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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

SEJA FEITA A TUA VONTADE, MULHER!

 


Por Lusmarina Campos Garcia


O cristianismo tem se construído como obstáculo para os direitos das mulheres; enquanto nós, mulheres, não rejeitamos a maternidade, mas entendemos que a nossa salvação não depende dela.

 

Este artigo está sendo escrito no contexto do dia vinte e oito de setembro, Dia Mundial pela Descriminalização do Aborto. Iniciodelineando conceitos gerais sobre os direitos sexuais e reprodutivos, inserindo-os no contexto dos direitos humanos, para passar a tratar da questão religiosa que, por meio de uma certa teologia cristã, se constitui num obstáculo para a implementação dos direitos reprodutivos das mulheres.

1. O QUE SÃO OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS E DE ONDE VÊM?

Os direitos sexuais são um conjunto de normas e leis que garantem às mulheres o exercício da sua sexualidade com liberdade, autonomia, integridade, educação, segurança e privacidade. Estas normas e leis criam políticas de Estado que irão tornar efetivos tais direitos.

Os direitos reprodutivos são um conjunto de normas e leis que garantem às mulheres as condições adequadas para realizar escolhas acerca da possibilidade ou não de reprodução. Este conjunto normativo também se transforma em políticas de Estado que visam facultar o acesso das mulheres a materiais, locais e instrumentos concretos na área de educação, saúde, assistência social e legal, com fins de dar continuidade a uma gravidez ou interrompê-la.

Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos se inserem no contexto dos direitos humanos das mulheres que, no Brasil, passaram a ser implementados na medida em que o país ratificou convenções, protocolos e planos de ação de caráter internacional. Incluem-se nestas categorias: a Carta das Nações Unidas (1945), a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Declaração de Viena (1993), a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher (1993), a Convenção de Belém do Pará (1995), a Declaração de Beijing (1995) e o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw). Este último passou a vigorar no país em 2002.

O Brasil se comprometeu também com o pacto planetário (2000) em torno das Metas do Milênio, a serem cumpridas até 2015. A terceira meta versava sobre promover a igualdade de gênero e empoderar a mulher, e a quinta meta dizia respeito a melhorar a saúde materna.

O processo de construção e ampliação da cidadania das mulheres que se efetivou através das grandes conferências, convenções e dos documentos internacionais, tem a participação ativa das mulheres e dos movimentos feministas. No entanto, nenhuma dessas conferências e os documentos que delas resultaram aconteceu sem resistência ativa e organizada de governos e instituições conservadoras, tais como o Vaticano.

2. O QUE DIZEM AS IGREJAS?

As igrejas cristãs têm oferecido, recorrentemente, resistência ativa e organizada para impedir o alcance e a implementação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Por quê?

Em primeiro lugar porque as igrejas cristãs têm um problema não resolvido com a sexualidade humana. Transformam a sexualidade humana no lugar do pecado por excelência.

Então, tudo o que tem a ver com relações sexuais, com gozo, com prazer, precisa estar contido dentro de regras rígidas, como se se constituíssem uma agressão contra Deus; como se a genitália e toda a expressão da sexualidade das pessoas não fossem parte da boa criação de Deus.

Em segundo lugar, localizam a responsabilidade pelo pecado nas mulheres e constroem as suas teologias a partir de um referencial patriarcal, e na maior parte das vezes, misógino.

Quando falamos de patriarcalismo, do que estamos falando? Estamos falando de um modo de entender o mundo, as pessoas, Deus, e as relações entre as pessoas e a relação das pessoas com Deus, a partir do masculino. Não um masculino amoroso, cuidadoso, solidário, igualitário. Um masculino que é patriarca, pater famílias, pai-chefe, pai-dono, dominante, que exerce o mando sobre a esposa, os filhos, as filhas, a casa, a sociedade, o mundo. Um masculino a partir do qual todas as coisas e todas as relações no entorno se organizam.

Neste tipo de compreensão, o feminino, a mulher, não está no mesmo nível que o masculino, que o homem; está num nível inferior. Sua importância, seu valor é secundário; portanto ela lhe é subalterna e lhe deve obediência. Esta é a estrutura do pensamento patriarcal. Ele cria diferenças entre as pessoas baseadas no sexo para inferiorizar o feminino e afirmar o masculino como superior. A teologia cristã foi construída para dar apoio a esta estrutura de pensamento.  Mas este modo de pensar não vem de Jesus; vem do apóstolo Paulo e dos pais da Igreja.

3. O VANGUARDISMO DE JESUS

O movimento de Jesus foi inclusivo com relação às mulheres, e mais do que isto, foi libertário. As mulheres formavam parte integral do seu movimento. Ele se assumiu como filho de Deus pela primeira vez a uma mulher estrangeira, uma samaritana. Ele conversou com mulheres em público, o que era proibido, as defendeu, se deixou interpelar por elas, aceitou os argumentos da mulher siro-fenícia e mudou de opinião a partir do debate com ela, e defendeu o discipulado das mulheres.

Há pelo menos duas situações nas quais Jesus propôs que as mulheres adotassem a posição de discipulado: na casa de Maria e Marta, quando interveio para que Maria participasse do aprendizado junto com os demais discípulos (Lucas 10:38-42), e na conversa com uma mulher que lhe disse: “bem-aventurado o ventre que te concebeu e os seios que te amamentaram” e ele respondeu: “antes, bem-aventurados são os ouvem a palavra de Deus e a praticam” (Lucas 11:27-28). Ouvir a palavra de Deus e praticá-la era ação de discípulo, de discípula. Retornarei a este texto em breve.

Além das ações do próprio Jesus com relação às mulheres, os evangelhos fizeram um registro importantíssimo depois da sua morte que demostra claramente a importância das mulheres no movimento de Jesus: de acordo com a narrativa de todos os evangelhos, as mulheres foram as primeiras testemunhas da ressurreição. Este registro foi feito não para mostrar que as mulheres eram enxeridas ou mais rápidas que os discípulos, mas foi feito devido à importância delas no movimento; foi feito porque elas eram discípulas.

A ida do movimento de Jesus para Roma e a transformação do cristianismo em religião do Império excluiu as mulheres, reprimiu a sua liderança, suprimiu os seus escritos e optou por uma compreensão que impunha a elas a subalternidade.

4. A OPÇÃO PELA SUBALTERNIZAÇÃO DAS MULHERES

Os pais da Igreja eram seguidores dos filósofos gregos e o apóstolo Paulo também conhecia o pensamento filosófico grego. Paulo afirma coisas diferentes em diferentes momentos com respeito às mulheres. Um texto célebre seu, o de I Timóteo 2:11-15, apregoa que a mulher deve ficar em silêncio, ser submissa ao homem, e ser salva pela maternidade. Este é um dos instrumentos mais poderosos de opressão das mulheres no meio cristão.

Por outro lado, o próprio Paulo afirma que “todos são um em Cristo”, portanto, “já não há mais judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher” (Gálatas 3:28).  São ensinamentos contraditórios, não são complementares.

Esta é a tradição bíblica: há textos produzidos a partir de uma ótica patriarcal e opressora, e há textos escritos a partir de uma ótica libertária, que considera homens e mulheres, em toda a sua complexidade, como partes iguais na boa criação de Deus. Isto fica muito evidente nas duas histórias de criação do livro de Gênesis. Na primeira história (Gênesis 1:1-2:4ª) Deus cria homem e mulher no mesmo momento, à sua imagem e semelhança; na segunda história (Gênesis 2:4b-25) Deus cria o homem primeiro, o faz dormir, tira dele uma costela e daí faz a mulher. São duas escolas de pensamento. Paulo adota uma num momento e outra no outro momento.

Os pais da Igreja eram também seguidores do pensamento filosófico grego.

Para o filósofo grego Aristóteles, que viveu entre 384-322 a.C, “a natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem inferior”. Para Platão a mulher representava a carnalidade e a sexualidade, que é um estado inferior e negativo; a mulher era, portanto, inferior ao homem.

Tertuliano, um dos pais da Igreja que viveu entre 160-220 d.C, identificava a mulher como a porta de entrada do diabo no mundo, aquela que tocou a árvore de Satanás e a primeira a violar a lei divina. A mulher deveria andar sempre vestida de luto, coberta em farrapos e humilhada em penitência, a fim de reparar a sua culpa pela perdição do ser humano.  Devido ao pecado da primeira mulher, todas as demais deveriam padecer.

Orígenes, que atuou na primeira metade do século III, dizia que a mulher que fosse boa cristã diante de Deus era considerada homem, tornava-se homem honorário. Ela representava a fraqueza, a debilidade, a carne e as suas tentações.

Agostinho entendia que por sua natureza, a mulher foi identificada à reprodução, à sexualidade, à carnalidade e à pecaminosidade. Em seu Comentário literal sobre o Gênesis, escrito entre 401-416, Agostinho chegou à conclusão de que a sexualidade, o casamento e a criação da família são resultado da Queda, um declínio da situação ideal e angelical para a natureza física e, consequentemente, para a morte.  O casamento era importante no pensamento agostiniano para a concórdia na Cidade de Deus, mas desde que não abrigasse impulsos e apetites sexuais. A sexualidade passou a ser entendida em função da procriação. Sexo com gozo seria obscenidade.

Na questão 92 da Summa Theológica que trata da produção da mulher, Tomás de Aquino lida com a questão filosófica de que a mulher seria um ser falho. Diz que “Na sua natureza particular, a fêmea é um ser deficiente e falho. Porque a virtude ativa, que está no sémen do macho, tende a produzir um ser perfeito semelhante a si, do sexo masculino. Mas o facto de ser a fêmea a gerada provém da debilidade da virtude ativa, ou de alguma indisposição da matéria; ou ainda, de alguma transmutação extrínseca, por exemplo, dos ventos austrais, que são úmidos, como diz Aristóteles”.

Estes teólogos da Igreja optaram por uma visão excludente e opressora das mulheres; construíram compreensões que revestiram a sexualidade de pecado e o localizaram, principalmente, na mulher. Associaram o sexo à reprodução e o lugar social da mulher, à maternidade.

A Reforma Protestante trouxe mudanças fundamentais para as sociedades, no entanto, embora as mulheres tenham tido papel importante no movimento da reforma, os reformadores conservaram uma visão antiquada com respeito a elas. Para Martinho Lutero, as mulheres haviam sido criadas para o casamento e a geração de filhos. John Knox não admitia nenhum tipo de governo das mulheres, uma vez que isto contrariaria “a natureza da Escritura e usurparia a autoridade masculina”. Também Calvino manteve a compreensão de subserviência da mulher com relação ao homem.

Mulheres de todas as tradições cristãs têm se levantado contra esta história de opressão e têm produzido teologias, hermenêuticas, teorias e práticas libertárias. Este é um trabalho em andamento que encontra espaço e acolhida em determinadas igrejas e instituições, e é rejeitado em outras.

Mas como se vê por este breve apanhado, há uma longa história de construção de noções, teologias, práticas pastorais e eclesiais, e consequentemente sociais, de subalternização das mulheres. É neste contexto que o debate sobre a descriminalização do aborto se coloca.

A dificuldade com relação aos direitos reprodutivos das mulheres não vem apenas da indagação a respeito do início da vida, vem da dúvida de se as mulheres podem ou não ser consideradas sujeitos éticos, se têm ou não o direito de tomar decisões por si próprias.

5. O ARGUMENTO DO INÍCIO DA VIDA E AS MULHERES COMO SUJEITOS ÉTICOS

Há pessoas cristãs que se manifestam contrárias à descriminalização do aborto por considerarem que o embrião e o feto são seres vivos e baseiam as suas compreensões sobre textos bíblicos.

Não há determinação bíblica acerca de quando a vida começa. O único texto que faz referência ao que hoje chamamos de embrião é o Salmo 139:16 que diz: “Os teus olhos viram o meu corpo ainda informe; e no teu livro todas estas coisas foram escritas; as quais em continuação foram formadas, quando nem ainda uma delas havia”.

A palavra hebraica de onde se traduz “meu corpo ainda informe” é “Gelem”, e se refere a uma substância incompleta e imperfeita. Há dez textos nos livros de Salmos, Jó e Isaías que fazem alusão ao conhecimento de Deus sobre o ser humano desde o ventre, mas nenhum se refere ao momento específico da hominização. No entanto, não se pode dizer onde se inicia a vida de uma pessoa. De qualquer modo, o tema central dos textos evocados é a onisciência de Deus, não o momento no qual a vida é iniciada.

Os textos que fazem alusão ao “conhecimento de Deus” desde o ventre, tratam da sua capacidade de saber todas as coisas. Deus sabe da vida e da morte, sabe tudo sobre o mundo que criou, sabe dos pássaros, dos peixes, das águas, sabe da semente e da sua capacidade de germinar, crescer e tornar-se árvore. Sabe também da possibilidade da semente morrer.

Deus sabe quantos cabelos há em nossa cabeça, de acordo com a linguagem de Mateus 10:30. E nem um pássaro cai do céu sem o seu consentimento, diz Mateus 10:29. Na expressão poética de Jeremias 1:5 Deus conheceu o profeta antes mesmo dele ter sido gerado. Então, os textos tratam da onisciência de Deus, da sua capacidade de conhecer todos os processos de viver e de morrer. Não é um privilégio humano ser conhecido de Deus. Deus conhece a sua criação inteira: enquanto é, antes de ser e quando já não for. Esta é a lógica dos textos.

Eu me pergunto: por que as pessoas que defendem tão aguerridamente “a vida” de um embrião ou de um feto, não defendem com o mesmo empenho “a vida” das árvores, dos pássaros, dos animais que estão sendo consumidos pelo fogo das queimadas no Pantanal, na Amazônia, na Mata Atlântica?

Por que não defendem a Amazônia, que é o maior sistema de respiração do planeta e sem o qual todos nós pereceremos? Por que não se alvoroçam e se organizam para salvaguardar a “vida” da criação inteira? Será que há vidas mais importantes que outras? É a “vida” humana mais valiosa que a “vida” das outras espécies?

Esta maneira de ver o mundo a partir do ser humano, de pensar que as pessoas, principalmente as pessoas do sexo masculino, são a parte mais importante da criação, tem consequências nefastas para a vida do planeta e no planeta. É precisamente a assimetria valorativa entre as espécies que possibilita aos humanos adotarem uma atitude de domínio, exploração e destruição da natureza. É esta mesma assimetria que cria diferenciação entre as vidas das pessoas ao ponto de se acreditar que há vidas que importam mais e há outras que importam menos.

Nós não somos o centro nem a parte mais importante da vida, os homens não são superiores às mulheres, a vida de pessoas brancas não é mais valiosa que a vida de pessoas negras, e embriões e fetos não são mais importantes que pessoas nascidas, com história, com identidade, com lugar social.

O debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil precisa considerar a vida das mulheres. A Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 revelou que cerca de quinhentas mil mulheres interrompem a gravidez anualmente. São mulheres simples, religiosas, a maior parte delas cristãs. Mulheres de classe média e alta têm acesso a aborto seguro. Mulheres pobres e negras precisam do sistema público de saúde, e lá, acabam muitas vezes humilhadas e presas. Por isso, recorrem a meios inseguros e terminam morrendo. A descriminalização do aborto no Brasil, para além de ser uma questão de saúde pública, é uma questão de justiça social.

Nós, mulheres, somos sujeitos éticos e podemos tomar decisões próprias com respeito às nossas vidas, aos nossos corpos, e ao tempo de engravidar ou não.

Não rejeitamos a maternidade, mas entendemos que a nossa salvação não depende dela, nem o nosso valor humano e social. Nós não aceitamos o marianismo construído por homens como o modelo para nós.

O Marianismo, que é o culto e a idealização de Maria, nos moldes da teologia patriarcal, assume características de submissão, silêncio, introspecção. Numa tentativa de incluir as mulheres, a teologia patriarcal construiu a figura de Maria como uma mulher quieta, submissa, meditativa, que sempre diz sim. Este modelo de mulher mãe e virgem adotado pela igreja como o arquétipo fundante para toda mulher, não é o modelo que nós adotamos para nós mesmas.

A nossa Maria é uma mulher revolucionária, que não se submete aos padrões comportamentais esperados das mulheres do seu tempo. Ela produz uma narrativa acerca da sua gravidez, assume uma função profética ao cantar a derrubada dos poderosos e a exaltação dos pobres. É mulher inteligente, sagaz, que cria os seus filhos a partir de valores libertários. Ensinou a Jesus que não é a maternidade que salva as mulheres ou determina o seu valor humano e social.

Neste ponto, retomo aquela conversa de Jesus com a mulher em Lucas 11:27-28. A mulher tem um comportamento revolucionário, fora do padrão da época, porque mulheres não podiam se dirigir a homens em público e ela o faz. Mas o que ela diz expressa uma compreensão tradicional da sua cultura. Ela diz a Jesus:  “bem-aventurado o ventre que te concebeu e os seios que te amamentaram”. Ele responde: “antes, bem-aventurados são os ouvem a palavra de Deus e a praticam”.

Como dito antes, ouvir a palavra de Deus e praticá-la era ação de discípulo, de discípula. Contra o argumento da maternidade, Jesus responde com o discipulado. E assim, instaura para o cristianismo o papel que ele destinou às mulheres: discípulas, iguais, autônomas, sujeitos das suas vidas e partícipes da vida das sociedades, do planeta, do mundo, como filhas amadas de Deus.

E é nesta condição de mulheres amadas que nós, neste dia vinte e oito de setembro de 2020, afirmamos que o patriarcado não continuará impedindo a nossa liberdade, a nossa autonomia, a nossa condição de sujeitos éticos, capazes de decidir sobre o tempo de engravidar ou não e de interromper uma gravidez.

 

*Lusmarina Campos Garcia é teóloga eco-feminista, pastora luterana e pesquisadora de direito do Programa de Pós-graduação de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

PARA MAIORES DE 60 ANOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

 por Marcelo Barros

 


No Brasil, o presidente e os que o apoiam afirmam que a pandemia não é grave porque só mata velhinhos. Apesar disso, infelizmente, entre as 135 mil vítimas dos vírus do descuido e do desamor, há enorme proporção de jovens e de pessoas abaixo de 60 anos. A política do governo em relação a índios, negros e populações de periferias lembra a eugenia praticada pelos nazistas na Alemanha da década de 1940.

No entanto, a população brasileira continua a envelhecer. Por isso, é importante recordar que, nesta quinta-feira, 1º de outubro, a ONU celebra o Dia internacional das pessoas idosas. O objetivo é ajudar os mais velhos/as a se integrarem na sociedade e garantir que a sociedade possa assegurar os direitos das pessoas com idade igual ou superior a 60 anos.

No Brasil, desde 2003, a lei nº 10.741, chamada o Estatuto do Idoso, dispõe os direitos assegurados às pessoas da chamada terceira idade. Nesse mesmo ano, a CNBB começou a Pastoral das Pessoas Idosas, com o objetivo de assegurar a dignidade e a valorização das pessoas idosas no seu ambiente social. 

Apesar do envelhecimento da população, a sociedade é pensada para a juventude. Como, em geral, os mais velhos não produzem, perdem sua importância social. Parece que só a juventude importa. Envelhecer se torna mais doloroso e difícil.

No Brasil, se calculam em mais de 25 milhões de pessoas que passam dos 65 anos. Isso exige aumento de assistência, médicos especializados, mas supõe principalmente uma sociedade menos desigual e mais humanizada.  Em muitas cidades, existem associações da terceira idade que promovem encontros, lazer, danças e passeios. As universidades mantêm programas de extensão universitária e atividades como cursos de computação, ginástica, natação, música, dança e outras artes.

Essas organizações propõem às pessoas idosas e a toda a sociedade que as coisas possam ser realizadas com calma no lugar da agitação. Sugerem a disponibilidade no lugar do estresse. Valorizam mais a qualidade e não só a quantidade. Trata-se, finalmente, de viver a graça do dia de hoje mais do que o afã da permanente projeção para o amanhã.

Para todo ser humano, em qualquer cultura que seja, envelhecer é sempre um processo difícil e exigente. Não é fácil manter o espírito jovial quando se vê o corpo decair progressivamente. No entanto, podemos fazer escolhas que nos permitam envelhecer de forma mais humanizada.

Até hoje, ninguém sabe exatamente a causa biológica do envelhecimento. Por isso, não se pode, até agora, deter ou evitar esse fenômeno. Clineu de Melo, médico especialista em Geriatria da USP, afirmou: “O envelhecimento é a perda gradativa das reservas que todos os organismos têm para usar em momentos de estresse[1].

Todos os organismos foram pensados pela natureza para nascer, viver, reproduzir-se e depois morrer. Assim, durante milênios, a média da vida humana era de 30 anos. Cientistas descobriram que, a partir dos 30 anos, entramos em uma etapa da vida para a qual a seleção natural não nos preparou. Leonard Stayflick, professor na Universidade de Califórnia, afirma: “A velhice é um produto da civilização. Só ocorre propriamente nos seres humanos, nos animais domésticos e nos mantidos em zoológicos e em laboratórios”.

Comumente ligamos o envelhecimento à idade. De fato, há uma relação, mas não é direta e linear. Há pessoas de 90 anos que parecem ter 70 e há pessoas de 60 com jeito de 90. Não se pode generalizar, mas uma pesquisa mostra que a longevidade humana é maior em comunidades nas quais não existe aposentadoria. É mais frequente encontrar pessoas de mais de cem anos nos mosteiros budistas, em conventos cristãos, em comunidades afrodescendentes  e indígenas do que em sociedades nas quais as pessoas mais velhas são postas em asilos, esperando a morte.

O processo do envelhecimento depende da saúde, do clima e mesmo da raça a qual pertencemos. No entanto, o temperamento e o estilo de vida da pessoa em questão também influi muito. Do mesmo modo, também a espiritualidade, como energia do espírito em ação na pessoa, pode ser elemento fundamental de vitalidade.

A primeira coisa que as tradições espirituais propõem é manter sempre no coração e no concreto do dia a dia um projeto de vida e a disposição de fazer tudo em função disso, na relação com o mundo e com a comunidade a qual pertencemos.

Em meio a um momento de forte perseguição política e de marginalização na sua própria Igreja, Dom Helder Camara escrevia um livro de meditações com o título: Mil razões para viver.

Conforme a escritura, toda história do povo bíblico começou pelo chamado de Deus a Abraão, velho e casado com uma mulher estéril. Mesmo quando nos sentimos frágeis e como que incapazes de mudar a sociedade, Deus torna a nossa esterilidade fecunda e, então, um novo mundo é possível.

 



 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

JÚLIO LANCELOTTI E A IGREJA SAMARITANA

 



                            Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Já lá se vão mais de seis meses desde que a pandemia foi reconhecida como flagelo universal que ameaçava a humanidade e o planeta.  Todos desde então foram instruídos a ficar em casa, sobretudo os idosos, por serem grupo de risco.  No entanto, em São Paulo, pelas ruas e praças onde os moradores de rua vivem e sofrem em meio à intempérie,  um senhor de 71 anos circula sem parar.  Todos os dias, a cada momento, dia útil, santo ou feriado. 

            Trata-se do padre Júlio Lancelotti, da arquidiocese de São Paulo. Entrou já adulto no seminário. Após os estudos, ordenou-se e recebeu como missão do então cardeal Dom Paulo Evaristo Arns ser vigário episcopal do povo de rua da arquidiocese.  Desde então, assimilou plenamente em sua vida todo o significado da palavra vigário. Oriunda do latim vicariu, seu primeiro e principal significado é: aquele que faz as vezes de outro. Vigário episcopal, padre Júlio passou a ser e representar a Igreja de São Paulo, na pessoa de seu bispo, junto àqueles e àquelas que vivem nas ruas.

            Ele não os chama moradores de rua, mas sim “irmãos” de rua.  Não diz tampouco que trabalha com eles, pois não são objetos.  Diz que convive com eles, como os irmãos convivem uns com os outros.  Diante das infinitas necessidades que apresentam os que fazem da rua sua casa, o sacerdote atende desde a fome, o frio, a nudez, até a carência afetiva, o medo, o desespero, a solidão. Olha nos olhos de todos e ali, segundo ele, vê Jesus que disse que tudo que se fizesse ao menor de seus irmãos, a ele mesmo se faria. 

            Sem nenhum medo do contágio que o vírus pode trazer, padre Júlio toca a cada um, abraça, acaricia, examina suas feridas e os abençoa, impondo as mãos sobre suas cabeças. Cuida de todos, conseguindo bicas de água para que possam higienizar as mãos, dando-lhes máscaras e encaminhando-os aos serviços de saúde quando apresentam febre ou sintomas de doença. 

            Mas o sacerdote, ao mesmo tempo em que é só ternura e cuidado para com o povo da rua, sabe falar forte e assumir sua vocação de profeta quando se trata de denunciar injustiças e expor as feridas da desigualdade obscena de uma sociedade que descarta pessoas.  De uma lucidez impressionante, padre Júlio sabe ler a realidade com olhos críticos, enxergando e denunciando a raiz das injustiças e incriminando os responsáveis pelas mesmas. 

            Sempre foi criticado e discriminado por aqueles a quem seu discurso, mas sobretudo sua prática incomodava.  Recentemente passou a receber ameaças, insultos e agressões mais pesadas.  Isso fez com que o cardeal Dom Odilo Scherer, pastor de São Paulo, se solidarizasse publicamente com ele relembrando o Evangelho pelo qual ambos empenham a vida. “Eu estou com ele...quem cuida dos pobres, vai sofrer junto com os pobres também. Sempre foi assim”.

         O prefeito Bruno Covas também é seu admirador e agradece que o religioso constantemente denuncie as injustiças na cidade, para que sua administração possa recordar que deve prioritariamente aos mais vulneráveis.  Foi oferecida escolta policial ao padre, que delicadamente a recusou, em coerência com a solidariedade aos irmãos de rua. “Então eu fico com a escolta e os moradores de rua ficam com o cassetete, com a tortura? 

         Uma rede de auxílio foi montada ao redor de Júlio Lancelotti. Voluntários o auxiliam em seu trabalho, seja transportando a ele ou aos irmãos de rua pelo trânsito engarrafado da cidade, seja providenciando alimentos, cobertores, roupas e calçados para os que se enfileiram às centenas às portas de sua paróquia, pedindo e esperando. Diante das ameaças por ele recebidas, listas foram passadas e receberam milhares de assinaturas. 

         Padre Júlio não está sozinho.  Tem com ele o povo a quem serve, a Igreja à qual pertence, todos aqueles que hoje lutam por um mundo mais justo e assumem com ele os conflitos a isso inerentes. Sua fidelidade inquebrantável é a Jesus Cristo e ao povo da rua. E para ser fiel a esse compromisso maior, sua energia chega a ser impressionante.  Parece uma fonte que nunca seca e faz com que a cada dia, de manhã à noite se repita a cansativa rotina de estar perto dos últimos e dos vencidos, levando seu serviço e seu cuidado. Poucos jovens suportariam o ritmo que o sacerdote já idoso impõe a sua vida. 

         A caridade de Cristo o constrange, como disse Paulo de Tarso de si mesmo e dos cristãos de Corinto. Nesses tempos de pandemia e em todos os tempos onde a justiça for pisoteada e os pobres estiverem sofrendo será assim.  Pois, como diz o Papa Francisco, a Igreja deve ser samaritana. Tal como o samaritano da parábola do evangelho de Lucas 10, 25-37, há que cuidar do ferido à beira do caminho.  É preciso curar as feridas, abraçar os sofredores, aquecer os corações, estar próximo... É necessário começar de baixo. Júlio Lancelotti, em nosso país e em nossos dias, é certamente uma testemunha luminosa dessa Igreja que Francisco deseja ardentemente que se faça realidade. 

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.

  

Copyright 2020 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

OU MUDAMOS OU MORREMOS

 

*ARTIGO PUBLICADO EM JANEIRO DE 2004

Leonardo Boff



Hoje vivemos uma crise dos fundamentos de nossa convivência pessoal, nacional e mundial. Se olharmos a Terra como um todo, percebemos que quase nada funciona a contento. A Terra está doente e muito doente. E como somos, enquanto humanos também Terra (homem vem de humus=terra fértil), nos sentimos todos, de certa forma, doentes. A percepção que temos é de que não podemos continuar nesse caminho, pois nos levará a um abismo. Fomos tão insensatos nas últimas gerações que construimos o princípio de auto-destruição. Não é fantasia holywoodiana. Temos condições de destruir várias vezes a biosfera e impossibilitar o projeto planetário humano. Desta vez não haverá uma arca de Noé que salve a alguns e deixa perecer os demais. O destino da Terra e da humanidade coincidem: ou nos salvamos juntos ou sucumbimos juntos.

Agora viramos todos filósofos, pois, nos perguntamos entre estarrecidos e perplexos: como chegamos a isso?

Como vamos sair desse impasse global? Que colaboração posso dar como pessoa individual?

Em primeiro lugar, há de se entender o eixo estruturador de nossas sociedades hoje mundializadas, principal responsável por esse curso perigoso. É o tipo de economia que inventamos. A economia é fundamental, pois, ela é responsável pela produção e reprodução de nossa vida. O tipo de economia vigente se monta sobre a troca competitiva. Tudo na sociedade e na economia se concentra na troca. A troca aqui é qualificada, é competitiva. Só o mais forte triunfa. Os outros ou se agregam como sócios subalternos ou desaparecem. O resultado desta lógica da competição de todos com todos é duplo: de um lado uma acumulação fantástica de benefícios em poucos grupos e de outro, uma exclusão fantástica da maioria das pessoas, dos grupos e das nações.

Atualmente, o grande crime da humanidade é o da exclusão social. Por todas as partes reina fome crônica, aumento das doenças antes erradicadas, depredação dos recursos limitados da natureza e um ambiente geral de violência, de opressão e de guerra.

Mas reconheçamos: por séculos essa troca competitiva abrigava a todos, bem ou mal, sob seu teto. Sua lógica agilizou todas as forças produtivas e criou mil facilidades para a existência humana. Mas hoje, as virtualidades deste tipo de economia estão se esgotando. A grande maioria dos países e das pessoas não cabem mais sob seu teto. São excluidos ou sócios menores e subalternos, como é o caso do Brasil. Agora esse tipo de economia da troca competitiva se mostra altamente destrutiva, onde quer que ela penetre e se imponha. Ela nos pode levar ao destino dos dinossauros.

Ou mudamos ou morremos, essa é a alternativa. Onde buscar o princípio articulador de uma outra sociabilidade, de um novo sonho para frente? Em momentos de crise total precisamos consultar a fonte originária de tudo, a natureza. Que ela nos ensina? Ela nos ensina, foi o que a ciência já há um século identificou, que a lei básica do universo, não é a competição que divide e exclui, mas a cooperação que soma e inclui. Todas as energias, todos os elementos, todos os seres vivos, desde as bactérias e virus até os seres mais complexos, somos inter-retro-relacionados e, por isso, interdependentes. Uma teia de conexões nos envolve por todos os lados, fazendo-nos seres cooperativos e solidários. Quer queiramos ou não, pois essa é a lei do universo. Por causa desta teia chegamos até aqui e poderemos ter futuro.

Aqui se encontra a saida para umo novo sonho civilizatório e para um futuro para as nossas sociedades: fazermos desta lei da natureza, conscientemente, um projeto pessoal e coletivo, sermos seres cooperativos. Ao invés de troca competitiva onde só um ganha devemos fortalecer a troca complementar e cooperativa, onde todos ganham. Importa assumir, com absoluta seriedade, o princípio do prêmio de economia John Nesh, cuja mente brilhante foi celebrada por um não menos brilhante filme: o princípio ganha-ganha, onde todos saem beneficiados sem haver perdedores.

Para conviver humanamente inventamos a economia, a política, a cultura, a ética e a religião. Mas nos últimos séculos o fizemos sob a inspiração da competição que gera o individualismo. Esse tempo acabou. Agora temos que inaugurar a inspiração da cooperação que gera a comunidade e a participação de todos em tudo o que interessa a todos.

Tais teses e pensamentos se encontram detalhados nesse brilhante livro de Maurício Abdalla, O princípio da cooperação. Em busca de uma nova racionalidade.

Se não fizermos essa conversão, preparemo-nos para o pior. Urge começar com as revoluções moleculares. Começemos por nós mesmos, sendo seres cooperativos, solidários, com-passivos, simplesmente humanos. Com isso definimos a direção certa. Nela há esperança e vida para nós e para a Terra.

(*) Leonardo Boff, teólogo e professor, é autor de mais de 60 livros sobre teologia, filosofia, espiritualidade, antropologia e mística

 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A RELIGIÃO DO MEDO


 


Frei Betto


      Muitos cristãos foram educados na religião do medo. Medo do inferno, das chamas eternas, das artimanhas do demônio. E quando o medo se apodera de nós, adverte Freud, transforma-se em fobia. Recurso sempre utilizado por instituições autocráticas que procuram impor seus dogmas a ferro e fogo, de modo a induzir as pessoas a trocar a liberdade pela segurança.


      Quando se abre mão da liberdade, demite-se a consciência crítica, omite-se perante os desmandos do poder, acovarda-se agasalhado pelo nicho de uma suposta proteção superior. Foi assim na Igreja da Inquisição, na ditadura estalinista, no regime nazista. É assim a xenofobia ianque, o terrorismo islâmico e os segmentos religiosos que dão mais valor ao diabo que a Deus, e prometem livrar os fiéis de males através da vulgarização de exorcismos, curas milagrosas e outras panaceias para enganar os incautos.
     Em nome de uma ação missionária, milhões de indígenas foram exterminados na colonização da América Latina. Em nome da pureza ariana, o nazismo erigiu campos de extermínio. Em nome do socialismo, Stalin ceifou a vida de 20 milhões de camponeses. Em nome da defesa da democracia, o governo dos EUA semeia guerras e, no passado recente, implantou na América Latina sangrentas ditaduras.
     Convencer fiéis a abdicarem de recursos científicos, como a medicina, e de boa parte da renda familiar para sustentar supostos arautos do divino é explorar os efeitos sem alertar para as causas. Já que, no Brasil, milagre é o povão ter acesso ao serviço de saúde de qualidade, haja engodo religioso travestido de milagre!
     A religião do medo alardeia que só ela é a verdadeira. As demais são heréticas, ímpias, idólatras ou demoníacas. Assim, reforçam o fundamentalismo, desde o bélico, que considera inimigo todo aquele que não reza pelo seu livro sagrado, até o sutil, como o que discrimina os adeptos de outras tradições religiosas e sataniza os homossexuais e os ateus.
     A modernidade conquistou o Estado laico e separou o poder político do poder religioso. Porém, há poderes políticos travestidos de poder religioso, como a convicção ianque do “destino manifesto”. E há poderes religiosos que se articulam para ocupar os espaços políticos.
     Até o mercado se deixa impregnar de fetiche religioso ao tentar nos convencer de que devemos ter fé em sua “mão invisível” e prestar culto ao dinheiro. Como afirmou o papa Francisco em Assis, a 5 de junho de 2013, “ se há crianças que não têm o que comer (...) e uns sem abrigo morrem de frio na rua, não é notícia. Ao contrário, a diminuição de dez pontos na Bolsa de Valores constitui uma tragédia“.
     Uma religião que não pratica a tolerância nem respeita a diversidade religiosa, e se nega a amar quem não reza pelo seu Credo, serve para ser lançada ao fogo. Uma religião que não defende os direitos dos pobres e excluídos é, como disse Jesus, mero “sepulcro caiado”. E quando ela enche de belas palavras os ouvidos dos fiéis, enquanto limpa seus bolsos em flagrante estelionato, não passa de um “covil de ladrões”.
     O critério para se avaliar uma verdadeira religião não é o que ela diz de si mesma. É aquela cujos fiéis se empenham para que “todos tenham vida, e vida em abundância” (João 10, 10) e abraçam a justiça como fonte de paz.
     Deus não quer ser servido e amado em livros sagrados, templos, dogmas e preceitos. E sim naquele que foi “criado à Sua imagem e semelhança”: o ser humano, em especial aqueles que padecem fome, sede, doença, abandono e opressão (Mateus 25, 36-41).

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

 

 

Frei Betto é autor de 68 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

BURGUESIA NA CONTRA-MÃO DA HISTÓRIA

 



Prof. Martinho Condini

 

Lá nos idos de 1964, a burguesia saiu às ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, foram manifestações públicas ocorridas entre março e junho de 1964 no Brasil, apoiadas por militares, latifundiários, empresários, ala conservadora da igreja católica e a classe burguesa dos grandes centros urbanos do país. Esses setores achavam que havia uma ameaça comunista representada pelas ações dos grupos de esquerda que apoiaram a fala do então presidente João Goulart em 13 de março daquele mesmo ano, quando Jango mencionou  a necessidade da realização de uma reforma agrária no país. Tivemos então o golpe militar de 1964, onde por vinte um anos os militares governaram esse país com mão de ferro, onde a democracia e a liberdade de expressão deram lugar a tortura, a censura e a perseguição política àqueles que se opunham ao regime ditatorial imposto à sociedade pelos militares. Foram anos muitos difíceis. E durante esses vinte e um anos essa burguesia sobre as botas dos generais, não enxergavam o que estava ocorrendo no país, só tinham olhos para as suas preocupações mundanas, qualquer informação que não os agradavam era coisa de “subversivos” e em sua maioria liam o mundo através da lente do JN e da fala do jornalista e parlamentar chapa branca Amaral Neto defensor da pena de morte.

Ao final dos anos setenta com a “lei da anistia”, somado a crise econômica ainda em conseqüência da crise do petróleo de 1973, as greves dos metalúrgicos no ABC paulista, essa mesma burguesia entra no novo embalo e vai para as ruas junto com a classe trabalhadora, grupos de esquerda e estudantes pedir o fim da ditadura e eleições diretas para presidente da república. Os mesmo que há vinte um anos apoiaram o famigerado golpe militar,  agora mudaram de lado. Mudança de postura ideológica, claro que não, mais uma vez colocam os seus interesses acima de qualquer outra coisa, sem se importar a quem estão apoiando, mas sim preocupados em saber quem irá garantir a manutenção dos seus privilégios. 

Chegamos em mil novecentos e oitenta quatro e as “Diretas já” não foi aprovada, mas um ano depois, foi eleito pelo congresso o primeiro presidente civil após vinte e cinco anos, Tancredo Neves. Mas quem assumiu foi o seu vice, um filhote histórico da ditadura José Sarney. A burguesia dá o seu apoio inconteste. E a partir desse período chamado de nova república a hiper inflação e a insegurança econômica marcaram inicio da nossa redemocratização.

No processo eleitoral de mil novecentos e oitenta e nove, essa burguesia nacional apóia um candidato que se dizia “Caçador de Marajás” e que iria transformar a economia brasileira, primeiramente acabando com os altos números inflacionários. Enquanto grande parte da classe trabalhadora, apoiava uma das principais lideranças sindicais e políticas do país desde o início dos anos oitenta, o metalúrgico Lula.

A burguesia afirmava que se o ex-metalúrgico vencesse as eleições o Brasil daria uma radical guinada ao socialismo.

O “caçador de marajás” venceu as eleições e uma das primeiras medidas foi confiscar a poupança de milhões de trabalhadores brasileiros, ou seja, mais uma vez a burguesia se fez presente e colaborativa nesse processo, só que agora com o seu dinheiro confiscado. Em 1992 o “caçador de marajás” sofre um impeachment por corrupção.

Em 1994, Itamar Franco , presidente do Brasil, afim de resolver o problema de hiper inflação no país nomeia Fernando Henrique Cardoso ministro da economia por um ano, sendo um dos responsáveis pela implantação do plano real, que trouxe uma estabilidade econômica ao país e elegeu Fernando Henrique Cardoso presidente do Brasil por dois mandatos consecutivos. De mil novecentos e noventa e cinco até dois mil e dois, a burguesia apóia um governo que foi marcado pela privataria e diminuição da participação do Estado na economia, medidas essas que agradava aos interesses burgueses.

Após o período dos governos de Luiz Inácio da Silva e Dilma Roussef, mais de 40 milhões de pessoas saíram da condição de miseráveis, o Brasil deu um salto de desenvolvimento econômico e social nunca visto em nossa história. Milhares de jovens tiveram acesso ao ensino superior algo nunca acontecido nesse país. É claro que passamos longe de estar nos tornando um país desenvolvido, mas tínhamos um caminho, caminho este que se tornou tortuoso em função de escândalos de corrupção por parte da classe política atrelados a grandes empreiteiros e doleiros neste país.

Isso culminou com um golpe político que impediu que a presidenta Dilma Roussef terminasse o seu mandato. É claro que o processo de impedimento também teve apoio maciço da burguesia.

Chegamos em 2018 e a burguesia teve papel importante na vitória do paraquedista Jair Bolsonaro para a presidência da república. Afinal de contas se encantaram, com o candidato conservador, cristão e defensor da família e dos bons costumes, que tinha como lema de campanha “acabar com a corrupção no Brasil e com a velha política”. Após vinte meses de mandato acredito que a burguesia já conseguiu perceber quem ela ajudou a colocar no poder. Um desqualificado que faz um desgoverno, que até agora não teve uma atitude que merecesse um voto de confiança daqueles que o elegeram. A corrupção e a velha política estão ai mais forte do que nunca. E a pandemia demonstrou o quanto esse paraquedista está longe de ser um estadista na melhor concepção da palavra. Já temos mais de cento vinte e dois mil mortos. Diante desse quadro, nos resta aguardar, para ver o que a burguesia irá aprontar nas eleições de 2022?           

 

 O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com

terça-feira, 22 de setembro de 2020

OS LIVROS SAGRADOS QUE DEUS NOS REVELA

 


Marcelo Barros[1]

 

Na Igreja Católica, setembro é o mês da Bíblia. Neste mês, o último domingo, ou seja, este próximo é celebrado como “o dia da Bíblia”. Igrejas evangélicas celebram o dia da Bíblia em um domingo de dezembro. Seja como for, parece que, atualmente, o melhor modo de valorizar a Bíblia seria libertá-la de um uso instrumentalizador e desumano que alguns grupos fazem.

De fato, desde tempos antigos, a religião, qualquer que ela seja, tem sido usada pelos poderosos para legitimar o seu poder. Isso tem ocorrido também no uso da Bíblia. Muitas vezes, a Bíblia foi usada até para matar. Na história, a Igreja usou textos bíblicos para condenar hereges à fogueira. Em nome da Bíblia, o próprio Jesus foi condenado à morte, acusado de ter blasfemado contra o templo e por se dizer filho de Deus.

Em nome de Jesus e da Bíblia, impérios que se diziam cristãos conquistaram e colonizaram nosso continente. Até quase nossos dias, missões cristãs atacaram e demonizaram culturas indígenas e levaram doenças e morte a comunidades originárias. Nestes dias, quase cotidianamente, em nome de Jesus e motivados pela Bíblia, grupos pentecostais atacam e destroem templos afro-brasileiros. No Congresso Nacional, há uma bancada que se diz da Bíblia para legitimar as bancadas do boi e da bala. Muitos dos congressistas se orgulham de pertencerem às três, como se fossem uma só.

Há quem culpe a Bíblia pelo fato de que, nas eleições de 2018, a maioria das pessoas que se dizem cristãs votou pelo candidato do ódio e da violência, enquanto a maioria dos que se dizem ateus votou pela democracia.

 O apóstolo Paulo escreveu: “A letra mata. É o Espírito que faz viver” (2 Co 3, 6). Grupos e Igrejas fundamentalistas não conseguiram apagar ou jogar no lixo esta palavra. A própria Bíblia deixa claro que ela não quer ser lida ao pé da letra. Nos evangelhos, a todo momento, Jesus diz: “na Bíblia, se lê assim, mas eu tenho outra interpretação para isso” (Mt 5, 21 ss). Se nós somos discípulos e discípulas de Jesus, devemos desenvolver na leitura da Bíblia a mesma liberdade espiritual que Jesus viveu e nos propôs.

De acordo com a nossa fé, Deus se revela à humanidade através de dois livros: o primeiro é o livro da vida. A própria terra e a natureza são palavras que nos comunicam permanentemente o amor divino. As comunidades católicas costumam dizer em cada celebração da ceia de Jesus: “O céu e a terra estão cheios da vossa presença”. E este Deus que nos manifesta o seu amor na criação, nos dá sua Palavra através dos acontecimentos da vida. Mas, para decifrar esta mensagem, precisamos do segundo livro sagrado que Deus revelou: a Bíblia para os judeus e cristãos e outras revelações para outros grupos espirituais e outras religiões.

Na compreensão judaico-cristã, a Bíblia não é diretamente a Palavra de Deus. Ela é a escritura da Palavra de Deus. Em um de seus primeiros escritos, Carlos Mesters a comparava com uma partitura musical. Para quem toca um instrumento ou canta, a partitura é muito útil. No entanto, a mesma partitura possibilita que a canção ali escrita possa ser interpretada por alguém como lamento e por outro como protesto. Uma mesma canção de amor pode ter versão mais dolente, ou interpretação mais alegre. No Novo Testamento, as primeiras gerações de cristãos e cristãs leram a Bíblia de formas diversas, que não se opõem, mas ao contrário, se complementam.

Este mês da Bíblia pode ser oportuno para nos ajudar a descobrir uma palavra de Deus nos textos antigos para assim discernir, o que o Espírito de Deus diz, hoje, às Igrejas e ao mundo. A Bíblia, lida de forma não fundamentalista, pode ajudar-nos a compreender o que Deus nos diz através dos acontecimentos de cada dia.

Há quem pense na Bíblia como luz que esclarece tudo. No entanto, não é esta a experiência dos primeiros cristãos. Na 2ª carta atribuída a Pedro, o autor descreve os textos bíblicos, não como farol ou luzeiro e sim como lampadazinha “que fazeis bem em prestar atenção. Ela (a palavra da Escritura) brilha em lugar escuro até que o dia clareie a estrela da manhã, o sol, brilhe em vossos corações” (2 Pd 1, 19).   

 



[1] - Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br