por Marcelo
Barros
A
luta pela igualdade de direitos e reconhecimento da dignidade de todas as
pessoas humanas atravessa os séculos. No entanto, nos termos atuais, começou há
mais de 200 anos, com a Revolução Francesa. Ali a maior parte da sociedade
ocidental passou a pensar: a monarquia não é a única forma de governo possível.
Com todos os seus defeitos, a democracia republicana pode ser mais respeitosa
da igualdade humana. Desde então, houve uma série de conquistas sociais. Entre
essas, a liberdade de expressão, o direito à liberdade religiosa e direito ao
voto por parte de todos, homens e mulheres, pobres e ricos. No século XX, a
luta pelos direitos sociais conquistou, ao menos, em termos de lei, a igualdade
entre homem e mulher, a consciência dos direitos da criança, a superação da
discriminação racial e outras conquistas. É claro que muitos desses direitos
ainda não estão garantidos. Alguns são apenas esboçados, como o direito às
diferenças culturais, religiosas e sexuais. Para que tais conquistas possam ter
ocorrido, tem sido importante uma evolução da cultura. Trata-se de uma mudança
do pensamento que, no século XIX, Hegel chamava de “o espírito do mundo”. Ele
dizia que nós não somos donos das nossas ideias. São as ideias que entram em
nós e aí elas têm um poder transformador. A luta pelas ideias está na base das
grandes lutas emancipatórias da sociedade.
Hoje,
o termo “espírito do mundo” pode ressoar, erroneamente, como “espírito mundano”.
Na acepção de Hegel, o “espírito do
mundo” não é o pensamento da elite, nem se reduz simplesmente a opinião pública.
A massa pode ser manobrada por vários fatores (como os meios de comunicação) e tende
a ser conservadora. Nos tempos antigos, as massas apoiaram a escravidão e o
racismo. Hoje, no Brasil, a maioria do povo votaria pela pena de morte, pelo
uso de armas de fogo e a favor de torturar bandidos. Para encontrar o que Hegel
chama de “espírito do mundo”, temos de buscar os grupos sociais organizados, a
partir das lutas pelos direitos humanos e pela dignidade dos oprimidos. São os
movimentos sociais e as comunidades humanas de base que formam o povo mais
consciente de ser povo. No mundo romano antigo, o latim fazia a distinção entre
plebs (massa) e populus (povo organizado). O Concílio Vaticano II define que a
Igreja é uma porção do povo de Deus (populus
Dei). Ou, ao menos deve ser comunidades inseridas na realidade do povo
organizado e com consciência de ser povo.
No
século XIX, Hegel falava em um “espírito objetivo” que teria a prioridade sobre
“o espírito subjetivo”. Atualmente, isso também começa a mudar. Não é mais a
sociedade que se impõe ao indivíduo. Não é esse que teria de adequar-se às
instituições sociais. Ao contrário, a sociedade deve adaptar-se a cada pessoa
para, a partir da sua liberdade pessoal, integrá-la no conjunto social. Não se
trata do mero individualismo capitalista. Fábio Konder Comparato afirma: “o
Capitalismo é o primeiro sistema que colocou o indivíduo acima do bem comum”.
No entanto, esse sistema fez isso reduzindo as pessoas a meras peças na linha
da produção e do consumo. A sociedade capitalista não somente desrespeita os
direitos e a dignidade das pessoas, mas cria a cultura da indiferença em
relação ao sofrimento dos migrantes, das vítimas de guerra e dos excluídos do
mundo. Por outro lado, se a cultura capitalista, ao menos, contribuiu para uma maior
consciência da inviolabilidade de cada pessoa humana, foi porque as Igrejas e
os movimentos sociais não foram capazes disso. Infelizmente, na história,
muitas vezes, Igrejas e religiões foram contrárias aos grandes movimentos de
libertação e promoção humana. Nos séculos passados, muitos pastores e ministros
cristãos defenderam a monarquia contra a república, a superioridade masculina
contra a igualdade de gêneros e se pronunciaram claramente contra a liberdade
de expressão e mesmo de religião. Atualmente, em todo o mundo, pastores e
ministros entram na cruzada contra os direitos à diversidade sexual. Na Igreja
Católica, bispos e fiéis manifestaram espanto quando, há alguns meses, o papa
Francisco recebeu um transexual em audiência no Vaticano. E entre quatro
paredes, não são poucos os padres, até jovens, que murmuram: “Se ele diz quem
sou eu para julgar, por que então é papa?”.
Há
poucos dias, na Irlanda, país de maioria católica, no referendo sobre a
diversidade sexual, 61% do povo votou para que se reconhecessem os direitos
civis da união gay. Alguns dias antes, o episcopado católico tinha publicado
uma nota na qual pedia aos fiéis para
votarem contra. Depois da eleição, o arcebispo de Dublin declarou: “A maioria
dos que votaram pelo sim são católicos. A Igreja deve aprender com isso e ser
capaz de dialogar com essa realidade”.
O
que estava por trás era mais do que o reconhecimento da dignidade dos gays. Era
o direito que toda pessoa humana tem a ser feliz e a viver o que na Irlanda
passou a se chamar “amor integral”. A Igreja deve ser testemunha de que todos
os seres humanos têm direito ao amor integral
e que toda relação de amor é sacramento do amor divino no mundo. Jesus
afirmou: “O sábado foi feito para o ser humano e não o homem para o sábado”.
Portanto, as leis religiosas, mesmo as mais sagradas, devem servir à vida e à felicidade
das pessoas. Ao afirmar isso, Jesus enfrenta a tensão entre pessoa e sociedade.
Claramente, optou pelas pessoas: a mulher adúltera que a religião do templo
mandava apedrejar, os pecadores públicos que eram discriminados e assim por
diante. Paulo escreveu: “Onde está o Espírito Divino, aí há liberdade” (2 Cor
3, 17).
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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