontos de venda.

      Não basta “pacificar”, com repressão policial, áreas dominadas por traficantes. É preciso introduzir ali escolas, praças de esportes, salas de arte, cursos profissionalizantes, aulas de teatro, música e dança. Enfim, educação.


Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.


Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com

terça-feira, 23 de junho de 2015

JOÃO BATISTA, NA BÍBLIA E NAS FESTAS JUNINAS

Marcelo Barros


Nesses dias, em todo o Brasil, a cultura popular é tomada pelas festas juninas. São costumes pré-cristãos muito antigos que cultuavam a natureza na mudança de estação. Pouco a pouco, o Cristianismo adaptou essas festas e lhes deu um novo significado. As fogueiras, brincadeiras e cânticos tradicionais que, nos séculos antigos, representavam cultos à natureza passaram a ter como objetivo fazer memória do nascimento de São João Batista. Nas culturas andinas, nesses dias se celebra a festa do Sol: Inti Rami. Os índios resgatam suas culturas ancestrais e ligam a contemplação da natureza a presença de Deus que nos renova. Ele é como a luz e o calor de um fogo novo em meio à noite fria do inverno.

No Brasil, o povo que participa das festas juninas usam bandeira de São João menino e pouco sabem do que conta o evangelho. Mas, seja como for, através da fogueira, dos fogos e das brincadeiras, sinalizam o que  o evangelho revela: no meio da escuridão do mundo, João foi como uma fogueira que iluminou a presença da Luz que é Jesus. Os grupos de novena e folia sabem que o importante da narrativa do evangelho é anunciar que começa no mundo um tempo novo. O útero da mulher estéril (Isabel) se torna fértil e o pai mudo (Zacarias) se põe a falar. São sinais de que o mal não é inevitável e sempre um milagre pode ocorrer. A esterilidade nossa e do mundo pode se tornar fecunda. Os que não têm voz podem ser profetas de um mundo novo possível.

Ao ressaltar que o rio Jordão atravessa uma região desértica e ao valorizar o batismo como mergulho em uma vida nova, João Batista nos convida a valorizar a água como sinal de vida. Podemos descobrir, mesmo na aridez, oásis de fertilidade e caminhos de vida nova. Em meio a todas as dificuldades, podemos mergulhar no divino (isso é, batizados/as) e ser testemunhas da ação divina de transformação do mundo.

Para a fé cristã, João Batista é principalmente o profeta que aponta o Cristo presente no mundo. João Batista e Jesus de Nazaré reuniram pessoas consideradas socialmente pecadoras e não os religiosos. Esses não os aceitaram. Como naquele tempo, até hoje existe um tipo de espiritualidade que situa as pessoas em uma espécie de elite sagrada. Esses grupos se impõem uma série de ideais e metas que tentam alcançar através de exercícios espirituais. Esse tipo de espiritualidade tem seu valor, mas, muitas vezes, acaba centrando as pessoas nelas mesmas e no objetivo que querem alcançar. A verdadeira espiritualidade nada tem de atletismo espiritual. É amorosidade e capacidade de conviver solidariamente com os outros. Além disso, formar gueto espiritual não ajuda ninguém a perceber o negativo presente em sua vida. A pessoa constrói sua vida espiritual como um edifício sem alicerce. A qualquer momento, aqueles elementos íntimos que são negados e escondidos, mas nem por isso deixam de existir, vêm à tona e passam a dominar. Ao pedir conversão, João Batista nos lembra que temos de assumir nossas negatividades e trabalhá-las, nos descobrindo frágeis e divididos, mas sempre objetos prediletos do carinho divino.


Atualmente, corremos o risco de transformar o mundo inteiro em deserto. Nesses dias, o papa Francisco publicou sua carta encíclica sobre a Ecologia e a nossa responsabilidade comum diante do ambiente. Ele nos convida a ser profetas como João e mostrar que a sociedade capitalista está transformando o mundo inteiro em um imenso deserto. No entanto, nós, cristãos, pessoas de outras tradições espirituais, junto com todas as pessoas de boa vontade, podemos aprimorar o cuidado amoroso com a natureza e todos os seres vivos. Esse cuidado deve se espalhar assim como o rio Jordão atravessa a aridez da Palestina. Seria importante ligar as comemorações juninas com o cuidado com a natureza. As fogueiras não podem destruir a vegetação nem provocar incêndios. Devem iluminar nosso caminho para reconstruir um mundo mais feliz.  Temos também um deserto interior, um espaço de solidão e silêncio no qual precisamos entrar para acolher o divino e ser transformados por ele. Para nós também, João Batista continua a dizer: “No meio de vocês está alguém que vocês não conhecem e ele vai mergulhar a todos/as no Espírito de Amor”.

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 22 de junho de 2015

PRESERVAR A PERSPECTIVA SINGULAR DO PAPA: A ECOLOGIA INTEGRAL


Por Leonardo Boff

O Papa Francisco operou uma grande virada no discurso ecológico ao passar da ecologia ambiental para a ecologia integral. Esta inclui a ecologia político-social,  a mental,  cultural, a educacional, a ética e a espiritual.
Há o risco de que esta visão integral seja assimilada dentro do costumeiro discurso ambiental, não se dando conta de que todas as coisas, saberes e instâncias são interligadas. Quer dizer o aquecimento global tem a ver com a fúria industrialista, a  pobreza de boa parte da humanidade está relacionada com o modo de produção, distribuição e consumo, que a violência contra a Terra e os ecossistemas é uma deriva do paradigma de dominação que está na base de nossa civilização dominante já há quatro séculos, que o antropocentrismo é consequência da compreensão ilusória de que somos donos das coisas e que elas só gozam de sentido na medida em que estão colocadas ao nosso bel-prazer.

Ora, é essa cosmologia (conjunto de idéias, valores, projetos, sonhos e instituições) leva o Papa a dizer:”nunca temos maltratado e ofendido nossa casa comum como nos últimos dois séculos”(n.53).

Como superar essa rota perigosa? O Papa responde: ”com uma mudança de rumo” e ainda mais com a disposição de “delinear grandes percursos de diálogo que nos ajudem a sair desta espiral de autodestruição na qual estamos afundando”(n.163). Se nada fizermos podemos ir ao encontro do pior. Mas o Papa confia na capacidade criativa dos seres humanos que juntos poderão formular  o grande ideal :”um só mundo e um projeto comum”(164).
Bem diversa é a visão imperante e imperial presente na mente dos que controlam as finanças e os rumos das políticas mundiais: ”um só mundo e um só império”.

Para enfrentar os múltiplos aspectos críticos de nossa situação o Papa propõe a ecologia integral. E lhe dá o correto fundamento: “Do momento que tudo está intimamente relacionado e que os atuais problemas exigem um olhar que atenda a todos os aspectos da crise mundial….proponho uma ecologia integral que compreenda claramente as dimensões humanas e sociais”(n.137).
O pressuposto teórico  se deriva da nova cosmologia, da física quântica, da nova biologia, numa palavra, do novo paradigma contemporâneo que implica a teoria da complexidade e do caos (destrutivo e generativo). Nessa visão o repetia um dos fundadores da física quântica Werner Heisenberg: “tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo é relação e nada existe fora da relação”.

Exatamente essa leitura o Papa a repete inumeráveis vezes, constituindo  o tonus firmus de suas explanações. Seguramente a mais bela e poética das formulações a encontramos no número 92 onde enfatiza: “tudo está em relação e todos nós seres humanos estamos unidos como irmãos e irmãs …com todas as criaturas que se unem conosco com terno e fraterno afeto, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe Terra (n.92).

Essa visão existe já há quase um século. Mas nunca conseguiu se impor na política e na condução dos problemas sociais e humanos. Todos permanecemos ainda reféns do velho paradigma que isola os problemas e para cada um procura uma solução específica sem se dar conta de que essa solução pode ser maléfica para outro problema. Por exemplo, resolve-se o problema da infertilidade dos solos com nutrientes químicos que, por sua vez, entram na terra, atingem o nível freático das águas ou os aquíferos, envenenando-os.

A encíclica nos poderá servir de instrumento educativo para apropriarmo-nos desta visão inclusiva e integral. Por exemplo, como assevera a encíclica: “quando falamos de ambiente nos referimos a uma particular relação entre a natureza e a sociedade; isso nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós….somos incluídos nela, somos parte dela”(n.139).

E continua dando exemplos convincentes: ”toda análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos  humanos, familiares, trabalhistas, urbanos e da relação de cada pessoa consigo mesma que cria um determinado modo de relações com os outros e com o ambiente”(n.141). Se tudo é relação, então a própria saúde humana depende da saúde da Terra e dos ecossistemas. Todas as instâncias se entrelaçam para o bem ou para o mal. Essa é textura da realidade, não opaca e rasa mas complexa e altamente  relacionada com tudo.

Se pensássemos nossos problemas nacionais nesse jogo de inter-retro-relação, não teríamos tantas contradições entre os ministérios e as  ações governamentais. O Papa nos sugere caminhos. Estes são certeiros e nos podem tirar da ansiedade em que nos encontramos face ao nosso futuro comum.

Teilhard de Chardin tinha razão quando nos anos 30 do século passado escrevia: “A era das nações já passou. A tarefa diante de nós agora, se não pereceremos, é construir a Terra” . Cuidando da Terra com terno e fraterno afeto no espírito de São Francisco de Assis e de Francisco de Roma, podemos  seguir “caminhando e cantando” como conclui a encíclica, cheios de esperança. Ainda teremos futuro e iremos irradiar.

Leonardo Boff é teólogo e colunista do JB


sexta-feira, 19 de junho de 2015

QUANDO LIVRARIAS FECHAM AS PORTAS

por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do departamento de Teologia da PUC-Rio



Vejo aterrorizada a notícia do fechamento da livraria La Hune, em Paris, no Boulevard Saint Germain. Fundada logo após a Segunda Guerra por intelectuais franceses da Resistência, dará lugar a um comércio de reproduções fotográficas.

Não é a primeira vez que a livraria se encontra ameaçada.  Em 2012, teve que deixar sua sede histórica, no próprio Boulevard Saint Germain, e foi transferida para o nº 18 da rue de l´Abbaye. Ali  agora reina a grife Louis Vuitton.  É um sinal que explica a progressiva diminuição do mito literário e sua substituição pelo comércio de luxo que vende “nada”: ar, cheiro, perfume, malas e bolsas caríssimas que pouca gente consegue comprar.

No lendário Boulevard Saint Germain só fica agora uma livraria, “L´écume des pages” (A espuma das páginas), cujo lindo nome soa como um presságio: a de que em breve ali só restará espuma e nada mais consistente.

Porém, Paris é Paris.  E são tantas as livrarias lá existentes que o hábito de leitura de seus habitantes não será gravemente afetado pelo  desaparecimento da La Hune.  Em muito pior situação está o Rio de Janeiro, que neste momento de seus 450 anos está perdendo nada menos do que a icônica e paradigmática livraria Leonardo da Vinci. Depois de 63 anos de várias  lutas e batalhas para se manter viva, a Da Vinci fecha as portas.

Fundada pelo romeno Andrei Duchiade, hoje pertence à sua filha Milena.  Foi dela a triste decisão de fechar as portas.  Não aguenta mais operar com prejuízo e em breve o antigo e histórico edifício Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco, não contará mais com as estantes povoadas de livros da melhor qualidade como aconteceu por seis décadas.

A Da Vinci não era simplesmente um estabelecimento comercial.  Era um mundo encantado para quem gostava de livros e deles vivia.  A maravilhosa Dona Vanna, esposa de Duchiade e grande dama da livraria, mantinha contas abertas para estudantes que só podiam pagar a prazo, e atendia com a mesma solicitude professores e alunos, intelectuais de toda espécie e de toda ideologia.
Não existe alguém nesta cidade que trabalhe com a cabeça e seja medianamente culto que não tenha sido assíduo frequentador da livraria. E em um tempo em que não existia ainda a Amazon, com toda a facilidade que representa, a Da Vinci importava livros da França, da Itália, da Espanha e etc., colocando o preço inclusive em moeda estrangeira.

Ali comprei muitos de meus livros de teologia quando ainda era estudante de graduação.  E quando fazia ocurso da Aliança Francesa era dona Vanna que mandava buscar na França as edições de que necessitava para me preparar para os exames da Universidade de Nancy.

Golpeada pelo surgimento massivo das lojas virtuais e das megalivrarias, a Da Vinci recebeu a pá de cal com as obras que proliferam no Centro da Cidade e as manifestações que inundaram o Rio desde 2013.

A partir deste mês de junho de 2015, portanto, os intelectuais cariocas ficam mais pobres e – pior ainda – órfãos.  Órfãos de um lugar que os acolhia e era muito mais que um balcão de compra e venda de livros, mas um ninho, onde o prazer era folhear, buscar, desejar, suspirar e adquirir na medida de suas possibilidades.  Um centro irradiador de saber, que acolhe o saber com prazer e estímulo.

A cidade perde um pouco de sua mente, de seu espírito, de sua alma, com o fechamento desta livraria, que ainda não encontrou equivalente em nosso perímetro urbano.  Fica, decididamente, mais pobre, em um momento em que o empobrecimento abrange tantas áreas e dimensões. 

Um Rio sempre belo, porém mais violento, mais inseguro, mais sujo, menos apetecível aos passeios a pé e onde até o ar livre é menos livre, pois o preço a pagar para desfrutá-lo começa a ser alto demais.  Às vezes, equivalente à própria vida. Este é o Rio que festeja discreta e pudicamente seus 450 anos.

Porém, quando livrarias começam a fechar, e sobretudo uma Da Vinci, a situação piora. O clima torna-se mais ameaçador, com um tom de Fahrenheit 451, o grande romance de Ray Bradbury, que apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas não gratas e o pensamento crítico é perseguido e eliminado. O número 451 refere-se à temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, que equivale em Celsius a 233 gruas.

A saída que o romance propõe é as pessoas virarem livros vivos e perpetuarem assim a criação livre, a magia e a beleza da cultura.  Oxalá os cariocas, com o desaparecimento de livrarias como a Leonardo Da Vinci, revejam suas prioridades e passem a encarnar livros, palavras, pensamentos e saberes que são o único alimento verdadeiramente humanizador.

Se assim não for, o futuro é triste.  Triste da cidade que fecha livrarias, esfaqueia ciclistas inocentes, multiplica exponencialmente o número de crianças na rua, e impede a vida de brotar e florir livremente.  Mais triste será o Rio sem a Da Vinci.  Tomara que essa tristeza conheça uma ressurreição marcada por desconhecida mas forte alegria.
  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha dapaixão e da compaixão" (Edusc)    
Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>




quinta-feira, 18 de junho de 2015

CUBA E EUA ESTENDEM AS MÃOS


por Frei Betto


      A reaproximação de Cuba e EUA, anunciada em 17 de dezembro por Raúl Castro e Obama, é vista com cautela pelos cubanos.

      Nas visitas que fiz à ilha revolucionária em janeiro e abril deste ano, cubanos admitiram que a reaproximação é inevitável. Porém, “há um longo caminho a ser percorrido”, disse-me Fidel que, aos 88 anos, continua lúcido e atento ao noticiário. E muito interessado em tudo que se passa no Brasil.

      Não basta a nova retórica de Obama. “É preciso que os EUA excluam Cuba da lista dos países terroristas”, frisou Fidel (o que ocorreu após o encontro de Raúl e Obama no Panamá, em abril) – “e suspendam o bloqueio.” Na reunião da CELAC, na Costa Rica, em janeiro, Raúl acrescentou: “E devolvam a base naval de Guantánamo.”

      Cuba recebe, hoje, 3 milhões de turistas por ano. (Para nossa vergonha, o Brasil, com esse imenso potencial turístico, recebe apenas 6 milhões). A diferença com o nosso país é que Cuba tem política de Estado de implementação turística, e promove turismos ecológicos, científicos e culturais. Já o Brasil, além da ausência de política para o setor, explora apenas o Carnaval, praias e mulatas...

      Dos 3 milhões de turistas que desembarcam na ilha, uma terça parte é de canadenses que, em três horas de voo, trocam 30 graus abaixo de zero por 30 graus acima nas despoluídas e belas praias do Caribe.

      Com a reaproximação com os EUA, prevê-se que viajarão a Cuba, a cada ano, 3 milhões de estadunidenses. Eis o temor dos cubanos. O país, por enquanto, não dispõe de infraestrutura adequada para absorver tantos visitantes.

      Segundo os cubanos, os canadenses são respeitosos, discretos e de fácil entrosamento com a população local. Já os estadunidenses carregam três acentuados defeitos: a arrogância (acham-se os donos do mundo); o consumismo (comprar, desde carros antigos que trafegam pelas ruas de Havana, até mulheres...); e a mania de viajar sem sair dos EUA... (o que explica a existência, em cada ponto turístico do planeta, de McDonald’s e redes hoteleiras ianques, como Sheraton, Intercontinental etc).

      Ainda assim, os dólares são bem-vindos a uma economia deficitária, embora haja consciência de que o reatamento significa o choque do tsunami consumista com a austeridade revolucionária.

      Tudo indica que, inicialmente, o fluxo maior de viajantes dos EUA rumo a Cuba será motivado pelo “turismo médico”. Para o cidadão comum, tratamentos de saúde nos EUA são caros e precários. Cuba, além de excelência na área, reconhecida internacionalmente, possui expertise em ortopedia. E, atualmente, desenvolve vacinas eficientes contra vários tipos de câncer.

      Agora, resta à Casa Branca passar do discurso à prática. Como me enfatizou Fidel, “eles são nossos inimigos e, portanto, precisam mudar não apenas os métodos, mas sobretudo os objetivos em relação a Cuba.”

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

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quarta-feira, 17 de junho de 2015

O ESPÍRITO DO MUNDO

por Marcelo Barros



A luta pela igualdade de direitos e reconhecimento da dignidade de todas as pessoas humanas atravessa os séculos. No entanto, nos termos atuais, começou há mais de 200 anos, com a Revolução Francesa. Ali a maior parte da sociedade ocidental passou a pensar: a monarquia não é a única forma de governo possível. Com todos os seus defeitos, a democracia republicana pode ser mais respeitosa da igualdade humana. Desde então, houve uma série de conquistas sociais. Entre essas, a liberdade de expressão, o direito à liberdade religiosa e direito ao voto por parte de todos, homens e mulheres, pobres e ricos. No século XX, a luta pelos direitos sociais conquistou, ao menos, em termos de lei, a igualdade entre homem e mulher, a consciência dos direitos da criança, a superação da discriminação racial e outras conquistas. É claro que muitos desses direitos ainda não estão garantidos. Alguns são apenas esboçados, como o direito às diferenças culturais, religiosas e sexuais. Para que tais conquistas possam ter ocorrido, tem sido importante uma evolução da cultura. Trata-se de uma mudança do pensamento que, no século XIX, Hegel chamava de “o espírito do mundo”. Ele dizia que nós não somos donos das nossas ideias. São as ideias que entram em nós e aí elas têm um poder transformador. A luta pelas ideias está na base das grandes lutas emancipatórias da sociedade.

Hoje, o termo “espírito do mundo” pode ressoar, erroneamente, como “espírito mundano”. Na acepção de Hegel, o  “espírito do mundo” não é o pensamento da elite, nem se reduz simplesmente a opinião pública. A massa pode ser manobrada por vários fatores (como os meios de comunicação) e tende a ser conservadora. Nos tempos antigos, as massas apoiaram a escravidão e o racismo. Hoje, no Brasil, a maioria do povo votaria pela pena de morte, pelo uso de armas de fogo e a favor de torturar bandidos. Para encontrar o que Hegel chama de “espírito do mundo”, temos de buscar os grupos sociais organizados, a partir das lutas pelos direitos humanos e pela dignidade dos oprimidos. São os movimentos sociais e as comunidades humanas de base que formam o povo mais consciente de ser povo. No mundo romano antigo, o latim fazia a distinção entre plebs (massa) e populus (povo organizado). O Concílio Vaticano II define que a Igreja é uma porção do povo de Deus (populus Dei). Ou, ao menos deve ser comunidades inseridas na realidade do povo organizado e com consciência de ser povo.

No século XIX, Hegel falava em um “espírito objetivo” que teria a prioridade sobre “o espírito subjetivo”. Atualmente, isso também começa a mudar. Não é mais a sociedade que se impõe ao indivíduo. Não é esse que teria de adequar-se às instituições sociais. Ao contrário, a sociedade deve adaptar-se a cada pessoa para, a partir da sua liberdade pessoal, integrá-la no conjunto social. Não se trata do mero individualismo capitalista. Fábio Konder Comparato afirma: “o Capitalismo é o primeiro sistema que colocou o indivíduo acima do bem comum”. No entanto, esse sistema fez isso reduzindo as pessoas a meras peças na linha da produção e do consumo. A sociedade capitalista não somente desrespeita os direitos e a dignidade das pessoas, mas cria a cultura da indiferença em relação ao sofrimento dos migrantes, das vítimas de guerra e dos excluídos do mundo. Por outro lado, se a cultura capitalista, ao menos, contribuiu para uma maior consciência da inviolabilidade de cada pessoa humana, foi porque as Igrejas e os movimentos sociais não foram capazes disso. Infelizmente, na história, muitas vezes, Igrejas e religiões foram contrárias aos grandes movimentos de libertação e promoção humana. Nos séculos passados, muitos pastores e ministros cristãos defenderam a monarquia contra a república, a superioridade masculina contra a igualdade de gêneros e se pronunciaram claramente contra a liberdade de expressão e mesmo de religião. Atualmente, em todo o mundo, pastores e ministros entram na cruzada contra os direitos à diversidade sexual. Na Igreja Católica, bispos e fiéis manifestaram espanto quando, há alguns meses, o papa Francisco recebeu um transexual em audiência no Vaticano. E entre quatro paredes, não são poucos os padres, até jovens, que murmuram: “Se ele diz quem sou eu para julgar, por que então é papa?”.

Há poucos dias, na Irlanda, país de maioria católica, no referendo sobre a diversidade sexual, 61% do povo votou para que se reconhecessem os direitos civis da união gay. Alguns dias antes, o episcopado católico tinha publicado uma nota na qual pedia aos fiéis  para votarem contra. Depois da eleição, o arcebispo de Dublin declarou: “A maioria dos que votaram pelo sim são católicos. A Igreja deve aprender com isso e ser capaz de dialogar com essa realidade”.  


O que estava por trás era mais do que o reconhecimento da dignidade dos gays. Era o direito que toda pessoa humana tem a ser feliz e a viver o que na Irlanda passou a se chamar “amor integral”. A Igreja deve ser testemunha de que todos os seres humanos têm direito ao amor integral  e que toda relação de amor é sacramento do amor divino no mundo. Jesus afirmou: “O sábado foi feito para o ser humano e não o homem para o sábado”. Portanto, as leis religiosas, mesmo as mais sagradas, devem servir à vida e à felicidade das pessoas. Ao afirmar isso, Jesus enfrenta a tensão entre pessoa e sociedade. Claramente, optou pelas pessoas: a mulher adúltera que a religião do templo mandava apedrejar, os pecadores públicos que eram discriminados e assim por diante. Paulo escreveu: “Onde está o Espírito Divino, aí há liberdade” (2 Cor 3, 17). 


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países