Querido irmão Dom Romero,
Em primeiro lugar, peço
perdão a você e a Deus por mais uma vez ter sido ingênuo e, sobre esse assunto
da sua beatificação, ter deixado
"cair a profecia", sem que nem percebesse que ela tinha caído...
Aprendi com o meu mestre,
o padre José Comblin que, na Igreja Católica, nos últimos séculos, os processos
de canonização se tornaram instrumentos de manifestação do poder eclesiástico
romano, com pouca dimensão evangélica. No entanto, dessa vez, ao se tratar de
sua beatificação, eu pensava que poderia ter um conteúdo importante. Mesmo ao
fazer isso somente 35 anos depois do seu assassinato, o magistério de Roma
proclamaria ao mundo que se tratou mesmo de um martírio e faria um ato de
justiça a você e ao povo salvadorenho. Todo mundo sabe que até agora a posição
oficial era de que você era uma pessoa boa e santa, mas frágil e teria se
deixado manobrar por assessores de esquerda que o levaram a arriscar a vida.
Teria morrido, vítima dessa manipulação. Agora, depois de tantos anos,
finalmente, embora sem reconhecer que se enganou (autoridade nunca se engana),
a cúria romana resolveu retomar o processo de sua canonização. Por isso, pensei
que, além de ser um ato de justiça, esse evento teria uma boa consequência
social e política para El Salvador, para a América Latina e para a nossa
Igreja.
Estranhei quando, pela
imprensa, vi que a beatificação seria uma cerimônia imensa, de três horas de
duração com centenas de padres e dezenas de bispos, com todas as pompas e
solenidades comuns a um jeito de ser da Igreja que não era o seu. Mas, relevei
isso. Cada um fala a linguagem que compreende. Só que, mesmo hoje, não me
parece ser essa a linguagem evangélica que o papa Francisco está propondo à
Igreja Católica: uma Igreja “em saída”, isso é, que vive para os outros e
especialmente os mais pobres. Em relação a ele
mesmo, desde sua eleição, tem sempre preferido a simplicidade de vestes, de
gestos e de comunicação. Em um dos países mais pobres do mundo, fica difícil
acreditar que a Igreja Católica quer ser uma Igreja pobre e dos pobres se para
proclamar beato um bispo pobre que deu a vida pelos pobres se realiza uma
cerimônia que pareceria mais adequada a uma corte oriental antiga. E é muito
estranho homenagear uma pessoa com uma cerimônia em um estilo totalmente
contrário a tudo o que ela representa.
Estranhei mais ainda quando soube que
o lema escolhido para a cerimônia foi apresentar você como mártir do amor e da
reconciliação (nada de justiça nem de
libertação). Diziam que você foi um bispo de profunda oração, gostava muito da
adoração ao Santíssimo Sacramento e era fidelíssimo à Igreja... Sem dúvida,
foi. Mas, segundo eles, é por isso que você é santo... Coisa estranha! Onde
esconderam o verdadeiro Oscar Romero?
Ali, presente na cerimônia, estava Roberto
d'Arbuisson, filho do coronel - presumido mandante do crime. Todo mundo sabe
que, há algum tempo, esse senhor tinha ido pessoalmente a Roma pedir para que
interrompessem esse processo de canonização. Teria ele mudado de posição ou foi
a Igreja que mudou o modo de falar de você, Romero, para torná-lo mais
palatável? Assim, hoje, mesmo as pessoas que mais fizeram oposição ao seu nome,
agora são seus devotos. Agora, estavam todos lá. Quem parece que não estava era
você.
Ao lhe pedir perdão por meu engano,
deixe ainda eu lhe pedir uma última coisa: lá no céu, onde sem dúvida, sem
depender de Roma, você está, dê uma forcinha para que, mais tarde, eu não tenha
de escrever uma carta semelhante ao meu querido Dom Helder, sobre quem também a
mesma Congregação da Causa dos Santos começou o mesmo processo de
canonização....
Que Deus ajude o papa
Francisco nesse trabalho imenso....
Abençoe esse seu irmão
pobre e pecador
Marcelo Barros
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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