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terça-feira, 1 de setembro de 2020

A FÉ QUE NOS TORNA MAIS HUMANOS

 

 Por Marcelo Barros

 



Quem é cristão/ã se vê como discípulo/a de Jesus de Nazaré que nos revelou a presença de Deus no humano. Quanto mais humano, mais expressa a presença divina em seu coração e sua vida.

 


Em tempos de fundamentalismos religiosos, a fé parece tornar as pessoas menos humanas. Há séculos, o Imperialismo ocidental impõe seus interesses e extermina os dissidentes e diferentes, sempre em nome de Jesus. Atualmente, o Império norteamericano se considera imbuído de uma vocação divina e cristã para dominar o mundo. Como reação a esta perversão social e política, também em nome de Deus, grupos que se dizem muçulmanos protestam contra o imperialismo matando inocentes. No Brasil, em nome de Cristo, grupos neopentecostais invadem terreiros e desrespeitam comunidades de tradições espirituais afrodescendentes. Em nome da fé, diante de tragédias como a gravidez de risco de uma criança de dez anos, vítima de abuso sexual, religiosos fundamentalistas esbravejam sua norma moral e sempre dizendo defender a vida. Sempre visando a mulher, transformada de vítima em pecadora, sem uma atitude concreta que possa mudar a estrutura machista desta sociedade sem coração.

Diante disso, para muita gente de boa vontade parece que de um lado está a religião e seus valores e, do outro lado, está a vida com seus desafios. Como dizia o grande Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”.

Na realidade, nestes dias, a Igreja Católica lê textos do evangelho de Mateus (capítulo 23) nos quais Jesus ataca não os que não têm fé e sim os religiosos. Na porta do templo, Jesus denuncia a desumanidade não dos ateus e sim dos professores da Bíblia e das autoridades do templo. A acusação que ele faz é que “vós filtrais um mosquito e engolis um camelo”. “Sois como sepulcros caiados, por fora brancos e bonitos, mas por dentro, podres. Cuidais da imagem pública e social que tendes mas por dentro estais cheios de hipocrisia”.

Estas acusações proféticas do mestre nos advertem a todos. Parecem referir-se a fragilidades pessoais, nas quais todos nós podemos cair. No entanto, não se trata só de acusações a pessoas que se consideram santas e não são. Jesus denuncia a própria instituição religiosa que tende a isolar a lei moral da vida concreta. Na exortação apostólica “A alegria do amor” , o papa Francisco lembra: “É justo que haja uma lei moral clara, mas sua aplicação tem sempre de depender das circunstâncias concretas e exige que os pastores dialoguem com os leigos que têm responsabilidades e critérios éticos” AL 37). A palavra do papa confirma o que disse Jesus: “A lei foi feita para as pessoas e não as pessoas para a lei”. 

A credibilidade das Igrejas e de toda religião está cada vez mais ligada ao compromisso destas contribuírem com a justiça e a paz no mundo. Na América Latina, a estreita relação entre fé e espiritualidade libertadora foi proclamada oficialmente pela 2ª Conferência dos bispos católicos latino-americanos, reunida em Medellín, em 1968. Há 52 anos, no início de setembro, esta conferência era concluída com uma mensagem, até hoje, atual e necessária: “Que se apresente cada vez mais nítido, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação do ser humano por inteiro e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a)

Nos nossos dias, mesmo contando com a palavra profética do papa Francisco, grande parte dos católicos nas dioceses do Brasil quer saber se pode contar com as forças vivas da Igreja Católica e de sua hierarquia para testemunhar ao mundo um Deus Amor e mais humano do que esta sociedade secular. Infelizmente, ao contrário do que falaram os bispos em Medellín, parece que certo grupo de padres e bispos ainda testemunha um Deus que, para ser fiel, às exigências de sua lei, se torna menos humano do que este mundo já tão cruel.

Há 52 anos, (1968), pela primeira vez, uma grande assembléia eclesial se interessava por um tema que não dizia respeito apenas à organização interna da Igreja. O título da conferência de Medellín foi “A Igreja no mundo em transformação”. A perspectiva era projetar uma visão integral do ser humano, compreendido a partir de sua dimensão social e da sua vocação para a libertação. De fato, a conferência conseguiu realmente falar ao mundo. Até hoje, o milagre divino é que, apesar de todas as dificuldades da Igreja e do mundo, Medellín deixou um espírito que não morreu. Nunca mais o episcopado católico latino-americano e caribenho conseguiu retomar a liberdade e a amplidão do espírito de Medellín. No entanto, embora restrito a minorias proféticas, o apelo dos bispos na conferência ressoa até hoje e incomoda. Jesus pediu que acreditássemos mais em Deus do que nas instituições religiosas. Deu-nos o Espírito Santo para nos guiar. E Paulo pediu: Não apaguem o Espírito dentro de vocês.

As oposições diretas que o papa Francisco enfrenta na própria cúpula eclesiástica não são apenas contra o fato de que o papa retoma o espírito e as orientações fundamentais do Concílio Vaticano II. Ele também retoma o sopro profético de Medellín para toda a Igreja. Hoje, bispos e padres que se pronunciam por uma Moral que parece religiosa mas não parte de uma visão da vida em seu conjunto acaba sendo pouco humana. Temos sim de defender a vida desde o momento da concepção, mas é preciso aprofundarmos o modo como defender de modos realistas e em sintonia com o sensus ecclesiae (a sensibilidade da Igreja) que não parece estar sendo a mesma de hierarcas que não dialogam e não se colocam na perspectiva da sinodalidade proposta pelo papa. Desde que assumiu o ministério de bispo de Roma, o papa Francisco procura mostrar que as normas morais devem ser defendidas, mas sempre a partir da acolhida e do apoio às pessoas mais vulneráveis e nunca de forma que separe e violente a vida concreta das pessoas em questão.

 

 

 

 

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