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quinta-feira, 30 de abril de 2015

CARTOGRAFIA DO CORPO

Por Frei Betto



       O corpo humano é uma redescoberta recente. Em culturas que precedem o século XX, o corpo era camuflado pela roupa, o moralismo e a religião. Exceções feitas às culturas indígenas, que ainda hoje imprimem respeitosa visibilidade ao corpo. E também à cultura greco-romana, isenta de moralismo antes do advento do cristianismo, como o descreve Marguerite Yourcenar no romance “Memórias de Adriano”.

       A tradição bíblica não separava corpo e espírito. A cultura ocidental, marcada pela filosofia de Platão, cinde o ser humano em dois polos antagônicos. Corpo e espírito são inimigos. E há que escolher um. Os devassos escolhem o corpo, destinado às chamas do inferno. Os santos, o espírito, elevado aos céus...

       Freud e a física quântica são contemporâneos. Ensinaram-nos que não há corpo como mero receptáculo da alma. Tudo está intrinsecamente ligado. Somos todos uma montanha de átomos, base de nossas células, nos quais há mais espaços vazios que substância material. Nossa “alma” está tanto na unha cortada quanto no fio de cabelo.

       O século XX desnudou o corpo, embora desde o Renascimento ele tenha sido exaltado, como exemplifica a pintura de Michelangelo, “A criação de Adão”, no teto da Capela Sistina.

       Agora, apropriado pelo capitalismo, o corpo é mercadoria submetida à ditatorial cartografia. Sofre quem não tem o corpo adequado a esta cartografia exposta em capas de revistas, na publicidade (“Vai verão...”), em filmes, fotos e novelas.

       Uma poderosa indústria, que se estende de academias de ginástica a medicamentos e dietas miraculosos, fomenta a visibilidade do corpo ideal e penaliza os corpos que não se enquadram no modelo padrão.

       Não se trata apenas de uma estética imposta a ferro e fogo, e que induz à depressão quem dela destoa. Trata-se também de uma inversão de Platão. Agora o corpo se salva, e o espírito desce aos infernos. Entre ser burra ou loura, a opção é óbvia.

       Quem dera nossas cidades tivessem tantas livrarias e bibliotecas quanto academias de ginástica! Essa exacerbação física aprofunda a cisão entre espírito e corpo. O desempenho sexual torna-se mais importante que a densidade amorosa. A velhice assumida é socialmente execrada. O excesso de peso, ridicularizado.

       O corpo, apropriado pelo sistema, já não nos pertence. O mercado determina qual o corpo socialmente apreciado e qual o excluído do mercado e, portanto, condenado ao banimento e à tortura psicológica.

       Já não somos o nosso corpo. Somos a encarnação do corpo sacramentado pelo sistema, impelidos a jejuar, malhar bastante, submeter-nos à cirurgia plástica. Nada de nos apresentar sem o corpo-senha que abre as portas do mundo encantado da jovial esbelteza, no qual nossa cartografia física deve suscitar admiração e inveja.


       Convém manter a boca fechada, não apenas para evitar engordar. Também para que não descubram que somos desnutridos de ideais, valores e espiritualidade. Estamos condenados a ser apenas um pedaço de carne ambulante.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
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terça-feira, 28 de abril de 2015

A DIGNIDADE DE QUEM TRABALHA


Por Marcelo Barros



É bom lembrar que o 1o de maio foi criado para dar voz ao trabalhador e valorizar a dignidade e os direitos de quem trabalha. Até algumas décadas, os sindicatos da classe trabalhadora expressavam reivindicações por salários mais justos e melhores condições de emprego. Infelizmente, a situação social é tão precária que as pessoas que trabalham, mesmo em condições duras e pesadas, são  consideradas privilegiadas em relação a uma proporção cada vez maior de pessoas sem emprego e sem esperança de conseguir um trabalho justo e regular. As empresas são consideradas lucrativas e bem sucedidas quanto mais conseguem demitir funcionários e ter menos encargos salariais.

Nesse contexto, os gerentes e chefes levam a competitividade a um limite extremo. Estipulam metas quase inalcançáveis e provocam uma forte insegurança nas pessoas que trabalham. Nas plantações de cana de açúcar, em várias regiões do Brasil, tem ocorrido que trabalhadores desfalecem e, literalmente, morrem de fadiga, em meio a jornadas desumanas de trabalho. A tal otimização do rendimento se dá em detrimento das condições de vida dos trabalhadores. Não têm como manter o mínimo de convivência familiar, nem menos ainda aproveitar qualquer lazer. Pesquisas revelam que, no Brasil, cerca de 15 milhões de pessoas sofram de depressão provocada pela sobrecarga de trabalho.

Em artigo recente, Leonardo Boff denuncia: “A pesquisadora Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalho, observou que no ano de 2010, numa pesquisa com 400 pessoas ouvidas, cerca de um quarto delas tinha nutrido ideias suicidas, por causa da excessiva cobrança no trabalho. Continua ela: “é preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas”. Especialmente são afetados os bancários do setor financeiro, altamente especulativo e orientado apenas para os lucros”. Leonardo revela ainda que toda a imprensa falou sobre o estado de depressão do co-piloto Andreas Lubitz  da companhia aérea alemã Germanwings que se suicidou levando consigo 149 pessoas, vítimas da queda do avião. O   que nenhuma agência de notícias destacou foi que, por trás da depressão do piloto estava também a angústia e o medo de perder o emprego. Leonardo conclui: “O suicídio pertence à tragédia humana que sempre nos acompanha.” No entanto, não podemos aceitar calados que a sociedade seja organizada de um modo tão cruel que leve às pessoas ao desespero e ao suicídio e depois ainda as acuse de desequilibradas.

É preciso que o 1o de maio retome sua vocação inicial de ser um grito em favor da dignidade do povo trabalhador. Todos precisam ver respeitado seu direito de trabalhar (direito que a ONU reconhece desde 1948 como direito de toda pessoa humana) e em condições dignas e justas. Essa meta só é viável em outra forma de organizar o mundo. Embora o sistema econômico dominante se mostre em crise e incapaz de proporcionar condições dignas de vida à maior parte da população, é ainda um dogma seguido pela maioria dos governantes. No entanto, cada vez mais, no mundo inteiro, amplos setores da sociedade civil e dos movimentos sociais organizados têm se manifestado por “outro mundo possível”. É importante que as religiões e tradições espirituais apoiem essa esperança e reforcem essa caminhada profética que visa mudanças estruturais na forma de organizar a sociedade. É preciso superar a visão individualista de “cada um por si” e retomar o gosto de pertencer e sentir-se em comunidade. Temos de passar da competição desumana e cruel para a colaboração fraterna. Não se podem sacrificar pessoas humanas ao deus- mercado, considerado absoluto ao qual tudo se dobra e obedece.

Para quem é cristão, a dignidade do/a trabalhador/a não tem preço. É expressão de que que todo ser humano é filho e filha de Deus e tem de ser respeitado/a como cidadão/ã do seu reino.  


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O ECOSSOCIALISMO: UM PROJETO PROMISSOR FACE À CRISE ECOLÓGICA MUNDIAL


Por Leonardo Boff



Uma das mais palavras mais difamadas na linguagem política neoliberal e capitalista é seguramente a de “socialismo”. Entende-se o porquê, pois ele comparece na história como um projeto alternativo à perversidade do capitalismo seja como modo de produção seja como cultura globalizada, hostil à vida e incapaz de trazer e generalizar felicidade.

Alega-se que o socialismo nunca deu certo em nenhum lugar do mundo.Talvez uma das razões de manter o boicote à Cuba socialista por tantos anos da parte dos EUA se deva à vontade de mostrar ao mundo que o socialismo realmente não presta e não deve ser buscado como forma de organização da sociedade. E Obama teve que reconhecer que nisso os EUA fracassaram. O capitalismo não é a única forma de organizar a produção e uma sociedade. Ademais houve a implosão do socialismo realmente existente na URSS, o que suscitou um entusiasmo quase infantil ao ideal capitalista como triunfador e a verdadeira solução final dos problemas sociais, o que revelou ilusório e falso.

Mas é forçoso reconhecer que aquele “socialismo” nunca foi o socialismo pensado por seus teóricos já há três séculos. Na verdade, era um capitalismo do Estado autoritário, pois somente este podia acumular e através dele e dos membros do partido construir o projeto socialista e não por todo um povo.

Mas se tomarmos como parâmetro critérios humanísticos, éticos e sociais mínimos, devemos reconhecer que o produtivismo em geral e o capitalismo como sua expressão maior, também não deram certo. Como pode dar certo um sistema que se propõe um mesquinho ideal de enriquecimento ilimitado, sem qualquer consideração? Subjugou a inteira classe operária na Europa e alhures aos interesses do capital, acirrando a luta de classes, conquistou e destruiu inteiros povos na África e, em parte, na América Latina, reduzindo-os até hoje à miséria e à marginalidade. Devastou e continua devastando inteiros ecossistemas, desflorestando grande parte da área verde do mundo, envenenando os solos, poluindo as águas, contaminando o ar, erodindo a biodiversidade na razão de cem mil espécies de seres vivos por ano, segundo dados do eminente biólogo Ewdard O. Wilson, destruindo a base físico-química que sutenta a vida e pondo em risco o futuro de nossa civilização, suscitando a imagem tétrica de uma Terra depredada e coberta de cadáveres e eventualmente sem nós, como espécie humana? Esse sistema, pelos cálculos feitos por economistas que assumem o dado ecológico, serve bem apenas a cerca de dois bilhões de pessoas que se afogam no consumo suntuoso e no desperdício atroz. Ocorre que somos já mais de sete bilhões de pessoas, das quais quase um bilhão vive na mais canina pobreza e miséria. Mais ainda, e os cálculos foram feitos: se este sistema quisesse universalizar o bem-estar dos países opulentos como os EUA e a Europa precisaríamos de pelo menos três Terras iguais a esta.

Que sistema atenderá as necessidades fundamentais da humanidade carente? Não será o capitalismo que, lá onde chega, traz logo duas injustiças: a social com a riqueza de poucos e pobreza de muitos, à base da exploração e a ecológica com a devastação massiça da natureza.

Sobre ele, um dia que não saberemos quando, virá, severo, o juízo da história e se cobrará dele as milhões de vítimas produzidas nos séculos de sua vigência, cujos gritos sobem ao céu clamando por uma justiça mínima e pelo respeito à sua dignidade, sempre negada.

Deixando de lado os vários tipos de socialismo a começar pelo socialismo utópico (Saint Simon, Owen, Fourier), o socialismo científico (Marx e Engels) o socialismo autoritário-ditatorial (estalinismo) e o socialismo democrático (Schumpeter; não confundi-lo com a social democracia), restringimo-nos ao ecossocialismo contemporâneo. Surgido nos anos 1970 com Raymon Williams (Inglaterra), James O’Connor (USA), Manuel Sacristán (Espanha) e entre nós com Michael Löwy (O que é ecossocialimo, Cortez 2015), ele afasta-se dos socialismos anteriores e apresenta uma proposta radical que “almeja não só a transformação das relações de produção, do aparelho produtivo e do padrão de consumo dominante, mas sobretudo construir um novo tipo de civilização, em ruptura com os fundamentos da civilização capitalista/industrialista ocidental moderna”(Löwy, p. 9-10).

Os tópicos principais desta proposta foram expostos no Manifesto Ecossocialista Internacional (2001) que deu origem à Rede Ecossocialista Internacional (2007). Na Declaração Ecossocialista de Belém (2007) se diz claramente:”a humanidade enfrenta hoje um escolha extrema: ecossocialismo ou barbárie…visa-se parar e inverter o processo desastroso do aquecimento global em particular e do ecocídcio capitalista em geral, e construir uma alternativa prática e radical ao sistema capitalista”(Löwy,pp.114 e 119). Todos estes textos se encontram no livro de Michel Löwy.

Esta proposta se alinha ao que também propõe a Carta da Terra, fruto de uma vasta consulta na humanidade e longa maturação até ser aprovada e assumida pela UNESCO em 2003.

Dentro de pouco seremos todos ecossocialistas não por opção ideológica, mas por razões matemáticas: dispomos apenas dos escassos bens naturais existentes com os quais devemos atender a todos os humanos e à toda comunidade de vida. Ou repartimos tais bens com um mínimo de equidade entre todos ou não haverá uma Arca de Noé que nos salvará. É vida ou morte.

Veja meu livro Do iceberg à Arca de Noé, Record, Rio 2010.


sexta-feira, 24 de abril de 2015

MIGRAÇÃO: TRAGÉDIA SUBMERSA


 por Maria Clara Bingemer Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



            Mais uma vez o mundo se defronta com a tragédia de barcos que transportam migrantes africanos naufragando e ceifando vidas no Mar Mediterrâneo.  Não é de hoje que isso acontece.  O Papa Francisco praticamente iniciou seu pontificado falando, em Lampedusa, contra essas sucessivas desgraças que parecem não ter fim.
            As estimativas dizem que são quase 1.600 os mortos no Mediterrâneo apenas neste ano de 2015. Já em 2014 foram 3.200. Em outubro de 2013, morreram em um naufrágio perto de Lampedusa 366 pessoas, e os políticos e autoridades – sobretudo após o discurso do Papa Francisco –prometeram: “Não acontecerá mais”. 
            Agora nos vemos diante de nova tragédia: entre 700 e 950 pessoas afogadas.  Números ainda incertos, total desconhecimento sobre a identidade dos mortas; de alguns não se sabe sequer o país de origem.  Sabemos apenas que estavam amontoados em um barco pesqueiro, de bandeira egípcia, e que a maioria morreu. O barco teria partido do Egito para a Líbia. E perto de Zuaru embarcaram entre 700 e 950 migrantes.  Entre eles, 200 mulheres e entre 40 e 50 crianças.
            Transportar migrantes passou a ser um bom negócio para alguns: para o armador, um traficante que por cada passageiro recebe mais ou menos 1.600 dólares americanos. Trata-se, sim, de um traficante de seres humanos que enriquece graças a quem foge de governos ditatoriais, de situações de guerra, da miséria e da fome.  O fugitivo escapa para sobreviver, por querer viver.  Não o faz por decisão livre.  É forçado a isso.  Não tem outra escolha.
            Porém, este traficante não é senão o último elo de uma longa cadeia.  Para atingir a costa líbia, o migrante deve atravessar meio continente.  Necessita esconder-se, encontrar pontos de apoio, confiar em guias, quase sempre corruptos, prontos a vendê-lo ao que fizer melhor oferta, muitas vezes com a colaboração da polícia e de militares.  Para libertá-lo, seus familiares, se o estiverem esperando no destino ao qual quer chegar, devem desembolsar somas elevadas para que não o matem.
           Na Líbia, muitas vezes é preso ou então cai em mãos de bandos armados.  E, quando isso acontece, a sequência não muda muito.  Os carcereiros distribuem pouco alimento e o estupro é frequente e regular.  Para serem libertados, há que pagar.
            Após esta última tragédia, a o mundo reage indignado.  Que promessas serão feitas desta vez?  Menciona-se a difícil situação da Líbia, onde se torna impossível atracar os barcos, encontrar um interlocutor confiável. Mas há pouca esperança de uma solução honesta e consistente.
            O Mar Mediterrâneo tornou-se o holocausto da era moderna.  Como no terrível genocídio da Shoa, todos sabiam mas fingiam não saber.  Todos que poderiam fazer algo para impedir, voltaram-se para outro lado.  E as vítimas se viram sozinhas diante de seu cruel e trágico destino. 
            A onda de migrações da África para a Europa não para.  No primeiro trimestre deste ano, 57.000 imigrantes ilegais chegaram à Europa  A cifra representa o triplo se comparada com o mesmo período de 2014.
            Ao que tudo indica, a onda migratória só tende a aumentar.  E se providências não forem tomadas, o Mare Nostrum dos romanos continuará a ser a sepultura de milhares de vidas humanas. 
            Enquanto todas essas vidas jazem sepultadas sob a água, nossa consciência é chamada a despertar e a identificar-se com todos que, anônimos, fogem de situações de morte para encontrar vida ... e acabam encontrando uma morte estúpida e cruel nas águas salgadas do Mediterrâneo.
            Deus, o primeiro migrante, que “saiu” de suas prerrogativas divinas para assumir nossa mortalidade e fragilidade, nos inspire sobre o que fazer para ajudar esses irmãos e superar essa situação.  Somos todos migrantes, pois vivemos de passagem, caminhando, de um lugar para outro.  Somos nós que corremos perigo, somos nós que fugimos das ditaduras e da fome.  Somos nós que mergulhamos sem volta nas águas do mar. 
            Que a tragédia submersa, que lança sua sombra macabra sobre a Europa, possa encontrar uma solução duradoura e consistente. 
           
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão"(Edusc) 
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quinta-feira, 23 de abril de 2015

MAIS MÉDICOS, MAIS SAÚDE

por Frei Betto



        O programa Mais Médicos conta, hoje, com 18.247 profissionais atuando em mais de 4 mil municípios do país. Neste ano, o número de brasileiros(as) a serem atendidos chegará a 63 milhões.

        O atendimento dos médicos inscritos no programa chega a ser personalizado, segundo a metodologia do sistema Médico da Família, que permite ao profissional cuidar, não tanto da doença, e sim da prevenção. A saúde é um direito e a sua progressiva mercantilização põe em risco a vida de inúmeras pessoas que não podem pagar pelo tratamento.

        Pesquisa da UFMG-Ipespe constatou que 95% dos beneficiários entrevistados estão satisfeitos com a atuação dos médicos, dos quais 84% estão no Norte e Nordeste. Naquelas regiões, 86% dos municípios têm ao menos 20% de sua população em situação de extrema pobreza.

        Vale observar que, nas vagas disponibilizadas pelo programa, a prioridade cabe a médicos brasileiros. Como os que se inscreveram no Mais Médicos são insuficientes para atender a população, o governo destinou as demais vagas a brasileiros graduados no exterior e, em seguida, a médicos estrangeiros. Há profissionais de 50 nacionalidades atuando no Brasil.

        Os cubanos são cerca de 14 mil, presentes em 2.700 municípios. Em geral, os mais pobres e mais distantes dos grandes centros urbanos.
        Os médicos cubanos trazem a experiência de solidariedade e cooperação internacionais, já que Cuba presta serviços médicos, hoje, em 67 países. Até o governo dos EUA elogiou a atuação dos profissionais da ilha socialista no combate à epidemia de ebola na África.

        Não são apenas médicos que o Brasil importa de Cuba. Além de medicamento para a hepatite B, desde o governo Collor nosso país compra a vacina de combate à meningite, única no mundo.

        O projeto ora apresentado no Senado contra o Mais Médicos é um acinte a tantos brasileiros que, pela primeira vez, recebem atendimento domiciliar de saúde. O direito à saúde está acima de ideologias. Partidarizar um programa que traz benefícios a quase 1/3 da população brasileira é um crime de lesa-pátria.

        O programa, que este ano chegará a mais de 72% dos municípios do país, atende prefeituras de todos os partidos, inclusive 66% (452 cidades) das que são administradas pelo PSDB.

        Cuba conta com 6,9 médicos por 1.000 habitantes, um dos maiores índices do mundo. O Brasil, com 2/1.000; e os EUA, 3,2/1.000. Com a reaproximação EUA-Cuba, milhões de estadunidenses estão de olho no chamado “turismo médico”, ou seja, a possibilidade de se tratarem em Cuba, já que nos EUA o acesso ao sistema médico-hospitalar é caro e difícil para quem não dispõe de recursos.

        O convênio do Brasil com Cuba é monitorado pela OPAS (Organização Panamericana de Saúde), braço da OMS (Organização Mundial da Saúde) para as Américas. A OPAS tem 110 anos de serviços prestados. E longa tradição de seriedade e qualidade.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
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terça-feira, 21 de abril de 2015

CUIDADO COM A MÃE TERRA



Por Marcelo Barros


Atualmente, diante da crise ecológica que fere o planeta, ninguém estranha que o cuidado com a mãe Terra seja prioritário e mereça que a ONU consagre o 22 de abril como “dia internacional de cuidado com a Terra”. É importante convencer os governos imperiais que a maior ameaça que o mundo enfrenta não é o terrorismo, por mais grave que ele seja. É a destruição ecológica que pode tornar a Terra um planeta desértico e sem vida. As mudanças climáticas que em outras eras geológicas vinham de mutações atmosféricas, agora são provocadas irresponsavelmente pela própria sociedade humana, especificamente pelo sistema social e econômico dominante que transforma a terra em mercadoria e se preocupa apenas com o seu lucro. Ao contrário, as organizações e grupos sociais do mundo inteiro, reunidos no 15o Fórum Social Mundial, em março, na Tunísia, consideraram que o mais urgente e maior desafio no mundo atual é transformar o modo como as sociedades se relacionam com o planeta. É urgente estabelecer um jeito novo do ser humano se inserir na comunidade de todos os seres vivos que habitam o planeta. Como afirmou o físico e pensador Fritjop Kapra, é preciso mudar o sistema de valores subjacente à economia global para torná-la compatível com a dignidade humana e com a sustentabilidade ecológica. O problema não é tecnológico. É cultural, social e político. Por isso, é importante tomarmos consciência da gravidade da situação, aprofundarmos os caminhos de sua superação e nos comprometermos em vivermos um modo novo de nos relacionarmos com a Terra, a água e o conjunto da natureza.  

Atualmente, ninguém mais pode negar que quase dois terços das grandes florestas do mundo estão destruídas ou em ameaça de destruição. A emissão de dióxido de carbono e outros gases que causam o efeito estufa na atmosfera só tem aumentado. Na última década, o Oceano Atlântico teve aumento de um grau na sua temperatura. O buraco de ozônio que protege a atmosfera terrestre aumentou e ameaça a vida de populações inteiras e de muitas espécies animais. A extinção da fauna e da flora em toda a superfície do planeta continua a tal ponto que se calculam em 50 mil espécies vivas que, a cada ano, desaparecem da Terra. Diariamente, se lançam no ar, na terra e na água novos produtos químicos que  envenenam os processos da vida. Ainda por muitos anos depois de lançados, continuam causando morte. E tudo isso, para saciar a ambição de uma pequena elite da humanidade que desfruta dos benefícios desse sistema. Os organismos da ONU atestam que a desigualdade social aumenta em todo mundo, menos nos países da América Latina que seguem o processo bolivariano (Venezuela, Equador e Bolívia). Países como o Brasil, Argentina e Uruguai, conseguiram reduzir a extrema pobreza. No entanto, como não fizeram nenhuma reforma estrutural, a desigualdade social não diminuiu e a destruição da Terra continua intensa.

Essa realidade é muito grave, mas não nos deve levar à desesperança. No Fórum Social Mundial de Túnis (março de 2015), grupos e organizações sociais do mundo inteiro se comprometeram em realizar eventos e assembleias em todos os continentes e regiões do mundo para conscientizar as populações. Na ocasião da 21a Cúpula da ONU sobre mudanças climáticas (Paris, dezembro de 2015), se organizarão peregrinações e caminhadas de todos os continentes a Paris e ali se fará  um fórum de cidadãos do mundo e amantes do planeta, paralelo à Cúpula da ONU. Nesse encontro, as organizações sociais querem, não apenas aprofundar ideias, mas mostrar experiências concretas e bem sucedidas de como, no mundo inteiro, já existem comunidades e grupos que fazem agricultura ecológica, exploram fontes de energia limpa e até cidades são administradas de modo ecológico.

Nesse caminho, as religiões e tradições espirituais têm uma responsabilidade imensa. No mundo inteiro, a humanidade redescobre a atualidade dos cultos indígenas e afrodescendentes que aprofundam a intimidade com Deus na relação com a Terra, a água e os elementos do universo. Mesmo religiões inspiradas em livros como a Bíblia refazem um caminho de contemplação do Mistério Divino presente na Terra e em todos os seres vivos. No início dos anos 90, o Conselho Mundial de Igrejas que reúne 349 Igrejas cristãs fez sua assembleia geral em Camberra, na Austrália. Ali, o próprio tema geral era “Vem, Espírito Santo, renova toda a criação”. Um dos documentos finais assevera: “Toda a criação parece ferida, violada e golpeada pela humanidade que habita um planeta que tem cerca de 4, 5 milhões de anos e, em menos de dois séculos, o está saqueando. A destruição da Terra e do ambiente pede em altos brados que nos convertamos e, quanto antes, nos arrependamos”.

É preciso incentivar e praticar a agricultura ecológica, rever o modelo de sociedade tecnológica baseada no petróleo e combustíveis fósseis. Para salvar a vida na Terra, precisamos retomar um estilo de vida mais sóbrio e comunitário. O documento do Conselho de Igrejas conclui: “Diante de Deus, somos responsáveis pela comunidade da vida. .. Tudo isso requer de nós atitudes de compaixão e humildade e, em nome de Deus, respeito e reverência com a nossa mãe Terra”.

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países


segunda-feira, 20 de abril de 2015

A CULTURA DO CAPITAL É ANTI-VIDA E ANTI-FELICIDADE


Por Leonardo Boff

A demolição teórica do capitalismo como modo de produção começou com Karl Marx e foi crescendo ao longo de todo o século XX com o surgimento do socialismo e pela escola de Frankfurt. Para realizar seu propósito maior de acumular riqueza de forma ilimitada, o capitalismo agilizou todas as forças produtivas disponíveis. Mas teve como consequência, desde o início, um alto custo: uma perversa desigualdade social. Em termos ético-políticos, signfica injustiça social e produção sistemática de pobreza.
Nos últimos decênios, a sociedade foi se dando conta também de que não vogora apenas uma injustiça social, mas também uma injustiça ecológica: devastação de inteiros ecossistemas, exaustão dos bens naturais, e, no termo, uma crise geral do sistema-vida e do sistema-Terra. As forças produtivas se transformaram em forças destrutivas. Diretamente, o que se busca msmo é dinheiro. Como advertiu o Papa Francisco em excertos já conhecidos da Exortação Apostólica sobre a Ecologia: ”no capitalismo já não é o homem que comanda, mas o dinheiro e o dinheiro vivo. A ganância é a motivação … Um sistema econômico centrado no deus-dinheiro precisa saquear a natureza para sustentar o ritmo frenético de consumo que lhe é inerente.”
Agora o capitalismo mostrou sua verdadeira face: temos a ver com um sistema anti-vida humana e anti-vida natural. Ele nos coloca o dilema: ou mudamos ou corremos o risco da nossa própria destruição e parte da biosfera, como alerta a Carta da Terra.
No entanto, ele persiste como o sistema dominante em todo a Terra sob o nome de macro-economia neoliberal de mercado. Em que reside sua permanência e persistência? No meu modo de ver, reside na cultura do capital. Isso é mais que um modo de produção. Enquanto cultura encarna um modo de viver, de pensar, de imaginar, de produzir, de consumir, de se relacionar com a natureza e com os seres humanos, constituindo um sistema que consegue continuamente se reproduzir, pouco importa em que cultura vier a se instalar. Ele criou uma mentalidade, uma forma de exercer o poder e um código ético. Como enfatizou Fábio Konder Comparato num livro quer merece ser estudado A civlização capitalista (Saraiva, 2014):”o capitalismo é a primeira civilização mundial da história”(p.19). O capitalismo orgulhosamente afirma:”não há outra alternativa (TINA= There is no Alternative).”
Vejamos rapidamente algumas se suas características: finalidade da vida: acumular bens materiais; mediante um crescimento ilimitado, produzido pela exploração sem limites de todos os bens naturais; pela mercantilização de todas as coisas e pela especulação financeira; tudo feito com o menor investimento possível, visando a obter pela eficácia o maior lucro possível dentro do tempo mais curto possível; o motor é a concorrência turbinada pela propaganda comercial; o beneficiado final é o indivíduo; a promessa é a felicidade num contexto de materialismo raso.
Para este propósito se apropria de todo tempo de vida do ser humano, não deixando espaço para a gratuidade, a convivência fraternal entre as pessoas e com a natureza, o amor, a solidariedade, a compaixão e o simples viver como alegria de viver. Como tais realidades não importam para a cultura do capital, como reconheceu o insuspeito mega-especulador George Soros (A crise do Capitalismo, Campus 1999), porque, embora tenham valor, não tem preço nem dão lucro. Mas exatamente são elas que produzem a felicidade possível. Ele destrói as condições daquilo que se propunha: a felicidade. Assim ele não é só como anti-vida mas também anti-felicidade.
Como se depreende, esses ideais não são propriamente os mais dignos para efêmera e única passagem de nossa vida neste pequeno planeta. O ser humano não possui apenas fome de pão e afã de riqueza; é portador de outras tantas fomes como de comunicação, de encantamento, de paixão amorosa, de beleza e arte e de transcendência, entre outras tantas.
Mas por que a cultura do capital se mostra assim tão persistente? Sem maiores mediações diria: porque ela realiza uma das dimensões essenciais da existência humana, embora a elabore de forma distorcida: a necessidade de auto-afirmar-se, de reforaçar seu eu, caso contrário não subsiste e é absorvido pelos outros ou desaparece.
Biólogos e mesmo cosmólogos (citemos apenas um dos maiores deles Brian Swimme) nos ensinam: em todos os seres do universo, especialmente no ser humano, vigoram duas forças que coexistem e se tencionam: a vontade do indivíduo de ser, de persistir e de continuar dentro do processo da vida; para isso tem que se auto-afirmar e fortalecer sua identidade, seu “eu”. A outra força é da integração num todo maior, na espécie, da qual o indivíduo é um representante, constituido redes e sistemas de relações fora das quais ninguém subsiste.
A primeira força se constela ao redor do eu e do indivíduo e origina o individualismo. A segunda se articula ao redor da espécie, do nós e dá origem ao comunitário e ao societário. O primeiro está na base do capitalismo, o segundo, do socialismo na sua expressão melhor.
Onde reside o gênio do capitalismo? Na exacerbação do eu até ao máximo possível, do indivíduo e da auto-afirmação, desdenhando o todo maior, a integração na espécie e o nós. Desta forma desequilibrou toda a existência humana, pelo excesso de uma das forças, ignorando a outra.
Nesse dado natural reside a força de perpetuação da cultura do capital, pois se funda em algo verdadeiro mas concretizado de forma exacerbadamente unilateral e patológica.
Como superar esta situação secular? Fundamentalmente no regate do equilíbrio destas duas forças naturais que compõem a nossa realidade. Talvez seja a democracia sem fim, aquela instituição que faz jus, simultaneamente, ao indivíduo (eu) mas inserido dentro de um todo maior (nós, a sociedade) do qual é parte. Voltaremos ao tema porque não é suficiente fzer a crítica a esta cultura malvada, como a chamava Paulo Freire;   importa contrapor-lhe outro tipo de cultura que cultiva a vida e cria espaços para o amor, a cooperação, a criatividade e a transcendência.

 Leonardo Boff é colunista do JBonline, filósofo e teólogo. Escreveu Que Brasil queremos depois de 500 anos, Vozes 2000.

sábado, 18 de abril de 2015

PÁSCOA: O “PREÇO” DA ALEGRIA


por Maria Clara Bingemer Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



Estamos em pleno tempo pascal.  Há alguns dias celebramos a Páscoa juntamente com todos os  cristãos. Trata-se de uma festa de alegria, de vitória, de vida em plenitude. A liturgia é permeada de aleluias e cânticos de louvor, aclamando o Crucificado que venceu a morte e nos deu nova vida.
Até o Concílio Vaticano II, a espiritualidade e a teologia cristãs eram muito marcadas por um dolorismo que parecia ver na Cruz e na morte de Jesus a última palavra de Deus sobre a criação e a humanidade. A ênfase na ascese, no sacrifício, na penitência, tomava quase todo o espaço, deixando em segundo plano a luminosidade fulgurante do anúncio pascal, graças ao qual vivemos e que nos alimenta a fé.
O Concílio caracterizou-se por seu toque otimista, tão necessário, enfatizando a importância da alegria, de apostar na vida, de saber desfrutar das coisas boas que ela oferece, sem culpabilidades excessivas e masoquismos desnecessários. Os cristãos começaram a entender que o ser humano é feito para ser feliz e, por isso, o gozo não é algo necessariamente pecaminoso e proibido, mas legítimo e mesmo importante para viver uma vida com sentido. O movimento pendular que sempre se segue às grandes mudanças na sociedade e na Igreja, no entanto, acabou levando para o extremo oposto em alguma medida a sadia abertura conciliar.
 E hoje, ao lado da mentalidade renovada e tão benéfica para o tecido eclesial e social como um todo, muitas vezes se encontra certa postura “light” e irresponsável diante da vida, diante do outro, diante da fé, que procura eludir a dimensão do esforço, do compromisso e da dor, apelando para a fé no Ressuscitado. Sobre isso, o povo mais simples como sempre tem intuições sábias nas quais se pode beber e aprender. A importância dada à adoração da Cruz e à procissão do Senhor morto nas festas populares traz consigo uma mensagem que não se pode descartar ou encarar apenas sociologicamente. Trata-se de um conteúdo indispensável e constitutivo da fé cristã, que não pode nem deve ser esquecido ou minimizado.
 A alegria da Ressurreição tem um preço e um custo. Trata-se da vitória de um Crucificado sobre uma morte cruel e violenta, na qual Deus diz ao mundo que o amor vence a morte. Porém, de que amor se trata? Não certamente do que os gregos entendiam por philia, amizade entre iguais, prazerosa e simétrica. O amor que levou Jesus à Cruz foi ágape feita de entrega e saída de si, de serviço desinteressado e generoso aos outros, assumir a perseguição e a rejeição no próprio corpo e na própria vida até perder a vida para que outros possam tê-la.
Os primeiros cristãos, após o deslumbramento da experiência de verem vivo aquele que haviam contemplado morto, começaram imediatamente a narrar a Paixão do Crucificado. Com isso pretendiam penetrar um pouco mais naquele mistério aparentemente incompreensível de como o amor desemboca na dor mais profunda de que se tem notícia na história da humanidade, para terminar com uma vitória que não apaga o que foi sofrido e doído, mas o transfigura em missão e anúncio jubiloso. O seguimento de Jesus de Nazaré, reconhecido como o Senhor Exaltado, Cristo de Deus, foi sendo sempre mais entendido como uma experiência atravessada de paz e de alegria, mas da qual a dor não está ausente.
Talvez tenha sido o apaixonado Paulo de Tarso que melhor expressou esse sentimento ao descrever as implicações do ministério apostólico que era o seu e de todos os que se dispunham a colocar-se inteiramente a serviço do Galileu Crucificado e Ressuscitado. E ele vai dizer que a alegria pascal é real e verdadeira. Mas só acontece se não há uma recusa ou uma negação da dor e da morte. Sobretudo da dor e da morte que abatem e oprimem os irmãos.
Aquele que segue Cristo já não vive para si, mas para Ele. E por Ele é chamado a consolar os tristes e aflitos, a atender os pobres, os órfãos e as viúvas, a alimentar os famintos e vestir os nus. Se buscar a alegria eludindo essas situações negativas que clamam por presença e auxílio, o que encontrará será o vazio de um gozo efêmero e oco, que logo se esvairá entre seus dedos como água. A alegria pascal deve recordar-nos que seguimos um condenado à morte, crucificado pelos que odiavam a verdade e eram aferrados a seus privilégios.
Nesse seguimento, alguma proporção de responsabilidade participativa nas dores e sofrimentos dos irmãos nos está certamente reservada. Assumi-la com confiança é o que nos cabe. Assim como esperar e acreditar que o Pai pronunciará sobre nossa vida a palavra definitiva da vida que não morre. Enquanto o Espírito derramará em nossos corações a alegria imorredoura que jorrou na noite luminosa em que o Messias venceu a morte e se manifestou vivo e poderoso aos seus.
 A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco. 

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quinta-feira, 16 de abril de 2015

TEILHARD DE CHARDIN, MEU GURU

por Frei Betto


       No domingo de Páscoa, 10 de abril de 1955, há 60 anos, em Nova York, o jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, 73, levantou-se da cadeira para servir-se de chá. Não chegou à mesa. Um ataque cardíaco pôs fim à sua vida. No enterro não havia mais de três pessoas.

       Para muitos, sua morte representou um alívio. Cessara o movimento daquele cérebro poderoso. Como tantos que ousam pensar pela própria cabeça e se recusam a acreditar que a verdade é filha da autoridade, Teilhard teve um final solitário.

        Aquela cabeça fora capaz de conceber uma das mais abrangentes visões do Universo, na qual todos os elementos se integram, das micropartículas subatômicas à atração de toda a matéria pelo Ponto Ômega, que coroaria o processo de evolução da natureza.

       Essa grandiosa síntese foi registrada em livros e artigos que, durante sua vida, seus superiores nunca permitiram que fossem publicados, com receio de um novo caso Galileu.

       Editada após a sua morte, a obra de Teilhard alcançou, na década de 1960, repercussão inesperada. Figurou meses nas listas de best sellers da Europa e dos EUA.

       Em 1962, introduzi Teilhard no Brasil, graças às traduções de Conrad Detrez. Os resumos em apostilas mimeografadas, vendidos à porta de faculdades do Rio, estão hoje no livro “Sinfonia universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin” (Vozes). Mais tarde, graças a Teilhard, aprofundei a relação entre espiritualidade e física quântica em “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio).

       Nascido na França, Teilhard era filho de uma neta de Voltaire, pensador que introduziu em seu país as teorias de Isaac Newton e combateu toda espécie de superstição e intolerância.

       Aos 11 anos, aluno de colégio jesuíta, Teilhard demonstrava interesse por matéria que não constava do currículo, a geologia. Teve a sorte de encontrar um mestre que o convenceu de que o melhor serviço a Deus pode ser o amor às pedras...

       Em 1913, aos 32 anos, descobriu o amor a uma mulher. “Estando desde a infância” – escreve ele em “O coração da matéria” – “à procura do coração da matéria, era inevitável que, um dia, eu me encontrasse face a face com o Feminino. [...] Parece-me indiscutível que ao homem – mesmo a serviço de uma causa ou de Deus – não é possível nenhum acesso à maturidade e à plenitude espirituais fora de qualquer influência sentimental que venha nele sensibilizar a inteligência e suscitar, pelo menos inicialmente, as potências de amar.”

       Doutorou-se em ciência em 1922, na Sorbonne e, em 1923, fez sua primeira viagem à China. Participou da descoberta da primeira prova da existência do homem pré-histórico. Escreveu, então, uma de suas mais belas obras, A missa sobre o mundo.

       De volta a Paris, em 1924, seus trabalhos científicos adquiriram fama, a ponto de lotar os auditórios em que proferia conferências.  Seus superiores, preocupados com suas ideias pouco ortodoxas, o forçaram a abandonar a cadeira do Instituto Católico de Paris e a retornar à China, numa espécie de exílio involuntário.

       Em Tien-Tsin, escreveu “O meio divino”. Em 1929, participou da descoberta de Sinantropo, e passou a se preocupar com a origem da espécie humana. Começou a redigir sua obra mais famosa, “O fenômeno humano”.

       Retornou a Paris em 1946. O Colégio da França lhe ofereceu uma cadeira. Ele pediu a Roma permissão de aceitá-la, bem como de publicar “O fenômeno humano”. Não conseguiu. No ano anterior havia escrito “O coração da matéria”, autobiografia intelectual e espiritual.

       Teilhard buscou a verdade nas pedras das montanhas e nos esqueletos dos ancestrais da espécie humana, confiante de que a evidência da verdade é filha do tempo. Censurado, calado, exilado, não abandonou suas pesquisas e escreveu convencido de que a posteridade lhe daria razão, tendo tido o cuidado de confiar os originais a parentes e amigos com liberdade de divulgar sua obra.
      
Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
E-mail - mhgpal@gmail.com


terça-feira, 14 de abril de 2015

VIVER, EM DEUS, COMO SE FOSSE SEM DEUS

Por Marcelo Barros


Em Londres, quem passa pelo pórtico da Catedral anglicana de Westminster, verá em meio às imagens de mártires do século XXI a estátua de um pastor luterano. Para celebrar o ano 2000, a Igreja Anglicana colocou nas portas da Catedral em Londres figuras de vários mártires do século XX. Ali se veem não cristãos como Gandhi e cristãos de várias Igrejas que os anglicanos reconhecem como santos. Ali estão homenageados o bispo católico Dom Oscar Romero, o pastor batista Martin-Luther King e, entre os dois, o teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, fuzilado em um campo de concentração nazista.

Nessa semana, no dia 09 de abril, completaram-se 70 anos do martírio do pastor Bonhoeffer. No entanto, a sua mensagem profética continua atual e provoca admiração no mundo inteiro. Pelo seu modo de viver e por seus escritos, ele ensinou uma espiritualidade que une fé e política. Para ele, a fé cristã exige inserção na realidade social, assim como Jesus entrou profundamente nos problemas da sociedade do seu tempo. Por isso, Bonhoeffer propôs que as Igrejas reagissem à injustiça. Os pastores deveriam denunciar a iniquidade do Nazismo e de todo regime político que negue a dignidade e a liberdade dos filhos e filhas de Deus.

Ele era um homem de oração cotidiana, mas, afirmava: “É um insulto a Deus cantar ofícios litúrgicos, enquanto as bombas caem sobre as cidades e muitas pessoas morrem em campos de concentração”. “Para quem é cristão, não basta evitar o mal ou dele fugir. É preciso combatê-lo”. “Nenhuma guerra é justa. Toda guerra é opressora e iníqua”. Na Alemanha, as Igrejas se dividiram. A maioria aceitou colocar ao lado do altar a bandeira com a suástica nazista. Muitas despediram pastores de sangue judeu e algumas chegaram a colaborar com o regime. Bonhoeffer liderou o grupo das Igrejas que ocultavam fugitivos e colaboravam com a resistência. Nesse contexto, o pastor Bonhoeffer decidiu participar de um complô para assassinar Hitler e assim acabar com a guerra. O plano fracassou e ele foi preso.  Afirmou que fez isso não por motivações políticas, mas em nome da fé e como testemunha do Deus que Jesus anunciou nos evangelhos. Foi morto no 09 de abril de 1945.

Na América Latina, todos consideram o pastor Bonhoeffer um dos grandes pioneiros e patronos da Teologia da Libertação. Livros seus como “Ética”, “Vida Comunitária” e “Seguir Jesus” marcaram gerações. No campo de concentração, enquanto esperava a morte, escreveu suas cartas da prisão que estão reunidas no livro “Resistência e Submissão”, hoje, um clássico da literatura cristã.

Em várias cartas, Bonhoeffer coloca a seguinte pergunta: “Como falar de Deus em um mundo no qual Deus não é reconhecido? Antigamente, os cristãos tentavam converter os descrentes a aderir à fé. No mundo contemporâneo, a maioria da humanidade não sente necessidade de religião. A única forma correta de falar de Deus aos que não creem é através do testemunho pessoal, da amorosidade e do modo coerente de viver a ética e a justiça. Por isso, o pastor Bonhoeffer propõe que as pessoas que têm fé vivam profundamente a intimidade com Deus mas de forma a respeitar a sociedade que tem sua autonomia e não precisa de um Deus pai para lhe dizer como deve se conduzir. Os cristãos devem viver mergulhados em Deus, mas inseridos no mundo e como cidadãos iguais aos outros, “como se Deus não existisse”. Ele atualizou essa expressão de um jurista cristão do século XVII para fundamentar a compreensão cristã de uma sociedade laical e pluralista que não pode ceder a fundamentalismos religiosos. Nenhuma Igreja ou religião tem direito de impor a um povo ou nação suas leis próprias. Não deve fazer lobbys para que a sociedade respeite leis e princípios que, embora possam ser válidos para toda a humanidade, são baseadas em crenças de uma ou outra tradição. Tomara que, hoje, nossos congressistas pentecostais ou de qualquer outra tradição religiosa tenham o bom senso de seguir esse conselho do pastor Bonhoeffer: viver em Deus, como se fosse sem Deus.


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países