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terça-feira, 30 de dezembro de 2014

FAÇA NOVO O TEU ANO



Por Frei Betto

 Neste ano-novo, se faça novo, reduza a ansiedade, regue de ternura os sentimentos mais profundos, imprima a seus passos o ritmo das tartarugas e a leveza das garças.

Não se mire nos outros; a inveja mina a autoestima, fomenta o ressentimento e abre, no centro do coração, o buraco no qual se precipita o próprio invejoso.

Espelhe-se em si mesmo, assuma seus talentos, acredite em sua criatividade, abrace com amor sua singularidade. Evite, porém, o olhar narcísico. Seja solidário: estenda aos outros as mãos e oxigene a própria vida. Não seja refém de seu egoísmo.

Cuide do que fala. Não professe difamações e injúrias. O ódio destrói a quem odeia, não o odiado. Troque a maledicência pela benevolência. Comprometa-se a expressar alguns elogios por dia. Sua saúde espiritual agradecerá.

Não desperdice a existência hipnotizado pela TV ou navegando aleatoriamente pela internet, naufragado no turbilhão de imagens e informações que não consegue síntetizar. Não deixe que a sedução da mídia anule sua capacidade de discernir e o transforme em consumista compulsivo. A publicidade sugere felicidade e, no entanto, nada oferece senão prazeres momentâneos.

Centre sua vida em bens infinitos, nunca nos finitos. Leia muito, reflita, ouse buscar o silêncio neste mundo ruidoso. Lá encontrará a si mesmo e, com certeza, um Outro que vive em você e que quase nunca é escutado.

Cuide da saúde, mas sem a obsessão dos anoréticos e a compulsão dos que devoram alimentos com os olhos. Caminhe, pratique exercícios, sem descuidar de aceitar as suas rugas e não temer as marcas do tempo em seu corpo. Frequente também uma academia de malhar o espírito. E passe nele os cremes revitalizadores da generosidade e da compaixão.

Não dê importância ao que é fugaz, nem confunda o urgente com o prioritário. Não se deixe guiar pelos modismos. Faça como Sócrates, observe quantas coisas são oferecidas nas lojas que você não precisa para ser feliz. Jamais deixe passar um dia sem um momento de oração. Se você não tem fé, mergulhe em sua vida interior, ainda que por apenas cinco minutos.

Arranque de sua mente todos os preconceitos e, de suas atitudes, todas as discriminações. Seja tolerante, coloque-se no lugar do outro. Todo ser humano é o centro do Universo e morada viva de Deus. Antes, indague a si mesmo por que, às vezes, provoca nos outros antipatia, rejeição, desgosto. Revista-se de alegria e descontração. A vida é breve e, de definitivo, só conhece a morte.

Faça algo para preservar o meio ambiente, despoluir o ar e a água, reduzir o aquecimento global. Não utilize material que não seja biodegradável. Trate a natureza como aquilo que ela é de fato: a nossa mãe. Dela viemos e a ela voltaremos. Hoje, vivemos do beijo na boca que ela que nos dá continuamente: ao nutrir cada um de nós de oxigênio e alimentos.

Guarde um espaço em seu dia a dia para conectar-se com o Transcendente. Deixe que Deus acampe em sua subjetividade. Aprenda a fechar os olhos para ver melhor.

Feliz 2015!


Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

FIM DE UMA ERA, UMA NOVA CIVILIZAÇÃO OU O FIM DO MUNDO?



Por Leonardo Boff

 Há vozes de personalidades de grande respeito que advertem que estamos já dentro de uma Terceira Guerra Mundial. A mais autorizada é a do Papa Francisco. No dia 13 de setembro deste ano, ao visitar um cemitério de soldados italianos mortos em Radipuglia perto da Eslovênia disse:”a Terceira Guerra Mundial pode ter começado, lutada aos poucos com crimes, massacres e destruições”. O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt em 19/12/2014 com 93 anos adverte acerca de uma possível Terceira Guerra Mundial, por causa da Ucrânia. Culpa a arrogância e os militares burocratas da União Européia, submetidos às políticas belicosas dos USA.

George W. Bush chamou a guerra ao terror, depois dos atentados contra as Torres Gêmea, de “World War III”. Eliot Cohen, conhecido diretor de Estudos Estragégicos da Johns Hopkins University, confirma Bush bem como Michael Leeden, historiador, filósofo neoconservador e antigo consultor do Conselho de Segurança dos USA que prefere falar na Quarta Guerra Mundial, entendendo a Guerra-Fria com suas guerras regionais como já a Terceira Guerra Mundial. Recentemente (22/12/2014) conhecido sociólogo e analista da situação do mundo Boaventura de Souza Santos escreveu um documentado artigo sobre a Terceira Guerra Mundial (Boletim Carta Maior de 22/12/2014). E outras vozes autorizadas se fazem ouvir aqui e acolá.

A mim me convence mais a análise, diria profética, pois está se realizando como previu, de Jacques Attali em seu conhecido livro “Uma breve história do futuro” (Novo Século, SP 2008). Foi assessor de François Mitterand e atualmente preside a Comissão dos “freios ao crescimento”. Trabalha com uma equipe multidisciplinar de grande qualidade. Ele prevê três cenários:

(1) o superimpério composto pelos USA e seus aliados. Sua força reside em poder destruir toda a humanidade. Mas está em decadência devido à crise sistêmica da ordem capitalista. Rege-se pela ideologia do Pentágo do”full spectrum dominance”(dominação do espectro total) em todo os campos, militar, ideológico, político, econômico e cultural. Considera-se a nação indispensável, a única que tem interesses globais e se dá o direito de intervir, em qualquer parte do mundo, caso sejam postos em risco. Mas foi ultrapassado economicamente pela China e tem dificuldades de submeter todos à lógica imperial.

(2) O superconflito: com a decadência lenta do império, dá-se uma balcanização do mundo, como se constata atualmente com conflitos regionais no norte da Africa, no Oriente Médio, na Africa e na Ucrânia. Esses conflitos podem conhecer um crescendo com a utilização de armas de destruição em massa (vide Síria, Iraque), depois de pequenas armas nucleares (existem hoje milhares no formato de uma mala de executivo) que destroem pouco mas deixam regiões inteiras por muitos anos inabitáveis devido à alta radioatividade. Pode-se chegar a um ponto com a utilização generalizada de armas nucleares, químicas e biológica em que a humanidade se dá conta de que pode se auto-destruir.

E então surge (3) o cenário final: a superdemocracia. Para não se destruir a si mesma e grande parte da biosfera, a humanidade elabora um contrato social mundial, com instâncias plurais de governabilidade planetária. Com os bens e serviços naturais escassos devemos garantir a sobrevivência da espécie humana e de toda a comunidade de vida que também é criada e mantida pela Terra-Gaia.

Se essa fase não surgir, poderá ocorrer o fim da espécie humana e grande parte da biosfera. Por culpa de nosso paradigma civilizatório racionalista. Expressou-o bem o economista e humanista Luiz Gonzaga Belluzzo, recentemente:

“O sonho ocidental de construir o hábitat humano somente à base da razão, repudiando a tradição e rejeitando toda a transcendência, chegou a um impasse. A razão ocidental não consegue realizar concomitantemente os valores dos direitos humanos universais, as ambições do progresso da técnica e as promessas do bem-estar para todos e para cada um”(Carta Capital 21/12/2014). Em sua irracionalidade, este tipo de razão, construi os meios de dar-se um fim a si mesma.

O processo de evolução deverá possivelmente esperar alguns milhares ou milhões de anos até que surja um ser suficientemente complexo, capaz de suportar o espírito que, primeiro, está no universo e somente depois em nós.
Mas pode também irromper uma nova era que conjuga a razão sensível (do amor e do cuidado) com a razão instrumental-analítica (a tecnociência). Emergirá, enfim, o que Teilhard de Chardin chamava ainda em 1933 na China a noosfera: as mentes e os corações unidos na solidariedade, no amor e no cuidado com a Casa Comum, a Terra.

Escreveu Attali:”quero acreditar, enfim, que o horror do futuro predito acima, contribuirá para torná-lo impossível; então se desenhará a promessa de uma Terra hospitaleira para todos os viajantes da vida (op.cit. p. 219).

E no final nos deixa a nós brasileiros esse desafio:”Se há um país que se assemelha ao que poderia tornar-se o mundo, no bem e no mal, esse país é o Brasil”(p. 231).



Leonardo Boff escreveu Hospitalidade: direito e dever de todos, Vozes, Petrópolis 2005.

 É filósofo e teólogo, escritor, assessor do projeto Cultivando Agua Boa da Itaipu Binacional  e um dos co-redatores da Carta da Terra

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

PARA FRANCISCO, MAIS QUE UM TANGO




Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



O mundo não sabe o que fazer para expressar sua simpatia pelo Papa Francisco, que depois de um ano de pontificado continua encantando com seu sorriso a crentes e não crentes.  Assim é que no dia de seu aniversário, dia 17 de dezembro, ofereceram-lhe um bom mate argentino para fazê-lo sentir-se mais próximo de sua querida Argentina.  Além de um bolo cheio de velas e um tango dançado por muitos casais na bela e solene praça de São Pedro.

       O Papa é grande apreciador deste belo estilo de dança tão característico de Buenos Aires.  Seu coração deve ter vibrado ao ritmo de bandoneões e violinos marcando o passo dos casais tangueros. Assim criativa e carinhosa foi a homenagem.  Enquanto recebia manifestações de apreço e presentes, Francisco dava presentes.  Distribuiu 400 sacos de dormir a pessoas sem teto que vivem nas ruas de Roma e nos arredores da Cidade do Vaticano.

         Mas aí não pararam os presentes para e de Francisco.  O maior estava por vir... e veio. Um presente do qual o próprio Papa foi importante artesão, mas que, sem dúvida, ao tornar-se concreto foi o que mais alegrou seu coração.  Dois países em beligerante “guerra fria” há muitos anos – Estados Unidos e Cuba – retomaram suas relações diplomáticas.  Após 18 meses de negociações e um documento redigido na biblioteca do Vaticano, a Ilha de Raúl Castro e o país de Obama deram um gigantesco passo no processo de aproximação.

      Seguramente, este foi o presente que mais alegrou o Papa.  Mais que o tango, o mate e o bolo.  Porque não há nada que o motive mais do que a luta pela paz. Ele está informado sobre tudo que vem sofrendo o povo cubano com todas as consequências da ruptura de relações com os EUA.  Muito concretamente vem acompanhando a situação da Igreja em Cuba que, ao longo destes 53 anos, conheceu períodos nada fáceis.

      Se, por um lado, é verdade que a revolução trouxe benefícios muito importantes em termos de justiça social, igualdade de direitos e autodeterminação política aos habitantes da Ilha, há pontos duros no cotidiano do admirável povo cubano.  Sobretudo depois da queda do muro de Berlim, quando cessaram as contribuições da extinta União Soviética.  Um dos problemas mais graves enfrentados é o embargo econômico estadunidense.  Desde então, os cubanos tornaram-se verdadeiros especialistas em criatividade para inventar estratégias de sobrevivência, fazendo do pouco muito e do nada tudo.

     Raúl Castro foi contundente ao lembrar esta realidade a Obama.  Há décadas, a Ilha vem sendo oprimida por este cruel embargo.  E pediu seu cessar imediato.  Obama se comprometeu a discutir a possibilidade com o Congresso estadunidense que, apesar de ter a maioria republicana, terá que levar em consideração o sentimento da maioria dos cidadãos e da comunidade cubana dos EUA.

     O presidente negro anunciou ao mundo a flexibilização das restrições para viagens à Ilha e para remessas de dinheiro a partir dos EUA, permitindo que bancos estadunidenses abram contas em bancos cubanos.   Uma embaixada americana abrirá suas portas em Havana e Cuba terá assento nas conversações diplomáticas com a nação do Norte. 

     As relações bilaterais mais abertas seguramente beneficiarão a Igreja em Cuba.  Com um número não tão expressivo de fiéis, os católicos cubanos conheceram uma nova etapa em sua eclesialidade depois da histórica visita de João Paulo II, em 1998.  Contra as expectativas não só do regime, mas de todos, um milhão de pessoas saíram às ruas para saudá-lo.  E o Papa polonês, ao lado de um Fidel Castro ainda sadio e forte, fez bem seu papel de comunicador insuperável.

     A partir daí, a Igreja cubana encontrou mais abertura para suas iniciativas.  Figura hábil politicamente, o cardeal de Havana, Jaime Ortega, alcançou algumas conquistas importantes, sobretudo nas conversações diplomáticas com o governo a propósito de presos políticos entre outros pontos.

     Quando Raúl Castro assumiu a presidência de Cuba, a abertura aumentou.  As relações com a hierarquia cubana passaram a ser francamente cordiais.  Há muitos anos, meu marido e eu vamos a Cuba fazer trabalho pastoral.  Devo dizer que jamais encontrei nenhuma dificuldade para entrar e sair da ilha, nem para trabalhar ou aproximar-me das pessoas.

     Sempre me impressionou muito a dignidade dos cubanos. Jamais os ouvi se queixarem das deficiências do transporte público e de terem de fazer longos percursos a pé.  Tampouco jamais os escutei falar em tom de lamentação sobre o fato de a cada dia terem de buscar os alimentos em dois ou três lugares diferentes.  Ao contrário, sempre comentavam em tom bem humorado a imensa luta do cotidiano. 

     Também me impressionou sua fé, intacta e fortalecida, justamente por terem de enfrentar tantas provações.  Falando com amigos católicos, revolucionários de primeira hora, podia-se sentir o sofrimento deles pela falta de liberdade e pelas famílias dispersas por outros países.  Mas a opção de permanecerem na Ilha tinha origem em sua fé e na convicção de não poderem abandonar seu país e seu povo.  E igualmente se pode experimentar vivamente o amor e o orgulho que sentem em ser cubanos, em pertencer a este povo e a esta história, o desejo de viverem em Cuba, com tudo o que tem e deixa de ter.

     Estarão todos celebrando, creio, essa histórica abertura que tem significados tão profundos para a humanidade.  Politicamente, todos os analistas são unânimes em reconhecer que representa o fim efetivo da “guerra fria”.  Mostra igualmente que a América é um só continente, tirando o sentido de divisões estéreis que só fazem estragar o futuro e malograr as esperanças.  O próprio presidente Obama pronunciou a frase histórica que, esperamos, seja muito consequente no future próximo: “Somos todos americanos”.  Sim, senhor presidente, todos.  A América somos nós: os “red necks” e os migrantes, os sudacas e as centenas de etnias nativas em solo Americano, ao norte e ao sul.  Todos americanos!
     Em termos de política externa, é um êxito o fato de os EUA tenham chegado à conclusão de que o isolamento a que submeteu Cuba não funcionou, como declarou o presidente Obama.  É um raciocínio tão simples e evidente que surpreende terem levado mais de cinco décadas para se conscientizarem disso.  O presidente estadunidense se perguntou diante do mundo: “Para que nos serviram décadas de bloqueio? “ A resposta é: para nada.  A altiva e digna Cuba não se curvou, e sobreviveu apesar de todas as suas dores e dificuldades.  E o presidente americano aprendeu uma importante lição: “Empurrar Cuba para o abismo não beneficia nem aos EUA nem ao povo cubano.”

        Escutando isto, Francisco deve ter sorrido e agradecido humildemente e do fundo da alma a Deus por este magnífico presente de aniversário. Por sua vez, Obama não deixou de mencioná-lo como peça fundamental em toda a negociação. “Em particular, quero agradecer a Sua Santidade, o Papa Francisco, cujo exemplo moral nos mostra a importância de lutar por um mundo como deve ser, em lugar de simplesmente aceitá-lo tal como é.”

     Que belo presente de aniversário, Santidade!  A cultura do encontro funcionando, a paz e o diálogo restabelecidos, um povo que sofria vislumbrando uma ridente esperança, e a lição evangélica aprendida de “não conformar-se a este mundo”. Seguramente, gostando como gostamos do tango, essa canção foi muito mais inspiradora: os acordes da paz enchendo os ares de uma América em processo de reconciliação, de uma Igreja na América fazendo-se realidade.  Como dizia Vinicius de Moraes, poeta e diplomata brasileiro: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”

 MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

NATAL, NASCER DE NOVO

por Frei Betto

                                               

      Natal é tempo de desconforto. Premidos pela publicidade que troca Jesus Cristo por Papai Noel, somos desdenhados como cidadãos e aliciados como consumidores.

      Ainda que com dinheiro no bolso, instala-se um oco em nosso coração. Aquece-se a temperatura de nossa febre consumista e, discípulos fundamentalistas de esdrúxula seita, adentramos em procissão motorizada nas catedrais de Mamon - os shopping centers.

      Nessas construções imponentes, falsos brilhantes da cenografia cosmopolita, aguardam-nos as oferendas da salvação, premissas e promessas de felicidade. Exibidas em requintados nichos, vitrines reluzentes, acolitadas por belas ninfas, as mercadorias são como imagens sagradas dotadas do miraculoso poder de nos fazer ingressar no reino celestial dos que tudo fazem para morrer ricos.

      Livres de profanas figuras que poluem o exterior, como as crianças que transmutam as janelas de nossos carros em molduras do pavor, percorremos silentes as naves góticas, enlevados pela música asséptica e o aroma achocolatado de supimpas iguarias.

      Olhos ávidos, flexionamos o espírito de capela em capela, atendidos por solícitas sacerdotisas que, se não podem ofertar de graça o manjar dos deuses, ao menos nos brindam com seus trajes de vestais romanas, condenadas à beleza compulsória.

      Eis ali, no altar de nossos sonhos, o Céu antecipado na Terra na forma de joias, aparelhos eletrônicos, roupas e importados, sacramentos que nos redimem do pecado de viver neste país cuja miséria estraga a paisagem.

       Com certeza o Natal papainoélico é a única festa em que a ressaca se antecipa à comemoração. Tomem-se vinhos e castanhas, panetones e perus, e um punhado de presentes, eis a receita para disfarçar uma data. E sonegar emoções e sentimentos. Mas não é Natal.

      Para se fazer festa de Natal é preciso aquecer afetos e servir, à mesa, corações e solidariedade, destampando a alma e convertendo o espírito em presépio, onde renasça o Amor. Dar-se em vez de dar, estreitando laços de família e vínculos de amizade.

      Urge abrir o dicionário gravado nas dobras de nossa subjetividade e substituir competição por comunidade, inveja por reconhecimento, ressentimento por humildade, eu por nós.

      Melhor que nozes nesses trópicos calientes, convém saciar a língua de prudência, privando-se de falar mal da vida alheia.

      Um pouco de silêncio, uma oração, a retração do ego, favorecem o encontro consigo mesmo, sobretudo a quem se reconhece alienado de Deus, dos outros e da natureza. Não custa pisar no freio dessa destrambelhada corrida de quem, no afã de ultrapassar o ritmo do tempo, corre o risco de ter a vida abreviada pela exaustão do corpo e a confusão da mente.

      Antes dos copos, recomenda-se encher o coração de ternura até transbordar pelos olhos e derramar-se em afagos e beijos.

      Pois de que vale o Natal se não temos coragem de nos dar de presente a decisão de nascer de novo?



Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

OS HOMENS E AS MULHERES DO CUIDADO DO PREMIER HOSPITAL

por Leonardo Boff

                                         

Quem passa pela Avenida Jurubatuba, 481 na Vila Cordeiro/Brooklin, São Paulo, encontra algo que nos enche de humanidade, de fé e de amor. É o “Premier Hospital/MAIS-Modelo de Atenção Integral à Saúde”. Trata-se de uma entidade que reúne multiprofissionais da saúde, inteiramente dedicados ao atendimento de idosos e idosas e pacientes em cuidados paliativos. Surgiu no Brasil a Academia Nacional de Cuidados Paliativos que acumulou reconhecidos méritos. Mas o Premier Hospital da Vila Cordeiro, seguramente sobressai por sua excelência e pela visão integral e holística que confere ao cuidado, palavra-chave, inspiradora de todos os cuidados. O cuidado é aquele gesto amoroso que acolhe o paciente e lhe confere sossego e paz.

O Dr. Samir Salman é seu superindentende, muçulmano ecumênico, cujo coração é maior que o próprio hospital. Não apenas se preocupa com o cuidado dos enfermos mas com o entorno ecológico, como a praça, os jardins com variegadas flores, a escola vizinha e aberto às necessidades de todo bairro. É secundado pelo jornalista Sérgio Gomes da Oboré, outra entidade que se distingue pelos serviços que presta à comunicação preferentemente de cunho popular, via radio, com ênfase na formação e na complementação universitária para estudantes de jornalismo. É uma pessoa de notório e diversificado saber, e articulada com a sociedade, preso político e torturado mas que não perdeu a ternura para com os humilhados e ofendidos da sociedade.

Uma coisa é escrever a teoria do cuidado como o fiz em dois livros – Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra(1999) e o outro O cuidado necesário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade (2012). Outra coisa é ver a prática direta do cuidado para com os pacientes. Aí ficamos de fato impactados com o carinho, o amor e a jeito pessoalíssimo de se acercarem dos idosos e idosas, de outras pessoas afetadas por Alsheimer e de doentes terminais.

Aqui se vê em ação a inteligência cordial ou emocional que é mais do que a inteligência intelectual, sempre necessária para a formação científica. Vale dizer, aqui é o reino do cuidado que se traduz por amor, por palavras suaves e consoladoras, por toques que devolvem o sentido humano da relação.

Tocar uma pessoa (com todos os cuidados necessários para evitar bactérias) é mais que um gesto físico. É uma expressão profundamente humana e espiritual. O toque da pele quer comunicar: “você que está ai é meu irmãozinho e minha irmãzinha, você pertence à nossa humanidade, você não estará nunca só porque eu estou aqui para te acompanhar”.

Passei por muitos quartos, conversei com muitos pacientes, tomando-lhes as mãos e fazendo-os rir, ao apresentar-me, por causa de minha barba, como o “irmão do Papai Noel” que os visitava antes do Natal. Com D. Iolanda Leone, uma velhinha de 85 anos e olhos brilhantes cantamos juntos várias canções em vêneto que tanto ela com eu conhecíamos quando crianças. Segurava-me a mão e não queria que partisse.

Não quero esquecer entre tantos e tantas médicos e médicos como a médica Angélica Massako Yamaguchi sempre pronta a atender pouco importa a que horas do dia e da noite e outros enfermeiros e enfermeiras e auxiliares.

Pela tarde fizemos uma roda de conversa com o pessoal do Premier Hospital. Tentei mostrar-lhe que eles não apenas cuidam da vida das pessoas afetadas mas que devem se abrir ao cuidado da vida da Mãe Terra, pois todos somos filhos e filhas queridos dela, melhor ainda, somos a própria Terra que sente e ama e que agora sofre com febre alta devido às agressões irresponsáveis dos que somente pensam acumular sem cuidar da natureza. Eles são cuidadores e cuidadoras de toda a vida em sua esplêndida diversidade. Prova disso são as flores, os jardins e praças que o hospital assumiu cuidar.

Tudo terminou no dia 13 de dezembro conferindo-me o Prêmio Averroes –Pioneiro e Compartilhador – no auditório Ibirapuera Oscar Niemeyer. Nem todos sabem da importância de Averroes da Andaluzia (1126-1198). Muçulmano, foi o grande comentador de Aristóteles, um sábio que dominava todos os saberes de seu tempo, fazendo-os culminar na medicina como promoção plena da vida. Os medievais como os discípulos de Tomás de Aquino o visitavam pois se haviam perdidos os textos dos clássicos gregos como Aristóteles e Platão que foram conservados por eles e estão na base da Escolástica medieval. Dizia-se que Averroes chegou ”a um supremo grau de perfeição, acessível ao mundo material”. Há os que o consideram o “pai espiritual da Europa”.

A cerimônia da entrega do belo trofeu com o nome de Averroes escrito em árabe, hebraico e latim, das três religiões que conviviam ecumenicamente. Houve um belíssimo concerto com orquestra, com o Coro Luther Kng e o Coral Paulistano Mario de Andrade executando trechos da obra O Messias de Haendel, dirigido pelo maestro Martinho Lutero Galati. Deu inteligentes explicações de cada parte. Não dirigia apenas com a vareta, mas todo o seu corpo vibrava com a música. Os dois coros se superavam mutuamente na beleza das vozes.

Nos três dias em que convivi com os mantenedores do Premier Hospital senti a força da fé na pessoa humana, do amor incondicional, da hospitalidade calorosa mas principalmente do cuidado essencial. A Mãe Terra não nos dá apenas sinais de dores, mas também de esperança e de futuro. Enquanto houver o cuidado que encontrei naquele hospital percebemos: nem tudo está perido. Há ainda salvação.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O VERBO DE DEUS CRIANÇA




por Maria Clara Lucchetti Bingemer 



E eis-nos novamente aqui, como todo ano, esperando por uma criança que vai nascer.  Algo tão usual, tão ocorrente e recorrente.  Pelas ruas, as mulheres andam, caminham e passeiam com suas barrigas cheias de vida que pulsa; cheias de um embrião que cresce e vai adquirindo a forma humana, com os olhos claros da mãe, a testa larga do pai, o temperamento forte da família... Nas maternidades, hospitais ou nas casas, o tempo vem a termo e das barrigas, antes grávidas, nasce a criança que todos esperavam.  E há choro, lágrimas, gritos de dor e de alegria.

E, no entanto, aqui estamos nós, arrumando presépios, preparando ritos, distribuindo votos e presentes... como se fosse a coisa mais extraordinária do mundo. Uma criança que nasce... tão ordinário e, ao mesmo tempo, tão extraordinário... parece que tudo começa de novo... recomeça... volta ao começo, àquele começo que no final do século I da nossa era um evangelista descreveu assim: No Princípio era o Verbo...

Ora, o que tem algo tão corriqueiro e usual como o nascimento de uma criança a ver com essa sofisticada redação?  Parece-me, ao contrário, que tem tudo a ver.  Porque o evangelista continua:  E o Verbo estava junto de Deus.  E o Verbo era Deus.  E, não satisfeito, diz mais adiante: E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.

Parece que o assombro cresce e a questão se complica.  Pois Aquele que era desde o princípio, que estava junto de Deus e era Deus...como entra no tempo e se faz carne? Como?  Da maneira como todos nós entramos no mundo: no ventre de uma mulher, a semente divina cresceu, desenvolveu-se e quando se consumaram os dias de sua gestação, a mãe deu à luz seu filho.

Assim entrou Deus na história: criança, bebê, rompendo caminho pelo corpo da mãe afora, vindo à luz, chorando para abrir os pulmões, mamando para alimentar-se.  Uma criança... uma simples criança.  Aos reis magos que perguntaram como reconheceriam o sinal de Deus de que o Messias havia chegado, foi-lhes dito apenas este fato tão banal: encontrareis uma criança... encontrareis um menino envolto em faixas e deitado em uma manjedoura.

Um bebê que não sabe alimentar-se sozinho...  não sabe valer-se sozinho... precisa dos outros para tudo... E, sobretudo, que não sabe falar.  Apenas chorar.  Mas como?  O Verbo de Deus não sabe falar?  A Palavra que foi pronunciada sobre o caos e criou o mundo não fala?  Por quê?  Por que não pode?  Por que não sabe?  Sim, não pode, não sabe, pois se entrou na carne humana, segue todo o caminho que esta carne segue para seu crescimento e desenvolvimento.  E, assim, o Verbo que foi pronunciado sobre tudo... não sabe falar... ainda.

Mais tarde aprenderá a falar.  Será poeta de parabolas, que ensinarão muitos a viver. Todo o povo permanecerá suspenso do que sai de seus lábios.  Falará, pregará, dirá palavras de alegria, de esperança, de alívio, de consolo para tantos e tantas... Mas, no momento, não fala.  Alimenta-se, chora, dorme... vive a rotina de um recém-nascido, que deve ser introduzido na vida pela mãe que o gerou, pelo pai que o acompanha, pelos outros que cruzarão seu caminho.

Por isso, esperamos com tanto ardor por essa criança.  Ela é semelhante a todas, porque não quer diferenciar nem destacar-se em nada.  Quer justamente assumir a condição humana e aprender a ser humano.  Por isso, aprenderá a falar... a andar... a mover-se... a amar... a sofrer... a viver enfim.  E crescerá e se tornará adulto... e entenderá sua missão... e se entregará a ela até o fim. 

A festa do Natal tem em seu centro uma criança... impotente, indefesa, pobre, frágil, vulnerável.  Diante dela nos inclinamos, atentos, humildes, reverentes... pois nela pulsa o mistério maior que é o mistério da vida.  E, no caso desta criança, da vida que nos salvará da morte e nos levará ao país da alegria pura e sem término. Nesta criança é Deus mesmo que aprende a ser humano.

Enquanto isso, contemplamos as mulheres que passam com suas barriguinhas redondas e cheias de vida; e as crianças que choram, mamam, dormem e vivem intensamente; e as crianças que não puderam nascer; ou as que nasceram e não puderam viver; e as crianças que nascerão e a todos nos dirão palavras de vida.  Em toda criança, já nascida ou esboçada no ventre da mãe, o Natal acontece.  O Verbo de Deus se faz criança.  E em seu silêncio bendito... fala.

Que possamos acolhê-lo em nosso colo, em nosso lar, em nossa vida.  Que seu mistério de graça e pobreza nos conquiste o coração.  Que aceitemos que quem nos salva não é um poderoso e violento chefe militar, ou um rei coroado e cheio de poder, mas uma criança indefesa, que ainda não sabe falar, mas cuja pureza nos ensina o que é o amor. 

FELIZ NATAL!

 Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio 

A teóloga é autora de O  mistério e o mundo  Paixão por  Deus em tempo de descrença, Editora  Rocco. Copyright 2014 MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br