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domingo, 30 de outubro de 2011

A PROFECIA DO ENCONTRO DE ASSIS

A profecia do encontro de Assis


Marcelo Barros


Tanto na nossa experiência cotidiana, quanto na tradição bíblica, comumente a profecia surge de quem está à margem das instituições e não de quem tem a função de governá-las. Por isso mesmo, precisamos valorizar a iniciativa profética do papa Bento XVI em convidar líderes religiosos das mais diversas tradições espirituais e até homens e mulheres não crentes para, nesta quinta-feira, 27, viverem juntos um dia de reflexão e de meditação sobre a paz e a justiça, em Assis. O papa fez isso para recordar os 25 anos do primeiro encontro desse tipo, promovido pelo papa João Paulo II. No 27 de outubro de 1986, em Assis, o papa reuniu em um encontro de oração mais de 200 representantes das mais diversas tradições espirituais. Na época, João Paulo II enfrentou pressões dentro do próprio Vaticano contra essa iniciativa. Ele a defendeu explicando que era um modo de motivar as religiões para se empenharem mais pela causa da paz e da justiça, que não é um assunto só social e político, mas profundamente espiritual.


Agora, no atual contexto da Igreja e do mundo, retomar essa iniciativa deve ter sido mais difícil ainda para o papa Bento XVI. Em um recente pronunciamento à imprensa, publicado pelo Observatore Romano, o próprio secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Bertone, ao explicar o sentido desse encontro interreligioso em Assis, levou mais tempo em falar dos riscos do relativismo religioso e do sincretismo que esse encontro precisa evitar, do que propriamente dos valores positivos do encontro.


Vamos falar claro: sem dúvida, o ecumenismo e o diálogo entre as religiões dificilmente avançarão a partir apenas de encontros de cúpula, sem participação direta das bases. Também devemos reconhecer: esta forma de encontro proposto pelo papa ainda é muito tímida: os/as representantes das diversas religiões se reúnem no mesmo lugar (a basílica de São Francisco) para orar, mas oram separadamente. Entretanto, seja como for, o gesto do papa em convocar esse encontro e coordenar essa jornada inter-religiosa pela paz e pela justiça é sim uma profecia para as Igrejas e para o mundo atual.


Em primeiro lugar, não teria sentido o papa convidar os líderes de outras religiões para orar, se ele pensasse que essas religiões não valem nada e que sua oração é inútil ou até errada. Ao convidar pastores evangélicos, patriarcas orientais e chefes de outras religiões, como o Dalai Lama, o grande rabino de Jerusalém, sheiks muçulmanos, líderes de tradições africanas e de outras tradições espirituais, para refletir juntos sobre a paz e estar juntos para orar, o papa faz um gesto de reconhecimento do valor espiritual dessas religiões e testemunha que é importante uni-las a serviço da paz e da justiça. Este dia de encontro de oração em Assis revela que, cristãos e não cristãos, são chamados a viver sua fé em um mundo pluralista e na convivência com outras formas de expressar a fé. Essa convivência não põe em risco nossa identidade, mas ao contrário, enriquece nossa espiritualidade. É esta a profecia contida nesse gesto de Assis. Embora limitado pelas conveniências diplomáticas do poder religioso e ainda tentado pelo medo de ousar mais em nome da fé, esse gesto do papa antecipa a possibilidade de que as tradições espirituais do mundo se unam para trabalhar efetivamente pela paz e pela justiça. Orar pela paz e pela justiça pode levar os religiosos a ajudar a humanidade a compreender que, para vencer as violências, as guerras e as injustiças, precisamos organizar o mundo de outro modo e a partir de outros critérios que não sejam o lucro e a competitividade. A Jornada inter-religiosa pela paz e pela justiça que neste 27 de outubro o papa Bento XVI coordena em Assis nos chama todos nós a sermos, como os líderes religiosos reunidos neste dia, “peregrinos da verdade, peregrinos da paz”.


domingo, 23 de outubro de 2011

A PRAÇA É DO POVO...



por Frei Betto






Há algo de novo, e não de podre, no reino da Dinamarca! Verdade que provocado pelo cheiro de podridão. Como suportar o odor fétido de uma Câmara dos Deputados que absolve uma deputada flagrada e filmada recebendo bolada de dinheiro escuso? A 12 de outubro, manifestantes foram às ruas do Brasil, e de 1.242 cidades dos EUA, emitir protestos cívicos.


Aqui, 30 mil pessoas, a maioria em Brasília, exigiram o fim do voto secreto no Congresso Nacional; o direito de o Conselho Nacional de Justiça investigar e punir juízes corruptos; a vigência da Ficha Limpa nas eleições de 2012; e o fim da corrupção na administração pública. A novidade é que, tanto aqui como nos EUA, as mobilizações foram convocadas por redes sociais.


Uma ação espontânea, sem partidos e líderes carismáticos, e que, no mínimo, mereceria o apoio da UNE, da CUT e dos partidos ditos progressistas. Nos EUA, cresce o movimento Ocupem Wall Street. Ali se situa o centro financeiro estadunidense, protegido pela exuberante estátua do touro que bem simboliza a ganância e a prepotência do capital financeiro. Semana passada, mais de 1.000 manifestantes foram presos nos EUA, desmascarando a propalada liberdade de expressão da democracia capitalista. Liberdade, sim, de especulação feita por aqueles que Roosevelt qualificou de “monarquia econômica”.


A elite usamericana entrou em pânico, embora as manifestações sejam bem mais pacíficas e ordeiras que as do Tea Party (extrema direita) em 2009. O deputado republicano Eric Cantor chamou os manifestantes de “gangues”. Mitt Rommey, pré-candidato republicano em 2012, acusou-os de provocar uma “luta de classes”... O fato é que o poder público, aqui, e o poder econômico, lá, estão prensados contra a parede. E agora o movimento se expande pelos países da Europa diretamente afetados pela crise financeira e mais interessados em salvar bancos que empregos.


A avareza dos magnatas ianques é tamanha que acusam Obama de “socialista” pelo simples fato dele apoiar a regra Volcker, que proíbe bancos, beneficiados com ajuda governamental, de praticarem especulação. Bush aprovou (e Obama ainda não revogou) a redução de US$ 5 bilhões no montante de impostos pagos pela minoria que ganha mais de US$ 250 mil por ano (cerca de R$ 420 mil). “Taxem os ricos!”, diziam os protestos do Ocupem Wall Street. Desde janeiro de 2008, o setor financeiro de Nova York fechou 22 mil postos de trabalho. E mais 10 mil estão previstos.


O banco Goldman Sachs despediu 1.000 funcionários e o Bank of America, 30 mil. São consideradas “muito ricas” nos EUA apenas 31 milhões de pessoas, o que equivale a 1% da população. E todo o sistema de governo mais protege essa minoria do que os outros 99%. No Brasil, os muito ricos são 3 milhões.


O Brasil está sob ameaça da crise financeira. Nossas exportações, em especial soja e minério de ferro, dependem muito da China. Por sua vez, 41,5% das exportações chinesas são consumidas pelos EUA e a União Europeia. Se estes dois blocos reduzirem suas importações, o sinal vermelho acende na China. Ela cresceu 10,3% ano passado e, este ano, não deve ir além de 8,7%, caindo para 8,2% em 2012. O que pode afetar as exportações brasileiras e trazer de volta, junto com o dragão da inflação, o desemprego. Todas essas manifestações de rua são positivas, porém insuficientes.


Não basta protestar. É preciso propor – uma nova ordem econômica, um novo projeto político, um outro mundo possível... Outro risco implícito às atuais manifestações é confundir apartidarismo com repúdio a partidos. Estes são imprescindíveis para manter ou transformar o atual estado de coisas.


E, ano que vem, teremos eleições municipais. Com o Ficha Limpa vigente, saberemos em quem não votar. Mas é preciso ter clareza em quem votar, livre das promessas vãs e da demagogia televisiva. É hora de iniciar o debate de valores e critérios para a escolha de vereadores e prefeitos. Caso contrário, tudo ficará como dantes no quartel de Abrantes.


Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

O BONSAI E SUA DINÂMICA



por Assuero Gomes






O Bonsai, que quer dizer “árvore na bandeja”, é uma arte milenar, originária da China, e difundida atualmente em todo mundo. Consiste em cultivar árvores e arbustos em vasos, tentando reproduzir em miniatura esses nossos irmãos, como se estivessem livres na natureza em todo seu verde esplendor.


A maior lição de quem cultiva essa arte é o cuidar. O Bonsai traz em si toda a delicadeza e beleza da mãe Terra, com seus requintes e caprichos, seus desejos e segredos mais escondidos. No Bonsai há que se cuidar do solo, das raízes, das folhagens, das florescências quando as houver, do micro clima. No entanto ao cuidar dele na verdade há a descoberta do cuidar de si, do cuidar do outro, da comunidade e do meio ambiente.


Deveria ser matéria obrigatória em todo currículo escolar, especialmente dos alunos e mestres, da área de saúde, dos seminaristas e sacerdotes, dos artistas e poetas e especialmente dos economistas e financistas.


Um dinâmica que imagino, para se avaliar o relacionamento humano: consigo mesmo, entre o casal, entre a família, grupo de fé ou convivência ou até grupo de trabalho, uma forma de avaliar e aprimorar a catarse dos recursos humanos, seria dar um bonsai já com alguns anos de existência (quando mais antigo um bonsai mais valioso, em todos os sentidos ele é), a um membro do grupo e pedir para que ele passe uma semana com a pequena árvore, depois do que ele seria entregue a outro e assim por diante, sem regras pré-determinadas. Se o bonsai sobrevivesse ao final de todo ciclo, esse grupo estaria dando uma prova de sobrevivência. Imagino as reflexões que isso geraria, mesmo se em alguma parte o bonsai perecesse.

O mesmo poderia ser feito no início de cada ano letivo, os alunos levariam um exemplar para casa, livro vivo da natureza e do cuidar, e ficariam de prestar contas a cada período.


Para se ter êxito no cultivo de um bonsai (há registro de bonsais com mais de 1.200 anos na China e quase isso no Japão, vivos e em plena e serena glória), há que se ter dedicação, paciência, observação acurada, há que se apreciar o silêncio e a introspecção, há que se amar o belo e se desprender de alguns valores da sociedade de consumo. Há que aprender com o bonsai a respeitar os limites, a tolerância, o envelhecer, as mudanças de cada estação e seus tempos precisos. Há que se reaprender a pensar no silêncio interior de sua alma e colocar sua alma irmanada aos seres vivos, e reaprender que somos todos interligados, dependentes um do outro, como vários bonsais em uma só bandeja, a Terra.



DO QUINTO EVANGELHO:PROCLAMAÇÃO DO CRISTO CORCOVADO




por Leonardo Boff





Naqueles dias, ao se completarem 80 anos de existência, o Cristo do Corcovado estremeceu e se reanimou. O que era cimento e pedra se fez carne e sangue. Estendendo os braços, como quem quer abraçar o mundo, abriu a boca, falou e disse:




“Bem-aventurados sois todos vós, pobres, famintos, doentes e caídos em tantos caminhos sem um bom samaritano para vos socorrer. O Pai que é também Mãe de bondade vos tem em seu coração e vos promete que sereis os primeiros herdeiros do Reino de justiça e de paz.



Ai de vós, donos do poder, que há quinhentos anos sugais o sangue dos trabalhadores, reduzindo-os a combustível barato para vossas máquinas de produzir riqueza iníqua. Não serei eu a vos julgar, mas as vitimas que fizestes atrás das quais eu mesmo me escondia e sofria.


Bem-aventurados sois vós, indígenas de tantas etnias, habitantes primeiros destas terras ridentes, vivendo na inocência da vida em comunhão com a natureza. Fostes quase exterminados. Mas agora estais ressuscitando com vossas religiões e culturas dando testemunho da presença do Espírito Criador que nunca vos abandonou.


Ai daqueles que vos subjugaram, vos mataram pela espada e pela cruz, negaram-vos a humanidade, satanizaram vossos cultos, roubaram-vos as terras e ridicularizaram a sabedoria de vossos pagés.Bem-aventurados e mais uma vez bem-aventurados sois vós, meus irmãos e irmãs negros, injustamente trazidos de Africa para serem vendidos com peças no mercado, feitos carvão para ser consumido nos engenhos, sempre acossados e morrendo antes do tempo.


Ai daqueles que vos desumanizaram. A justiça clama aos céus até o dia do juízo final. Maldita a senzala, maldito o pelourinho, maldita a chibata, maldito o grilhão, maldito o navio-negreiro. Bendito o quilombo, advento de um mundo de libertos e de uma fraternidade sem distinções.Bem-aventurados os que lutam por terra no campo e na cidade, terra para morar e para trabalhar e tirar do chão o alimento para si, para os outros e para as fomes do mundo inteiro.



Maldito o latifúndio improdutivo que expulsa posseiros e que assassina quem ocupa para ter onde morar, trabalhar e ganhar o pão para seus filhos e filhas. Em verdade vos digo: chegará o dia em que sereis espoliados. E a pouca terra da campa será pesada sobre vossas sepulturas.


Bem-aventuradas sois vós, mulheres do povo, que resististes contra a opressão milenar, que conquistastes espaços de participação e de liberdade e que estais lutando por uma sociedade que não se define pelo gênero, sociedade na qual homens e mulheres, juntos, diferentes, recíprocos e iguais inaugurareis uma aliança perene de partilha, de amor e de corresponsabilidade.Benditos sois vós, milhões de menores carentes e largados nas ruas, vitimas de uma sociedade de exclusão e que perdeu a ternura pela vida inocente.


Meu Pai, como uma grande Mãe, enxugará vossas lágrimas, vos apertará contra o seu peito porque sois seus filhos e filhas mais queridos.



Felizes os pastores que servem, humildemente, o povo no meio do povo, com o povo e para o povo. Ai daqueles que trajem vestes vistosas, se envaidecem nas televisões, usam símbolos sagrados de poder, exaltam o Pai Nosso e esquecem o Pão Nosso.


Quantos não usam o cajado contra as ovelhas ao invés de contra os lobos. Não os reconheço e não testemunharei em favor deles quando aparecerem diante do meu Pai.Bem-aventuradas as comunidades eclesiais de base, os movimentos sociais por terra, por teto, por educação, por saúde e por segurança.


Felizes deles que, sem precisar falar de mim, assumem a mesma causa pela qual vivi, fui perseguido e executado na cruz. Mas ressurgi para continuar a insurreição contra um mundo que dá mais valor aos bens materiais que à vida, que privilegia a acumulação privada à participação solidária e que prefere dar os alimentos aos cães que aos famintos.


Bem-aventurados os que sonham com um mundo novo possível e necessário no qual todos possam caber, a natureza incluída. Felizes são aqueles que amam a Mãe Terra como sua própria mãe, respeitam seus ritmos, dão-lhe paz para que possa refazer seus nutrientes e continuar a produzir tudo o que precisamos para viver.


Bem-aventurados os que não desistem,mas resistem e insistem que o mundo pode ser diferente e será, mundo onde a poesia anda junto com o trabalho, a musica se junta às máquinas e todos se reconhecerão como irmãos e irmãs, habitando a única Casa Comum que temos, este belo e irradiante pequeno planeta Terra.Em verdade, em verdade vos digo: felizes sois vós porque sois todos filhos e filhas da alegria pois estais na palma da mão de Deus. Amém”.

STEVE JOBS: O MITO DA ERA VIRTUAL





por Maria Clara Lucchetti Bingemer,




Há homens que têm um instante de criatividade e são bons. Há outros que têm um “insight” genial e são melhores. Há outros ainda que durante muitos anos têm várias inspirações geniais e são muito bons. Mas há ainda outros que a todo o momento e mesmo na doença e na morte continuam estrategicamente lançando fagulhas que incendeiam as retinas e as imaginações da humanidade. Seriam estes os imprescindíveis?


A morte de Steve Jobs lançou no céu da adoração mundial um novo mito. O indubitavelmente genial inventor e fundador da Apple vinha realizando lenta e progressivamente sua saída de cena da empresa devido à saúde precária, após a descoberta de um câncer no pâncreas. Em 2009 anunciou seu primeiro afastamento. Seis meses depois voltou. Em 2011 ausentou-se pela segunda e definitiva vez. A notícia de sua morte, no dia 8 de outubro deste mesmo ano, provocou uma verdadeira comoção mundial.


Steve Jobs nasceu em São Francisco, no estado da Califórnia (EUA). Com apenas cinco anos mudou-se com seus pais adotivos para Palo Alto, cidade que posteriormente ficaria conhecida como um dos polos da tecnologia e comporia o chamado Vale do Silício. Em Palo Alto, Jobs conheceu seu amigo e futuro sócio Steve Wozniak. Juntos criaram, em 1975, o primeiro computador da companhia, o Apple I, produzido na garagem dos pais de Steve Jobs. A partir daí, a Apple mudou a maneira de as pessoas se relacionarem com a comunicação e a tecnologia.


A maçã mordida - com atraente alusão à tentação e ao desejo seduzido - marcava os produtos da Apple. E os mesmos mexiam irresistivelmente com as pulsões e desejos dos milhões de consumidores que diariamente usavam o Iphone, escutavam música no Ipod e acariciavam deleitados com seus dedos a tela do tablet Ipad.


A um gênio se admira, a inteligência e a criatividade se respeita e se reconhece. Mas o que surpreende é a reação das pessoas diante da morte de Steve Jobs. Velas são acesas diante das lojas da Apple em várias partes do mundo. Pessoas as mais variadas, em lágrimas, comparam-no a grandes figuras da história, como John F. Kennedy e John Lennon. Mensagens amorosas são escritas e dirigidas ao ilustre morto, juntamente com flores. Abate-se uma orfandade tremenda sobre esta sociedade de consumo pós-moderna, que sentiu seus impulsos estimulados e satisfeitos com as criações de Steve Jobs.


De Bill Gates – seu adversário, presidente da Microsoft - a Barack Obama – presidente dos Estados Unidos - , das mídias às redes sociais, todos só têm palavras laudatórias ao gênio Steve Jobs, chamado de audaz, ousado, visionário e outras coisas mais panegíricas ainda. Chamam-no inclusive do novo Thomas Alva Edison, inventor da eletricidade.


Diante deste fenômeno, me pergunto se a humanidade não terá perdido um pouco o prumo e a capacidade de análise e avaliação. Que Steve Jobs seja um gênio dentro do campo de trabalho que escolheu e ao qual dedicou a vida e no qual fez fortuna, nenhuma dúvida Que o legado que deixou tenha feito a humanidade crescer e tornar-se mais digna...já matizaria mais minha resposta.

Seu grande feito foi transformar algo não imprescindível nem necessário para a vida em objeto de desejo alucinante. As pessoas que poderiam viver sem aquilo passaram a perguntar-se como conseguiram fazê-lo até então. O produto do qual não imaginavam precisar passou a ser tão necessário para suas vidas como o ar ou a água. Esses milhões de pessoas vararam madrugadas em filas gigantescas de várias “black Fridays” mundo afora, ansiando freneticamente tocar com suas mãos uma das criações de Steve Jobs.


Definitivamente não estamos diante de um santo ou um herói. A vida de Jobs é preciosa como a de todo ser humano. Mas o que sua morte deixa como legado maior é a revelação do fato de que a humanidade se encontra absolutamente carente de heróis ou figuras ilustres em quem depositar seu potencial afetivo e admirativo. E por isso cria ídolos e fabrica ícones neles projetando seus desejos e frustrações. O mito da era virtual é apenas um homem extremamente inteligente e criativo. Nada mais.


Para ser guia e inspirador da humanidade, como parecem querer que seja, é preciso mais do que inventar charmosos e sedutores artefatos virtuais e colocá-los nas mãos carentes de milhões de consumidores. Como dizia Bertolt Brecht, no fragmento parafraseado no começo desta crônica, é preciso lutar a vida inteira. Só os que fazem isso são realmente imprescindíveis.





Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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A ONU E A ESPIRITUALIDADE




por Marcelo Barros




Nesta semana, a humanidade comemora o aniversário da ONU, criada em 1948, para cuidar do diálogo entre os povos e da paz no mundo. Neste aniversário de 63 anos, o presente que a humanidade quer oferecer à ONU é a reforma de seus estatutos e que as Nações Unidas aceitem como membros, não só os governos, mas também a sociedade civil internacional.


Nestes dias, se completam dez anos da invasão do Afeganistão, realizada pelo governo dos Estados Unidos. O pretexto era a tal guerra preventiva e de que ali se escondia o Al Qaeda. Muitas pessoas inocentes foram assassinadas e o país inteiro destruído. Alguns anos depois, o presidente Bush teve de reconhecer que mentiu ou se enganou. Entretanto, tudo continuou como estava. Até hoje o país é ocupado por tropas estrangeiras.


A ONU se pronunciou contra a invasão, mas nada fez para impedi-la. Também não denunciou a ilegalidade da invasão americana no Iraque, nem deixou claro que ao invadir o Paquistão, para assassinar Bin Laden, o presidente Obama se mostrou absolutamente igual ou mais ilegal do que o inimigo friamente massacrado. A recente recusa da ONU em reconhecer o Estado Palestino e assim assegurar a paz no Oriente Médio é mais um fato que revela a urgência de novas regras internacionais para o seu funcionamento e para que possa cumprir bem o seu objetivo de uma comunidade das nações.


Há quem pense que um assunto como este nada tem a ver com a fé e a espiritualidade. Entretanto, todas as grandes tradições espirituais mostram que Deus tem um projeto divino para o mundo e este projeto é a paz e a aliança (shalon) entre todos os seres humanos. Antigos escritos hindus dizem que o mundo inteiro deve ser uma só sangha, uma única fraternidade humana. Buda ensinava que o mundo deveria ser organizado a partir da compaixão, solidariedade com todos os seres vivos. O Corão propõe organizar o mundo a partir da justiça e da misericórdia. As tradições afro-brasileiras falam no Axé, energia vital de amor, como princípio organizador da sociedade. A Bíblia diz que Deus tem um projeto para o mundo: a organização da humanidade em uma só família humana. O Evangelho diz que Jesus morreu “para reunir na unidade todos os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo” (Jo 11, 52). Paulo escreveu que, na cruz, Jesus aboliu o muro de inimizade que separava os povos e fez de povos diferentes um só povo (Cf. Ef 2, 13 ss). Hoje, a Carta da Terra afirma que, junto com todos os seres do planeta, somos uma só comunidade da vida.

Nestes dias, os meios de comunicação mostram, em vários países do mundo, manifestações da sociedade civil e principalmente da juventude pedindo outra forma de organizar o mundo. Nos últimos dias, somente nos Estados Unidos, marchas e manifestações pacíficas reuniram mais de 50 mil pessoas. Elas se manifestaram em 53 cidades e fizeram uma caminhada até Washington para protestar contra o fato do governo norte-americano agir, não como representante do povo e sim como mero funcionário dos grupos financeiros internacionais.


As transformações sociais e políticas, para serem profundas, devem ter como base uma profunda renovação cultural. Sem isso, as mudanças permanecem superficiais. Uma espiritualidade ecumênica e humana, não necessariamente ligada às religiões e sim à sacralidade da vida, ao respeito à natureza e à dignidade de todo ser humano, sem dúvida, serão fermento de um modo de organizar o mundo e a vida de forma mais justa e amorosa. Então, a ONU merecerá parabéns por seu aniversário e por ser sinal e instrumento de uma humanidade renovada.

domingo, 9 de outubro de 2011

A ARTE DE DESAPRENDER



por Frei Betto




Apresentou-se à porta do convento um médico interessado em tornar-se frade. O prior encarregou o mestre de noviços de atendê-lo. ― Caro doutor – disse o mestre – o prior envia-lhe esta lista de perguntas. Pede que tenha a bondade de respondê-las de acordo com os seus doutos conhecimentos. O jovem médico, acomodado no parlatório, tratou de preencher o questionário.


Em menos de uma hora devolveu-o ao mestre. Este levou o papel ao prior e retornou quinze minutos depois: ― O prior reconhece que o senhor demonstra grande conhecimento e erudição. Suas respostas são brilhantes. Por isso pede que retorne ao convento dentro de um ano. O médico estampou uma expressão de desapontamento: ― Ora, se respondi corretamente todas as questões – objetou – por que retornar dentro de um ano? E se eu tivesse dado respostas equivocadas, o que teria sucedido? ― O senhor teria sido aceito imediatamente e, na próxima semana, já estaria entre os noviços. ― Então, por que devo retornar em um ano? ― É o prazo que o prior considera adequado para que o senhor possa desaprender conhecimentos inúteis. ― Desaprender? – surpreendeu-se o médico. ― Sim, desaprender.


Entrar na vida espiritual é como empreender uma viagem: quanto mais pesada a bagagem, mais lentamente se cobre o percurso. Na sua há demasiadas coisas substantivamente inúteis. E o doutor partiu sob promessa de retornar dentro de um ano, o que de fato sucedeu. Assim como há escolas e cursos para aprender, deveria também existir para ensinar a desaprender. Quantas importantes inutilidades valorizamos na vida! Quantos detalhes sugam nossas preciosas energias e consomem vorazmente o nosso tempo!


Quantas horas e dias perdemos com ocupações que em nada acrescentam às nossas vidas; pelo contrário, causam-nos enfado e nos sobrecarregam de preocupações. Precisamos desaprender a considerar os bens da natureza produtos de uso próprio, ainda que o nosso uso perdulário se traduza em falta para muitos. Desaprender a valorizar um modelo de progresso que necessariamente não traz felicidade coletiva e uma economia cuja especulação supera a produção.


Desaprender a olhar o mundo a partir do próprio umbigo, como se o diferente merecesse ser encarado com suspeita e preconceito. O desaprendizado é uma arte para quem se propõe a mudar de vida. Nessa viagem, quanto menos bagagem e mais leveza, sobretudo de espírito, melhor e mais rápido se alcança o destino. Vida afora, carregamos demasiadas cobranças, mágoas, invejas e até ódios, como se toda essa tralha fizesse algum mal a outras pessoas que não a nós mesmos.


O que nos encanta nas crianças com menos de cinco anos é a interrogação incessante, o interesse pela novidade, o espírito despojado. Era isso que sinalizou Jesus quando alertou a Nicodemos ser preciso nascer de novo, sem retornar ao ventre materno, e tornar-se criança para ingressar no Reino de Deus.


O médico candidato a noviço comprovou ser bem informado, mas ignorava a distinção entre cultura e sabedoria. Soube elencar as mais célebres telas da pintura universal, sem no entanto ter noção do que significam e por que o artista fez isto e não aquilo. Conhecia todas as doenças de sua especialidade, sem a devida clareza de como se relacionar com o doente. A humanidade não terá futuro promissor se não desaprender a promover guerras e a considerar a pobreza mero resultado da incapacidade individual.


Urge desaprender a valorizar o supérfluo como necessário e a ostentação como sinal de êxito. Desaprender a perder tempo com o que não tem a menor importância e se dedicar mais nos cuidados do corpo que do espírito.


A vida espiritual é um contínuo desaprender de apegos e ambições, vaidades e presunções. A felicidade só conhece uma morada: o coração humano. Eis aí milhões de viciados em drogas a gritar a plenos pulmões terem plena consciência de que a felicidade resulta de uma experiência interior, de um novo estado de consciência. Como não aprenderam a abraçar a via do absoluto, enveredaram pela do absurdo. E convém aprender: no amor mais se desaprende do que se aprende.


Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

CUIDAR DO LUTO



por Leonardo Boff








Cuidar do luto e das perdasPertencem, inexoravelmente, à condição humana, as perdas e o luto. Todos somos submetidos à férrea lei da entropia: tudo vai lentamente se desgastando; o corpo enfraquece, os anos deixam marcas, as doenças vão nos tirando irrefreavelmente nosso capital vital. Essa é a lei da vida que inclui a morte.


Mas há também rupturas que quebram esse fluir natural. São as perdas que significam eventos traumáticos como a traição do amigo, a perda do emprego, a perda da pessoa amada pelo divórcio ou pela morte repentina. Surge a tragédia, também parte da vida.Representa grande desafio pessoal trabalhar as perdas e alimentar a resiliência, vale dizer, o aprendizado com os choques existenciais e com as crises. Especialmente dolorosa é a vivência do luto, pois mostra todo o peso do Negativo.


O luto, possui uma exigência intrínseca: ele cobra ser sofrido, atravessado e, por fim, superado positivamente.Há muitos estudos especializados sobre o luto. Segundo o famoso casal alemão Kübler-Ross há vários passos de sua vivência e superação.O primeiro é a recusa: face ao fato paralisante, a pessoa, naturalmente, exclama:”não pode ser”; “ é mentira”. Irrompe o choro desconsolado que palavra nenhuma pode sustar.O segundo passo é a raiva que se expressa:“por que exatamente comigo? Não é justo o que ocorreu”.


É o momento em que a pessoa percebe os limites incontroláveis da vida e reluta em reconhecê-los. Não raro, ela se culpa pela perda, por não ter feito o que devia ou deixado de fazer.O terceiro passo se caracteriza pela depressão e pelo vazio existencial. Fechamo-nos em nosso próprio casulo e nos apiedamos de nós mesmos. Resistimos a nos refazer. Aqui todo abraço caloroso e toda palavra de consolação, mesmo soando convencional, ganha um sentido insuspeitado.


É o anseio da alma de ouvir que há sentido e que as estrelas-guias apenas se obscureceram e não desapareceram.O quarto é o autofortalecimento mediante uma espécie de negociação com a dor da perda: “não posso sucumbir nem afundar totalmente; preciso aguentar esta dilaceração, garantir meu trabalho e cuidar de minha família”. Um ponto de luz se anuncia no meio da noite escura.O quinto se apresenta como uma aceitação resignada e serena do fato incontornável. Acabamos por incorporar na trajetória de nossa existência essa ferida que deixa cicatrizes. Ninguém sai do luto como entrou.


A pessoa amadurece forçosamente e se dá conta de que toda perda não precisa ser total; ela traz sempre algum ganho existencial.O luto significa uma travessia dolorosa. Por isso precisa ser cuidado. Permito-me um exemplo autobiográfico que aclara melhor a necessidade de cuidar do luto. Em 1981 perdi uma irmã com a qual tinha especial afinidade. Era a última das irmãs de 11 irmãos. Como professora, por volta das 10 horas, diante dos alunos, deu um imenso brado e caiu morta. Misteriosamente, aos 33 anos, rompera-se a aorta.


Todos da família vindos de várias partes do pais, ficamos desorientados pelo choque fatal. Choramos copiosas lágrimas. Passamos dois dias vendo fotos e recordando, pesarosos, fatos engraçados da vida da irmãzinha querida. Eles puderam cuidar do luto e da perda. Eu tive que partir logo após para o Chile, onde tinha palestras para frades de todo o Cone Sul. Fui com o coração partido. Cada palestra era um exercício de auto-superação.


Do Chile emendei para a Itália onde tinha palestras de renovação da vida religiosa para toda uma congregação. A perda da irmã querida me atormentava como um absurdo insuportável. Comecei a desmaiar duas a três vezes ao dia sem uma razão física manifesta. Tive que ser levado ao médico. Contei-lhe o drama que estava passando. Ele logo intuiu e disse: “você não enterrou ainda sua irmã nem guardou o luto necessário; enquanto não a sepultar e cuidar de seu luto, você não melhorará; algo de você morreu com ela e precisa ser ressuscitado”.


Cancelei todos os demais programas. No silêncio e na oração cuidei do luto. Na volta, num restaurante, enquanto lembrávamos a irmã querida meu irmão Clodovis e eu escrevemos num guardanapo de papel o que colocamos no santinho de sua memória:“Foram trinta e três anos, como os anos da idade de Jesus/Anos de muito trabalho e sofrimento/Mas também de muito fruto/Ela carregava a dor dos outros/Em seu próprio coração, como resgate/Era límpida como a fonte da montanha/Amável e terna como a flor do campo/Teceu, ponto por ponto, e no silêncio/Um brocado precioso/Deixou dois pequenos, robustos e belos/E um marido, cheio de orgulho dela/Feliz você, Cláudia, pois o Senhor voltando/Te encontrou de pé, no trabalho/Lâmpada acesa/Foi então que caiste em seu regaço/Para o abraço infinito da Paz”.Entre seus papéis encontramos a frase:”Há sempre um sentido de Deus em todos os eventos humanos: importa descobri-lo”. Até hoje estamos procurando esse sentido que somente na fé o suspeitamos.

TESTEMUNHO NA FRONTEIRA






por Maria Clara Lucchetti Bingemer,



Nueva Laredo é uma cidade mexicana situada na fronteira do México com o estado do Texas, Estados Unidos. Ali chegam diariamente muitíssimos migrantes seduzidos pelo sonho de uma vida melhor. Esperançosos de encontrar trabalho, deixam seus países e sua cultura para tentar melhores dias no país vizinho, rico e próspero.

Deixam para trás a dura realidade da pobreza e da falta de oportunidades que sobre eles se fecha e condena suas famílias a uma ausência de futuro, de crescimento, de esperança. Trafegam em verdadeira via sacra, pendurados em trens, em ônibus, a pé, expostos a mutilações, doenças e morte. Ou ficam em mãos dos "coiotes" que lhes tiram o pouco dinheiro economizado e os atira no deserto ou no meio do caminho.

À medida que o fenômeno migratório vai crescendo e tornando-se mais complexo, novos elementos são agregados ao sofrimento dos migrantes que se aventuram na arriscada tentativa de cruzar a fronteira entre o sul e o norte, atrás do sonho da abundância. Convencidos de que a sociedade rica necessita de mão de obra e que seus cidadãos já não desejam executar trabalhos manuais, pesados , humildes, partem cheios de esperança.

A viagem, no entanto, muitas vezes desemboca em profunda frustração. O sonho se esfuma diante das dificuldades, da rejeição de uma sociedade que se recusa a absorver o representante de outra latitude e cultura, que o trata como escravo mitigado e o persegue por considerá-lo ilegal e sem direitos de viver em seu território.

Agregue-se a isto o tráfico de pessoas e as redes de prostituição, que aproveitam o clima de tensão e conflito que a questão migratória cria e aumentam a cada dia. A violência é simplesmente o fruto amargo e esperado de todo um conjunto de injustiças e iniquidades. E pode estar de tocaia em qualquer ponto da mobilidade migratória: seja na origem, nas violências autóctones que tornam a vida impossível, empurrando muitos para a migração; seja no meio do caminho sob a forma das balas da polícia da fronteira, dos transportadores de todo tipo ou dos narcotraficantes que cada vez são mais numerosos.

Mas em meio a este mar de sofrimento e negatividade, os migrantes encontram também acolhida e ajuda por parte de algumas pessoas ou grupos. São ONGs, congregações religiosas e movimentos leigos que se desdobram doando seu tempo e sua vida para que o sonho dos que migram não se transforme em pesadelo. Ajudam-nos a conseguir papéis, documentos, trabalho. Dão-lhes abrigo, alimento, até que encontrem um lugar para onde ir e uma situação um pouco mais estável. E também saem em sua defesa diante da opinião pública, denunciando a violência de que são vítimas.

Marisol Castro, jornalista católica de um periódico de Nueva Laredo, leiga participante do movimento scalabriniano, estava entre estes últimos. Tornou-se alvo e arquivo daqueles cuja violência denunciava corajosamente. No último dia 22 de setembro, foi sequestrada e executada. Seu corpo foi encontrado em uma avenida de Nueva Laredo, sua cidade natal.

Sobre seu corpo jovem, os assassinos deixaram um recado: isto acontece com os meios de comunicação que se põem contra eles. Os companheiros de Marisol, que partilham sua fé e sua luta, no entanto, conseguem, em meio à dor de sua ausência, fazer outra leitura. Na entrega testemunhal da vida da jovem jornalista ressoam mais fortes que nunca as palavras vibrantes e cheias de fogo do apóstolo Paulo de Tarso: “Sois uma carta de Cristo, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne que são os nossos corações” .

Carta luminosa de Cristo, que faz apelo aos que semeiam morte, luto e lágrimas pelas fronteiras da América. Marisol continua agora seu trabalho de jornalista, informando e tornando conhecida a verdade ainda que em outra dimensão. E a verdade, diante de sua morte como de sua vida, é a esperança de que fatos assim deixem de acontecer. E que a justiça e a paz possam aproximar-se um pouco mais das cruéis fronteiras que dividem e matam os seres humanos.


Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

DANÇAR A VIDA



por Marcelo Barros





Em regiões tropicais, não se percebe muito a entrada da primavera que chegou ao hemisfério sul na quinta-feira, 21 de setembro. No entanto, no Centro-oeste, mesmo se as chuvas atrasaram e as queimadas ainda continuaram a ferir o coração da nossa terra, a paisagem começa a mudar. Aqui e ali, as árvores florescem, os cajus começam a dar fruto e o campo verdejante celebram a renovação da vida. Grupos indígenas sobem montanhas para celebrar ritos de cura da terra.


A primavera é o sorriso da natureza que dança a vitória da vida. Por isso, as religiões antigas expressam sua adoração ao Espírito, não apenas com palavras, mas com dança. Para as tradições hindus, a dança é caminho para a sadhana, integração do ser humano no cosmos. Dançar é expressar o mistério divino, presente em nós, através da libertação do corpo e do espírito. Nas tradições afrodescendentes e indígenas, a dança é elemento de união com Deus. Na Bíblia, a Páscoa significa passos e começou como dança de primavera. Essa festa da natureza é sinal da ressurreição de Jesus, de todos nós e do universo. Vários salmos bíblicos foram compostos para ser dançados. Profetizas como Miriam, irmã de Moisés e Débora, juíza de Israel, expressaram a luta de libertação do povo através de cânticos e danças.

Mesmo se não sabe, toda pessoa carrega no mais íntimo de si uma dança que é só sua. Já nascemos com essa dança no coração, mesmo se, muitas vezes, a sociedade dominante e algumas tradições religiosas a reprimem. Por isso, muita gente não associa dança com espiritualidade. Entretanto, quando vencemos os preconceitos e permitimos que a energia da dança que está em nosso ser mais íntimo se expresse, estamos trabalhando para nos unificar interiormente. Ao mesmo tempo, como nas tradições mais antigas, ninguém dança sozinho, através da dança comum, colaboramos para que as relações humanas sejam mais afetuosas e o mundo se torne mais lúdico e feliz.


Atualmente algumas comunidades cristãs e de outras tradições espirituais redescobrem a dança como expressão de espiritualidade. Entretanto, é preciso que essa dança não seja apenas rito externo. Deve despertar em nós uma renovação do nosso ser e possibilitar que nossas comunidades eclesiais vivam, como desejou em seu tempo o papa João XXIII, uma primavera nova de diálogo e abertura a toda humanidade. Essa nova primavera da Igreja e do mundo pode contribuir para que a sociedade atual reencontre caminhos de esperança para a crise civilizacional em que se debate. O próprio diálogo aberto e sincero será como a expressão de uma dança interior e libertadora. Que essa dança de uma vida nova se espalhe pelo mundo, ajude as pessoas a construir uma profunda renovação ética da sociedade e seja sinal e instrumento de união com todo o universo.